Papel de pão

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos

 

Não sei quanto a você, meu caro leitor, mas o que posso lhe afiançar é que sou dado a guardar coisas miúdas, inclusive aquelas que só encontram espaços dentro da memória afetiva. Segundo os terapeutas disso e daquilo, essas reservas dum pretérito, sejam elas distantes ou próximas dos atuais instantes, podem dizer muito do que somos ou pretendemos nos tornar no amanhã bem longínquo ou não, mas sobre isso, não se dá muita importância, pois o significativo é o que se faz no aqui e agora da existência. Pois bem, tenho algumas preciosidades que guardo desde os tempos em que meu nome figurou entre os aprovados dum concorridíssimo certame para tentar mudar o adjetivo no futuro, me tornando alguma coisa, mesmo que um pensador da envergadura dum Sócrates venha me interpelar sobre o valor desse predicativo ou a sua precificação.

Deixando as questões gramaticais e filosóficas para outro enredo, quero compartilhar contigo que me acompanha nessa tentativa de dar corpo e vida a uma narrativa que possa ser semelhante a uma estrofe poética – não sou dado a rimas e outros tantos versos, daí escrever usando o expediente da crônica e do conto ou algo parecido – um recorte textual confeccionado no chamado papel de pão, daí o título dessa enunciação. Sabe quando tu tens aquela mania de, ao ver um pedaço de papel, lápis ou caneta perto, começar a tamborilar uns arremedos de dissertação? Pois bem, foi isso que me aconteceu ao iniciar uma pequena mudança dentro dos cômodos de um imóvel que me serve de moradia. Arrasta um sofá para cá, outra mesa para lá, movimento um livro com a lombada da cor verde e, ao folheá-lo, observei se tratar duma edição antiga da obra Dos delitos e das penas, do Beccaria. Junto ao título havia um adjetivo – eis ele aqui novamente – coleção clássica.

Do seu interior caiu um papel escrito contendo alguns rascunhos e parecendo ser letras que usei num passado não muito distante. Contudo, não ficarei preso se sou ou não o autor daquela pequena missiva, pois o mais significativo aqui é o seu conteúdo. De chofre, levei um tremendo chute na canela quando meus olhos percorreram a singela sentença: “a entrega d’alma para esse amor foi intensa. Pena que durou, a partir do outro lado, apenas uma chuva de verão, todavia, minha alma – no sentido platônico – continuou intensamente apaixonada”. Que coisa foi essa, fiquei pensando. Será que escrevi realmente tais sentenças ou quem o confeccionou estava pensando em algo para além-mar ou existência? Sabe-se lá o que acontecia naqueles rincões da memória e do coração, pois a enunciação dizia haver dor, porém, com uma significativa maneira de não a tratá-la como sofrimento, pois a personagem de tal enredo tinha plena convicção da impossibilidade daquele sentimento ganhar vida, ficando, portanto, apenas no mundo das ideias que, nos dizeres de Platão, onde tudo é perfeito. Desta forma, seria também aquele sentir observado como uma circunferência que, independentemente do formato, indicaria sempre ser portadora de 360º?

Deixo-te a tarefa de responder-se a si mesmo, meu leitor amigo. Agora quanto a mim, fico aqui pensando, já que desconfio piamente de não ser eu o autor de tal narrativa, pois recordei que encontrei o tal livro numa lixeira numa tarde chuvosa e fiquei com pena do pobrezinho que seria dissolvido pelas águas que caiam em abundância do céu, restando, posteriormente apenas a capa e a lombada e suas escritas douradas. Entretanto, ao tentar dobrar o papel para devolvê-lo ao seu local de origem, isto é, o interior da obra, sem me preocupar em saber quem de fato era o autor de tal enunciação, fui surpreendido por outra narrativa que estava no verso da tal folha, ou melhor, papel de pão. Sei que tu és curioso, por isso creio que deseja que eu compartilhe contigo o que continha aquelas linhas com uma escrita garrafal, cujo deciframento poderia me ocupar por dias, entretanto, a compreensão foi rápida, tamanha a minha curiosidade. Então vamos lá: eu aqui e tu aí dividindo comigo o enredo, cujo pretérito era incerto, contudo, de conteúdo profícuo.

Manhã natalícia. Momento significativo para se iniciar uma reflexão sobre o ano que está partindo com o andar da onomatopeia do relógio. Sem ressaca de alimentação ou bebidas da noite anterior. Iniciamos, eu e minha consciência, mais um diálogo daqueles que pareciam intermináveis, como se fosse uma conferência filosófica. Isso vem acontecendo há mais de noventa dias, mais ou menos, portanto, não dá para precisar ao certo, todavia, o conteúdo sim, esse é de vital importância. Desta vez o assunto enveredava por um caminho que me fez pensar e, é neste sentido, caro leitor, que me coloquei a escrever algo como se fosse uma crônica, ou um conto, um relato, um desabafo d’alma junto ao mundo material.

Dialogamos como se fôssemos uma empresa que planeja os próximos passos e não um casal, eu e minha consciência que me acompanha desde o momento em que me observei um ser cônscio do meu eu e do mundo que me cerca. O leitor aqui, fora do texto, o achava um porre, então resolvi abandonar sua leitura, já que ao iniciá-la acreditava que, ao seu término, teria certeza de ter lido uma pequena enunciação sobre amores impossíveis, tendo em vista que do outro lado da folha, o pequeno fragmento dizia ou fazia entender de que se tratava disso: o amor ou a busca dele. Entretanto, quem quer saber desse verbo em tempos pós-modernos, em que não existe nada além do aqui e o agora e o tal verbo definido por um poeta como transitivo indireto só existe no cultivo diário, nas conversas, nas reminiscências recordadas durante o café da manhã ou outra comensalidade qualquer.

Ao dobrar o papel de pão e devolvê-lo ao seu lugar de direito fiquei pensando em tudo e em nada ao mesmo tempo, mas sobretudo, sobre a minha decepção com tal pequena dissertação. Por que será que desejamos consumir histórias de amor, mesmo sabendo que o verbo só existe na mente dos poetas? Confesso-te meu caro leitor que fiquei tentado a voltar ao rascunho que jazia no interior do livro de Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, mas ficou somente nisso. Coloquei o livro na estante que agora ocupava o outro cômodo da casa e fui cuidar da vida, não sem antes, passar uma última olhadela pela lombada da obra Dos delitos e das penas. Brevemente, feito uma brisa que sopra do oceano, me ocorreu uma ideia, em forma de interpelação: seria o amor uma sentença, apenamento ou um delito? Quem sabe algum dia escreveria um tratado sobre esse tal de sentimento que consome as energias dos seres humanos enquanto eles tentam se encontrar no outro sem saber que isso é impossível se não haver primeiramente o velho lema socrático: “conheça-te a ti mesmo”.

Refleti muito sobre isso, mas desisti no meio do caminho, pois existem muitas pedras e poucos humanos dispostos a removê-las. Mas por outro lado, como sei que cada um é responsável pelo pedregulho que atira ao universo, portanto, o único capaz de compreender as suas consequências, tratei de, enquanto removia as rochas e os muros que ergui em torno do meu ser, muitos deles por pura presunção, buscar respostas a muitas interpelações, entre elas, a que ainda não quer calar aqui dentro: por que as pessoas contraem matrimônio? Creio que quando se tem vinte anos, pode se ver a coisa sobre um prisma. Ao se atingir três décadas de existência, a visão é outra e o coração também e assim sucessivamente, então que todos possam compreender o dito de Vinicius de Moraes: “que seja eterno enquanto dure”, ou seja, um cisco de segundo ou o átomo eterno que pulsa no firmamento, sem que a nossa consciência se dê conta de sua grandeza. Pensando no lido, fiz um sanduíche, enquanto observava o Sol desaparecer no firmamento, indicando que mais um dia havia chegado ao seu final e a noite brilharia por, pelo menos, doze horas.

 

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos, licenciado, bacharel e mestre em Ciências Sociais, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis. e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com. www.criticapontual.com.br.

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