Amizades libertadoras

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos

 

A cada livro que se finaliza e outro que se inicia, é possível ao narratário a verificação de existências que se esvaem e mundos que se descortinam sempre com a mesma toada seguindo os escopos dos enunciadores: auxiliar o leitor – sim, no singular – a compreender um quantum de sua vida. É através do ponto de vista do autor ou narradores que, nos dizeres do filósofo alemão Nietzsche, se pode buscar longe, no universo ficcional, elementos para se entender algo próximo que, na maioria das vezes, se encontra no íntimo de cada um de nós. Essa é a minha visão particular de cada obra literária que passo em revista, enquanto organizo minha biblioteca para mudá-la de cômodo dentro de minha residência. O exercício parece louco, no entanto, não é, já que basta olhar o primeiro romance lido quando aqui cheguei pela primeira vez vindo de outro imóvel, portanto, para se deslindar uma existência tão singular quanto a atual.

Mania de quem tem no hábito de leitura, o seu lazer cotidiano: grifar com grafite as partes interessantes de uma enunciação ou até usando marca-texto. Outro dia, conversando com uma amiga livreira que comercializa alfarrábios, a tônica do diálogo foi essa: a espécie de palimpsesto que cada livro lido tem como sinal registrado do seu leitor. Essa marca d’água, por assim dizer, deixa claro a seguinte observação: “passei por aqui e gostei do que li”. Interessante que cada obra, além do nome de seu autor, tem as digitais do seu dono. Eu tenho por costume escrever meu nome nas lombadas das narrativas, de modo que, ao folhear um livro, dando movimento as páginas, a identificação do seu proprietário surge numa espécie de relevo. Sendo assim, cada grifo, sinal anotado pelo marca-texto numa viagem àqueles tempos de leituras e buscas por um ser que jamais se materializaria, cuja alma, nos dizeres de Platão, acalentava se corporificar, todavia, qual existência gostaria de ver e experienciar no âmbito concreto do existir, eis a interpelação ao estilo filosófico objetivando iniciar diálogos cujos escopos eram tão somente o simples aprendizado.

Armário vazio transportado de um compartimento ao outro dentro do mesmo imóvel, a ordem agora era dispor cada obra em seu devido lugar. Antes eu optara por ajustá-la por editora; outro dia pensei em agrupá-la por autoria, agora estou propenso a guardá-la por cores. Se for desse jeito, acho legal, uma rápida consulta ao mundo da cromoterapia. Será que me ajudaria em alguma coisa, meu caro leitor? Vai se saber, contudo, vale uma tentativa. Como dar preferências pelo verde e pelo azul? Começo o processo pela primeira opção e, ao pegar o primeiro exemplar, sou convencido pela curiosidade, passando a folhear a enunciação que, por sinal, sua leitura está inacabada como uma partitura que o compositor desistiu de concluir por não achar a nota perfeita e o tom ideal, junto com a clave de Sol.  Assim como tantas outras narrativas, esta também tem as minhas impressões de viagem e que périplo, meu caro leitor! Só não entendi o porquê do não chegar ao final dela. Acho que optei por ficar pelo caminho examinando os relevos e outros campos, ou quem sabe, em outras paragens assaz interessante, semelhantes àqueles estabelecimentos em que os passageiros param para se alimentarem durante o traslado entre duas pontos no emaranhado do mapa geográfico.

Ao folheá-la, rapidamente acesso um pequeno bilhete escrito nos tempos de graduação com alguns dizeres ou tentativas poéticas. O escopo do prosador era tentar convencer alguém de que os reais sentimentos são externados por olhares, tremores, mudanças de temperaturas corporais ao invés de palavras recolhidas dum velho manual que ensina, ou pelo menos pretende, a arte da conquista, bem ao estilo dos sofistas gregos. Imediatamente volto àqueles dias em que, pela primeira vez, fui visitado pelo bicho do ciúme. Não havia sido provocado pelo chamado amor, nem mesmo o platônico, aquele possessivo, expressado pelo pronome “meu”, seguido do egoísmo. O que havia me ocorrido era consequência duma querência especial, semelhante ao sentir dos parceiros. Explicando-me melhor, caro leitor: ciúme entre amigos. Fiquei pasmo ao sentir apreço específico por uma pessoa ao ponto de ficar incomodado de vê-la sorrir serenamente em companhia de outra pessoa. “Será que posso provocar esse sentimento nela”, me perguntei solitariamente.

Fui despertado deste devaneio quando alguém bate à minha porta e, ao verificar de quem se tratava, observo que era o carteiro que me trazia uma encomenda. Era a chegada de mais uma série de livros que tinha adquirido havia quase um mês para colorir meus armários, minha mente e minha existência, pois, para cada obra que se lia numa tarde chuvosa de domingo, havia uma existência que se desfraldava enquanto de minha poltrona, eu tentava entender para além da filosofia, como foi possível deixar escapar aquele que podia ser o amor da minha vida. Neste exato momento em que chego ao final de mais uma narrativa, te pergunto, meu caro leitor, será possível viver quantos amores durante uma vida. E se tivermos várias existências dentro dessa efêmera vida, o que fazer e como proceder quando olhares tentadores te devoram e aprisionam por meio das estrelas? Eis a pergunta que se tem para hoje.

 

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos, licenciado, bacharel e mestre em Ciências Sociais, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis. e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com. www.criticapontual.com.br.

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