Dialogando com o Brasil

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Está ficando cansativo observar uma quantidade infindável de pessoas apontarem que o Brasil a partir de 2019 deixará de ser socialista ou algo parecido, e que o marxismo será lançado à lata do lixo pedagógico, como se essas duas adjetivações fossem as responsáveis por colocarem o Brasil no lamaçal em que está, principalmente por conta dos níveis alarmantes no campo da política que a cada dia surpreende os cidadãos que votaram em determinadas mercadorias políticas que, durante a corrida eleitoral, vociferavam aqui e ali que combateriam esse “câncer social”, entretanto, não é bem isso que os fatos – contra os quais não sem argumentos – apresentam. Sendo assim, na condição de cientista social, educador, professor e cidadão com cidadania, entendo que sejam necessárias algumas considerações sobre esse Brasil que surgiu a partir de 1.º de janeiro deste ano arrogando-se o direito de ser novo, entretanto, com as práticas que foram articuladas para alçarem Rodrigo Maia (DEM) à presidência da Câmara Federal – o terceiro na hierarquia sucessória do atual chefe do Executivo Nacional – dá para se perceber que a coisa não será bem assim.

Em primeiro plano, ressalto aqui uma interpelação significativa: de que país está-se falando? Ou como dizia o grupo Legião Urbana, no final da década de 80 do século passado, cujo refrão era: “que país é esse?”. Para aqueles que nunca acessaram as páginas do clássico Raízes do Brasil, trabalho importantíssimo do historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). Detalhe: é uma análise weberiana e não tem nada de marxismo. É importante explicar isso, pois pode haver alguns que acham que tudo é marxismo, sem compreender ou distinguir o que seja uma análise pautada nos fundamentos dialéticos elaborados por Karl Marx (1818-1883) que busca compreender o capitalismo a partir dos processos históricos. Sendo assim, aponto aqui que o pensador alemão explica que o mundo a partir dos modos de produção, ou seja, aqueles que definem como as mercadorias são feitas e os valores que elas adquirem. Essa é uma chave interpretativa da sociedade humana, mas não é a única. Desta forma, é preciso observar que Marx diz ter havido o modo de produção escravista; o modo de produção feudal; o modo de produção capitalista e os posteriores seriam o socialismo e o comunismo. A problemática reside nos dois últimos e, como muitos não se deram o trabalho de analisar a obra marxiana, costumam dizer coisas pela metade como se as compreendessem em sua totalidade.

Para não me estender muito, é justamente na passagem de um modo a outro que consiste importantes observações para se analisar o Brasil. Nosso país foi escudado por mais de 300 anos no braço escravo, portanto, na não remuneração do trabalho. Talvez esteja aqui a chave para se entender porque o trabalho do outro não é valorizado e de quebra o do professor também, pois esse país nunca valorizou a educação, justamente porque os senzaleiros não queriam um povo devidamente educado, já que o conhecimento é capaz de desamarrar quaisquer peias que ligam o analfabeto à prática do beija-mão, comportamento existente desde que D. Pedro II assumiu o trono brasileiro dando início ao Segundo Reinado em 1840. Contudo, para não ser digressivo e perder o foco do meu escopo, volto ao livro de Sérgio Buarque de Holanda e a tipologia que ele criou, com escudada nos tipos ideais criados por Max Weber (1864-1920). Através dela, ele constrói um modelo de sujeito que esteve na base que norteou os fundamentos deste país. Se se está no ethos [espécie de ética fundadora] de criação desta Nação o braço escravo, como o trabalho e a sua valorização podem ser o motor de construção do nosso futuro? Como é possível existir uma Pátria pautada na meritocracia? Talvez o que inviabiliza essa construção até o momento seja a prática do favor, bem explicado pela cientista social Maria Sylvia de Carvalho Franco em seu Homens livres na ordem escravocrata. Aquelas observações podem ser corroboradas com a obra singular de Vitor Nunes Leal (1914-1985) Coronelismo, enxada e voto.

Se essas três obras são imprescindíveis para um diálogo com o passado brasileiro, no afã de encontrar uma resposta para o presente, o que diria se o indivíduo estudar um pouco mais sobre os movimentos messiânicos que existiram no país. O primeiro foi o edificado em torno do místico Antonio Vicente Mendes Maciel, Antonio Conselheiro (1830-1897), no complexo Arraial de Canudos. O segundo foi em Contestado no começo do século XX, construído por José Maria que acabou se transformando num conflito entre posseiros e produtores de erva-mate. O que se pode aferir desses dois acontecimentos históricos? A busca por um líder que livre o cidadão das agruras da vida e da labuta diária para conseguir se manter vivo até o dia seguinte. Os adeptos desse desejo podem ser adjetivados como sebastianistas ou nos dizeres de Fiodor Dostoievski (1821-1881) aqueles que querem, avidamente, trocar suas liberdades pelos líderes que lhes garantam pão e segurança.

Para além da trindade analítica externada acima, é importante percorrer as páginas que compõem o livro de José Martiniano de Alencar (1829-1877) Cartas de Erasmo ao Imperador. Já me referi a ele aqui várias vezes, entretanto, me parece que o momento é alvissareiro, já que o meu objetivo aqui, mesmo que de forma sucinta, é tentar estabelecer um marco dialogal com o Brasil de antanho, buscando ferramentas para entender o seu presente e porque tanta gente que não conhece o universo das ciências sociais e das práticas pedagógicas, da noite para o dia, acreditam serem capazes de dizer o que está certo ou o que está errado e, como num passe de mágica, têm as saídas para acabar com as mazelas sociais em 48 meses ou em golpes de caneta Bic! O desejo de se fazerem entendidos é tamanho que não conseguem observar questões nevrálgicas para o funcionamento da Nação. Nem mesmo na transição dos mandatos de FHC para o do petista Lula viu-se tamanha truculência, verborragias e palavras de ordem, promessas de caças as bruxas, atropelando principalmente a democracia e a Constituição Federal, numa simbiose que combina neopopulismo como teocracia.

Existe outro sociólogo de vital importância para aqueles que querem compreender o Brasil que emergiu das urnas na última primavera. Emile Durkheim (1858-1917) criou diversas ferramentas metodológicas para analisar a sociedade que emergia das transformações que as revoluções Industrial e Francesa estavam provocando na França e no mundo Oitocentista. Para entender essa complexidade, ele criou uma ferramenta analítica chamada anomia que é a ruptura entre dois momentos significativos da vida em sociedade. Dito de outra forma, seria a passagem das sociedades tradicionais (solidariedade mecânica) para as sociedades industriais (solidariedade orgânica). Essa transposição de um mundo para o outro pode explicar modificações no universo de instituições sociais como a família, o estado e a escola. Voltarei a esse assunto numa próxima ocasião em que os diálogos com o Brasil darão a tônica de minhas reflexões.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor do ensino superior e médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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