Doido do farol e a musa da ambulância

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos

 

Enquanto os incautos e outros fanáticos de determinadas seitas ideológicas e outras designações malévolas se engalfinham para saber quem é o melhor, ou aquele que consegue arrebatar mais dementes para seus séquitos de aloprados, fiquei do outro lado da rua à qual os correligionários se debatiam num tabuleiro de xadrez imaginário, se batiam, se ofendiam, se humilhavam por conta de credos políticos que espalham maledicências e, do nada, meus olhos cruzam com o de um esmoleiro que, ávido por comida e água, se recordava duma cena que tinha presenciado na noite anterior. Pelo menos foi isso que me disse quando me chamou com um olhar sedento por ouvir e louco para falar sobre o que havia presenciado ali mesmo naquela esquina.

Para evitar que os leitores, que ainda penso tê-los nessa manhã, identifique o meu pedinte e faminto interlocutor, prefiro designá-lo pela alcunha de “doido do farol”. Explico-vos meus caros: a adjetivação cabe aqui por conta de sua história. Não sei se é verídica, até mesmo porque não estava lá, então, tudo que narrarei daqui para a frente é fruto desse diálogo entre este que vos escreve e aquele que estava sentado na esquina der duas principais vias desta cidade que tenta ser moderna, mas, como toda a sociedade brasileira, respira os lampejos da ordem escravocrata que deveria ter sido extinta com aquela tal de Lei Áurea, promulgada naquele sábado chuvoso de 13 de maio de 1888. Eu estava lá quando os jornais publicaram o decreto, tornado lei com apenas dois artigos. Pode uma coisa dessas?

Poderia tratar dessa temática, mas penso que a conversa com o mendigo solitário – como se os esmoleiros se socializassem – do farol é mais interessante, até porque, aquela lei apenas colocou fim a escravidão, tornando o Direito Civil algo amplo naquela sociedade monárquica que agonizava, contudo, não tornou o Brasil livre das consequências do escravismo desde os primórdios de sua vigência e nem nos meses, anos, décadas e séculos vindouros, tendo em vista estar em plena vigência o racismo estrutural. Mas deixemos essas coisas para depois e vamos ao que interessa nessa reflexão de hoje, qual seja, a história da ambulância que balançava enquanto aguardava o verde aparecer no alto do farol. Mas o que acontecia no interior do automóvel, requisitado para transportar uma pessoa que estava precisando de socorro médico, sendo encaminhada ao Pronto-Socorro da cidade? Penso, meu caro leitor, que somente o fato do veículo pintado de branco com uma cruz vermelha em suas laterais e uma sirene no capô, estar parado ali, indicava que o ocupante não estava tão ruim assim, mas vá lá, que este que vos escreve não é médico, enfermeiro e não ocupa função alguma no campo da saúde, portanto, qualquer reflexão nesse sentido será mera especulação, para não dizer, senso comum.

Todavia, para não ficar aqui dizendo, ou melhor, escrevendo algo sobre o qual não vi absolutamente nada, me ocuparei agora em dar voz ao mendigo que, assim como eu, assistia aquela turba se esgoelando, esfacelando em prol de mercadorias políticas que desejam apenas o voto dos incautos e briguentos eleitores que não sabem nada ou se conhecem, o quantum é insignificante, pois se a sabedoria política fosse mais ampla, não ficariam rusgando com quem pensa que pensa diferente, mas repete os atos dos tempos coloniais. Se duvidas deste que vos escreve, vai lá meu caro leitor, percorrer os anais da história brasileira, inclusive vários romances daqueles tempos retratam ficcionalmente essas querelas. Compreendam que logo depois da Lei Áurea, nenhum outro código foi criado para permitir a emancipação social, econômica, ideológica, religiosa, filosófica, do elemento africano vilipendiado em sua condição humana por mais de trezentos anos. Mas deixemos o seu passado com o seu pretérito e retornemos ao presente, em busca de subsídios para se especular sobre o futuro e, quem sabe, projetar um amanhã diferente do ontem no qual o preto era açoitado como uma besta de carga que, diferentemente dos quadrupedes, sabia muito bem os códigos verbais para se comunicar, mesmo que a consequência fosse milhares de açoites desferidos por seres que desejavam desesperadamente ser humanos, mas que a cada chicotada desferida nas costas do escravo, se equiparavam ainda mais as bestas e feras tão propaladas pelos capelães e líderes religiosos em suas homílias proferidas por bocas pecadoras, já que permitiam, em nome de um pensamento crístico, que um humano violentasse seu semelhante em nome de uma moral cristã.

Contudo, deixando essas querelas religiosas, bem como as pelejas estamentais e pré-capitalistas para outra crônica ou quase isso, que se expresse o doido do farol. Segundo o meu interlocutor, sem nome, contudo devidamente adjetivado por este que vos escreve para fins narrativos, meus caros leitores. Enquanto os nossos olhares se cruzaram em tom de pergunta, o esmoleiro tentou balbuciar uma pergunta lançada ao universo chegando até os meus ouvidos transportada pelo ar, cujo som foi abafado pelo calor da massa que berrava palavras de ordem na tentativa de vencer o oponente, como se gritar, vociferar fosse tão importante quando o ato de preencher, depois de formatar, a consciência com as devidas inquirições. Com a cabeça em movimento, o homem que fazia daquela esquina sua moradia, seja em qual tempo for, chuvoso, friorento, primaveril, ensolarado, fazendo com que me recordasse de uma velha canção ouvida nos tempos de universidade em que o cantor dizia que as baixas temperaturas noturnas faziam com que o migrante amasse mais o dia de Sol do que a frieza da lua e das estrelas que não conseguiam aquecer o coração daquele mendigo e acabar com o seu vácuo estomacal.

Como meu interlocutor percebeu que eu assistia a tudo, estático, resolveu se movimentar em minha direção. Ao chegar bem próximo deste que vos escreve, meus caros leitores, notei que o cara não cheirava trapo velho, pulgas, piolhos, urina vencida e outros odores e dejetos. “- Boa tarde! O moço tem aí um cigarro”, inquiriu o morador de rua ou quase isso. Respondi que não era fumante. “- Ainda bem que o moço não coloca essas porcarias na boca. Se não tem cigarro, teria algo para aplacar a fome que me persegue faz dias”, me interpelou o doidivanas do farol que, ao ver a minha face indicando dúvidas, foi rápido e me falou: “- Se o moço me pagar uma marmita, prometo, durante a minha degustação, contar uma história que presenciei ontem a noite aqui mesmo na junção dessas duas ruas, bem no coração dessa cidade que tenta dormir, mas não consegue, tamanha a loucura de seus moradores”.

Havia um restaurante bem pertinho daquele cruzamento frenético de automóveis e homens que viviam apressados buscando não se sabe o que ao certo, contudo, algo que poderia aquecer os corações gelados, preenchendo as mentes vazias e ávidas por corpos alheios e narrativas para lá de mentirosas, vociferadas todas as noites nos bares dessa cidade que não sabe anoitecer e nem amanhecer, pois seus habitantes desejam viver tudo ao mesmo tempo agora, como se o presente fosse acabar logo no instante seguinte, quando o cabelinho dos relógios de pulso impulsionarem os ponteiros a indicar que o agora já é passado e o que surgiu já está morto, como se tudo não passasse de um eterno falecer no instante seguinte. Solicitei ao meu interlocutor que me esperasse enquanto providenciava o alimento – temia que nós dois fossemos rechaçados pelos frequentadores daquele bandejão pós-moderno recheado por seres fantasmagóricos. Tão rápido quando a vida consome o homem e seus desejos, fui e retornei com duas marmitas e uma garrafa de refrigerante. Resolvi que acompanharia meu interlocutor, pois comer sozinho deve ser chato para caralho! Aquele que já degustou uma refeição solitariamente entende bem o que pretendo dizer.

Na praça existente logo pertinho de onde a turba se esmurrava, havia um coreto e nós dois, se esquecendo das pelejas políticas, comemos e conversamos e, foi justamente nesse momento que o mendigo começou a narrar a história da noite anterior. Segundo ele, estava sentado a meio fio, pensando como seria aquela noite, cujo céu mandava mensagens indicando que cairia o maior aguaceiro sobre aquela cidade esquecida por deus e governada pelo coisa ruim.

– Moço! Que coisa de doido foi aquilo. Num momento eu estava de cabeça baixa com vergonha de tudo e de todos, mas principalmente da humanidade. Cansado de se sentir humilhado, levantei a caixa craniana e vi a ambulância parada, contudo, sacolejava, como se lá dentro se dançasse um baile noturno. Se bem que do outro lado da rua, há muito tempo, funcionou um clube que deixou muitas saudades em seus frequentadores.

O narrador colocou dentro da boca um garfão repleto de comida e em seguida virou o conteúdo do refrigerante que tinha dentro do seu copo de plástico. Assim que tudo estava arranjado no interior do estômago, voltou a contar a história medonha da noite anterior. “- O condutor da ambulância, assim como eu, estranhou aquele balanço todo e foi ver o que se tratava”.

Mostrando-me interessado no que ele contava, quis saber o que tinha dentro do automóvel destinado a transportar doentes. “- Também achava que era isso, mas o que vi, me deixou de cabelo em pé. Todo curioso, fui bem pertinho para, de repente ser testemunha do motorista que, assim que abriu a porta, flagrou o homem com uma calcinha azul na boca, enquanto seu corpo estava sobre a maca e a dona do lingerie em cima dele, gemendo e se contorcendo feito artista de circo”.

Pensando na cena, quis rir, mas estava com a boca farta de comida, ou melhor, de feijoada. Contive o riso, mas os olhos indicavam aquilo que me ia n’alma; um desejo enorme de gargalhar. “- Sei que o moço quer rir, mas a coisa foi do cão mesmo! O motorista ficou exasperado e, louco da vida, gritou com o casal, chamando os de degenerados. Eu do meu lado fiquei todo excitado, pois a bunda da mulher era divina, parecia um manjar dos deuses”.

Enquanto terminava de engolir meu naco de comida, o meu parceiro de comensalidade, continuava a contar a história. Segundo ele, o casal foi expulso do compartimento aos berros, enquanto ele olhava para aquela diva da ambulância. “- Não tiro a insensatez daquele homem que assistia o sangue que estava todo no pau, voltar para a cabeça, pois o rosto ficou vermelho de vergonha. Parecia um pimentão estragado com duas orelhas e um nariz”.

“- Depois de serem surpreendidos transando dentro da ambulância, os amantes adentraram por essa praça e sumiram na noite, enquanto São Pedro começava a mandar água”, continuou o interlocutor.

“- Você chegou a conversar com o motorista da ambulância”, perguntei ao meu parceiro de comensalidade.

– Falei sim. O cara estava louco da vida e me chamou para tomar uns tragos e, enquanto eu bebia um conhaque para esquentar as tripas naquela noite que prometia ser fria. Ele me falou que tinha sido acionado para buscar uma mulher que estava passando mal num bairro que fica no sentido contrário ao pronto-socorro municipal.

“- Isso é corriqueiro na vida desta e de outras cidades”, afirmei ao meu ouvinte.

– Moço vai me desculpar, mas sei que isso é comum, porém, trepar dentro da ambulância, não. Ou estou errado?

Fiquei pensando, enquanto estimulava o narrador a continuar a sua enunciação. “- O condutor me contou que, ao chegar ao local, a mulher estava, de fato, deitada sobre o sofá na sala da casa, indicando que não estava bem. O marido, ou sei lá o quê, a estimulou a ficar de pé para entrar dentro da ambulância”.

Fiquei atento à narrativa, pois tudo poderia ter sido verídico, mas ao mesmo tempo alucinação do doido do farol esfomeado. “- A mulher disse que só entraria no compartimento destinado aos pacientes, se o acompanhante fosse ali também. O condutor não fez objeção”.

– Não creio nessa história!

“- O moço pode até não acreditar, mas o fato aconteceu mesmo, inclusive, mesmo nervoso, o motorista perguntou ao casal o que era aquilo. O homem respondeu que estava satisfazendo uma tara da mulher que queria transar dentro de uma ambulância, enquanto ela circulava em alta velocidade com a sirene ligada”, explicou o esmoleiro, enquanto me colocava na condição de sonhador, imaginando a cena, disse ao meu amigo de garfo que havia doido para tudo. “- Claro que há meu caro. Se um amontoado de gente briga por conta de políticos e outros líderes espirituais, aquela mulher também poderia desejar chegar ao gozo celestial, enquanto trocava fluídos sexuais com o seu parceiro e o motel-ambulância apitava a sirene pelas ruas desta cidade dos infernos”.

– Nisso você tem razão! E a propósito qual é o seu nome”, perguntei ao meu interlocutor que colocava dentro da boca o último conteúdo de sua marmita.

– Uns me chamam de doido do farol, outros de alucinado da ambulância, mas não precisa saber o meu nome verdadeiro. Não há necessidade alguma, apenas de comer e beber e contar umas histórias que se passam nesse farol e outros sinaleiros da vida. E a propósito, a feijoada estava uma delícia. Fazia tempo que não degustava um rango com essa envergadura. Meu estômago estará em festa até a próxima marmita.

Encerrando essa quase que entrevista, perguntei ao meu interlocutor o que ele achava do fato de a ambulância ter sido usada como motel pelo casal. A resposta foi direta: “- Ora moço! Quando o tesão chega, não existe essa situação de que o veículo poderia estar salvando vidas, quando os dois desejavam trazer uma outra vida à matéria dando vazão às suas taras. Deixe de falso moralismo, pois tenho certeza que tu também tens umas taras mal resolvidas aí dentro da calça. Tens ou não tem?”

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com. www.criticapontual.com.br..

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