Retorno ao eterno presente

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos

 

Depois de muito tempo entre uma esquina e outra da vida e entre muitos livros e também da existência dum cidadão que passa os seus dias analisando a sociedade em que vive, ajudando a construir, a partir dos signos que o seu pretérito lhe faculta para caminhar no presente, resolvi escrevinhar algo para, quem sabe, compartilhar com os meus leitores aqui desta página. Mas, por que será, deve estar se perguntando o narratário, que este missivista, se é que posso me intitular como tal, insiste em tratar de assuntos que o brasileiro não quer nem ouvir falar. Explico-vos na tentativa de tê-los aqui comigo até o final das linhas que se seguem. A primeira tentativa de expor um mínimo que seja de plausibilidade no que pretendo abordar daqui para frente, tem início com a seguinte interpelação: que país todos nós queremos participar da sua construção nas próximas duas décadas?

Responder esse primeiro questionamento requer de cada um de nós uma busca pelo passado e olhar para lá e para cá, tendo a face voltada para o futuro. Lógico que nessas condições conseguiremos detectar que o amanhã assombra muito mais do que o pretérito, justamente porque o ontem é conhecido e recheado de mitos e homens que dizem que fizeram, mesmo que precisaram massacrar comunidades inteiras tanto aqui nas Américas quanto na África. Ler o presente dessas duas regiões globais com o foco na destruição e depois desertificação cultural dessas paragens, requer do sujeito, que se pensa um ser social, uma dose muito forte de sinceridade consigo mesmo, pois ao saber que sua ancestralidade está ligada a dor de um povo ou vários, como é o caso dos indígenas e africanos – os primeiros os verdadeiros habitantes dessas terras para além do Oceano Pacífico quando a referência for a Europa Medieval e os segundos foram trazidos para cá, não como seres humanos, mas somente na condição de mercadorias que deveriam ser exploradas as suas exaustões físicas. Posto isto, meus caros leitores, eis que me encontro em plena segunda interpelação: qual seja? Aquela que pode nos reportar e, neste sentido, modifico a pessoa gramatical da primeira para a terceira ordem, isto é, como é possível olhar para o futuro tendo um passado lavado à sangue de milhares de indivíduos que foram massacrados pela sanha egoísta de comunidades inteiras que se achavam no direito de eliminar o outro por considerá-lo inferior?

Está claro para este que vos escreve, meus caros leitores, que a questão é mais emblemática do se espera, pois, erigir uma Nação significa reconciliar com o seu pretérito, mas como fazer isso? Eis a terceira ordem interpelativa. Muitos dirão que o passado está morto e enterrado, portanto, impossível alterar o pretérito, todavia, não se pode abandonar a ideia de que o homem do presente foi forjado no ontem, desta forma, o vir a ser de um país se faz a partir do presente e, desta maneira, a questão dos tempos verbais nos auxilia, eu e tu, oh meu caro amigo leitor, a definir o que desejamos no aqui e agora, sabendo-se que as decisões de hoje definirão o país que queremos. Neste sentido, uma Nação cuja população, de acordo com dados oficiais do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], informa ter um passado africano em suas veias e também indígena, isto é, um DNA que foi vilipendiado, violentado em sua condição humana, deve levar em conta toda essa ancestralidade presente em mais de 54% do seu povo. Sendo assim, o problema se torna emblemático, porque o racismo, o preconceito campeia as relações sociais do hoje escudado nas tratativas étnico-raciais de um ontem que se atualiza constantemente no presente deste país que tenta de todas as formas apagar o seu pretérito de agressor de outros povos e vozes que clamam por justiça social.

Existem aqueles que poderão dizer que eu exagero nos olhares, segundo as quais, o racismo estrutural dita a tônica nos relacionamentos. Creio que é uma voz a ser escutada, todavia, como sempre se faz, é necessário observar o local de fala desse interlocutor. Será que é de alguém que tem a derme escura? De um sujeito que possui sangue indígena correndo pelas veias? Ou ainda de alguém, cujo passado é marcado por lutas e trabalho, além de sentir na pele o descaso das autoridades por aqueles cujos tons de pele são escurecidas, identificando um passado escravista? Como podem ver, meus caros leitores, a querela é mais embaixo, como se diz no jargão popular, portanto, não cabe dentro de uma verborragia tosca de alguém que olha a partir do seu quintal recheado por tesouros arrancado à força das populações nativas, ou que as posses herdadas de seus antepassados estão recheadas pelo sangue africano. Para não me alongar muito, já que está reflexão é meramente uma tentativa de voltar aos meus pensamentos, na condição de educador, cidadão e portador duma ancestralidade africana, indígena e europeia. Não sei ao certo se no final desta jornada, marcada sobretudo por diversos sobressaltos, conseguirei me fazer entender, tamanha dificuldade que tenho em me comunicar num mundo em que há muitos ruídos.

Mas deixando essas justificativas de lado e indo em direção a algumas considerações que chamo de finais para este momento, quero dizer-te meu caro leitor – olha que voltei à primeira pessoa gramatical – que a humanidade e não o mundo se encontra numa encruzilhada, principalmente porque muitos de nós, diante de um passado conhecido e um futuro a ser edificado, está optando por ficar com o ontem marcado sobretudo pela violência, como por exemplo aquela perpetrada pelos doutores da igreja durante o período medieval. Todavia, para não ficar muito distante do alcance do sujeito que me lê neste exato momento, me deterei nas primeiras décadas do século XX, quando o ser humano, por humana fatalidade, como dizia o escritor francês Vitor Hugo [1802-1885] em seu romance Os miseráveis [São Paulo: Martin Claret, 2014], produziu uma das páginas mais abjetas da história terrena. Claro que não é possível atribuir tanta atrocidade apenas ao eixo nazifascista, pois o Império Romano foi erguido através de muita violência, entretanto, pelo fato de o século passado estar mais próximo de nós é que o chamo para exemplificar a minha tentativa de entender porque o indivíduo insiste em produzir mitos sanguinários que tem o desejo atroz de eliminar o seu oponente, não aceitando as regras do jogo democrático. Como dizia Jean le Rond d’Alembert [1717-1783] na abertura da Enciclopédia, “não concordo com o que dizes, mas defenderei eternamente o direito de dizeres”. É isso aí pessoal, não é com armas em punho, verborragias toscas ou a tentativa de se reconstruir o mito fálico que vamos erguer um país digno e justo para os nossos descendentes que poderão falar sobre suas ancestralidades.

 

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

 

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