Gilberto Barbosa dos Santos
Tenho por hábito, a cada início de ano letivo, dizer aos meus alunos que um país, cujos habitantes não conhecem suas histórias, dificilmente construirá um futuro; pode até existir, mas jamais andará com as próprias pernas, tornando-se refém de outras Nações, nas quais seus povos são portadores de “espíritos” – volksgeist – ou “almas” se o referencial for o pensador grego Platão, isto é, aquilo que lhe anima, lhe dá sentido. Tendo essa pequena observação como premissa, convido os meus leitores a embarcar numa pequena viagem ao ontem do Brasil em que as marcas ainda reluzem no hoje. Se o ponto de partida foi o ideário republicano, então a largada será a madrugada de 15 de novembro de 1889 – um sábado – quando uma quartelada, promovida pela jovem oficialidade sob a influência do professor e militar Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) – um positivista convicto -, solapou a Monarquia sem, contudo, derrubar as estruturas sócio-política do Império que deveria se esvair junto com a realeza luso-brasileira.
O primeiro elemento do presente que indica que, quiçá o regime republicano inaugurado no final do Oitocentos, ainda se guarda fortes resquícios do reino luso-brasileiro, são as sedes dos governos: palácios disso e daquilo e todos sabem que “palácios” reportam a monarquias. Muitos afirmarão que isso não tem a menor importância para o presente. Pode até ser, contudo, se essas nobiliarquias permanecem num mundo republicano, significa que ainda não se conseguiu eliminar as chancelas do Trono. E o que dizer então das escolhas dos integrantes do STF (Supremo Tribunal Federal), ou simplesmente a Corte Suprema? As indicações de seus ministros ficam a cargo do presidente da República, seguindo exemplo dum dispositivo da primeira constituição monárquica em 1824. Desta forma, é possível afirmar que lá se foi o Império, mas seus vícios e malefícios se mantiveram para um povo sempre acostumado a beijar a mão do imperador aos sábados de manhã quando este abria as portas de uma das várias moradias imperiais para receber a plebe que, amorfa, aguardava os farelos de pães que caiam da mesa monárquica.
Não me canso de indicar aqui que existem uma miríade de livros que dão conta desse período, muitos deles podem ser acessados gratuitamente através do site da biblioteca do Senado Federal ou em alguns casos, na página que a ABL (Academia Brasileira de Letras) mantém na internet. Mas para que ler essas coisas que aconteceram há mais de um século? Para entender os caminhos que o Brasil percorreu objetivando tornar-se essa Nação mergulhada em corrupção, nepotismo e outros desvios de condutas perpetrados pelos políticos que deveriam auxiliar o Brasil a deixar sua condição de um dos país com maiores índices de desigualdades sociais no orbe, cujos dados são gritantes, latentes e evidentes. Em virtude desse desiquilibro, a meritocracia nada mais é do que um termo que beira à perfumaria a enfeitar discursos verborrágicos, pois na prática o que funciona ainda é o tal do sobrenome, herança nobiliárquica recheada de muitas adjetivações, além do famigerado “você sabe com quem está falando?”, conforme apontou o antropólogo Roberto Da Matta.
Se o Brasil, que sonha ser moderno, mas escolhendo políticos com vertentes extremamente conservadoras e reacionários, querendo manter aquilo que está ultrapassado, se diz neoliberal, como é que fica as heranças que o mantém atrelado ao que de mais arcaico existe? O país, há 30 anos, pode ser considerado democrático, contudo flerta diariamente com uma teocracia desinformada e baseada na verborragia tosca escudada numa alegoria enviesada e deformadora. Parece-me que a grande problemática não é a democracia em si, mas a democracia para si, ou seja, como o brasileiro a encara e auxilia em sua construção. Se isso acontecer, o Brasil deixará de ser uma democracia delegativa, passando para o campo participativo. Contudo, isso ainda está longe de acontecer, na medida quem que se observa a prática de colocar tudo sob a responsabilidade do Estado e nas mãos de políticos que se comprazem com a plutocracia e o nepotismo. Daí a minha observação no começo dessa reflexão. Talvez essa prática esteja atrelada à ideia de que, embora pense-se liberal, o brasileiro ainda quer a mão gigante do Estado em sua vida, protegendo-o de fantasmas criados pela ausência de conhecimento sobre o vir a ser deste país estar pautado no rompimento com o seu passado.
Neste ponto, é possível enveredar por outro campo que, estando no seu passado, ainda marca as relações sociais entre os sujeitos que se pretendem cidadãos: o escravismo. De acordo com o historiador Luiz Felipe de Alencastro, em seu artigo Vida privada e ordem privada no Império, integrante do livro História da vida privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional, afirma que o escravo era um tipo de propriedade particular, cuja posse e gestão demandavam, reiteradamente, o aval da autoridade pública (Companhia das Letras, 2019, p. 15). É interessante notar que se foi a escravatura, mas se manteve a prática. Não existe mais o elemento africano cativo, porém trata seus descendentes como se estes ainda estivessem em cativeiro sendo açoitados por qualquer falta, punidos severamente, inclusive com moradias insalubres, como os casebres retratados no romance O cortiço ou O mulato, ambos de Aluísio de Azevedo (1857-1913). Neste sentido, a observação de Alencastro é significativa, pois o mesmo afirma que “tributado, julgado, comprado, vendido, herdado, hipotecado, o escravo precisava ser captado pela malha jurídica do Império” (2019, p. 15). Sendo assim, é notória a compreensão, segundo a qual o Estado brasileiro legislava sobre o direito, sob o aviltamento do ser humano, aniquilando-o em sua humanidade. Talvez por isso que o fim do escravismo numa canetada tenha provocado a queda do Trono, pois os escravagistas empedernidos se viram, da noite para o dia, despossuídos de suas mercadorias. Entendo que aqui a análise da obra A propriedade, do escritor brasileiro José de Alencar (1829-1877) possa ser interessante. O trabalho está disponível gratuitamente no https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/496202.
Sendo a escravidão uma marca indelével, isto é, uma (re)produtora, até o momento, de estigmas que humilha, ofende, denigre e coloca os descendentes de africanos e ex-escravos como seres de índole duvidosa, é preciso que o brasileiro repense sua própria Nação e construa um amanhã diferente do hoje, mas para que isso seja possível, faz-se necessária uma revisitação ao seu passado, principalmente naqueles momentos em que foi-se delegado o direito civil aos africanos, sem no entanto, criar mecanismos para que estes, alforriados, pudessem se organizar e se constituíssem como cidadãos de fato, isto é, portadores de cidadania, já que usufruiriam dos outros dois direitos: social e político. Como apenas o civil, ou seja, o de ir e vir foi-lhe outorgado, não havia a menor chance destes se tornarem se quer proletariados urbanos, já que a indústria nascente empregaria apenas os imigrantes que recebiam diversos benefícios estatais para deixarem suas pátrias europeias. Enfim, é preciso entender porque o escravismo do século XIX no Brasil não se apresentava como herança colonial, mas sim, como diz Luiz Felipe de Alencastro, “um compromisso para o futuro: o Império retoma e reconstrói a escravidão no quadro do direito moderno, dentro de um país independente, projetando-a sobre a contemporaneidade” (2019, p. 16). E é justamente essa chancela que ainda persiste no presente brasileiro.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.