Entre o racional e o emocional

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Quereria poder, nesta reflexão, tratar de questões alusivas ao universo da pandemia que grassa o mundo neste momento e no Brasil, em virtude de apostas erradas feitas lá em janeiro de 2020, se tem como consequência este quadro dantesco resultante de interesses pouco nobres dos gestores da coisa pública. Todavia, optei, meus caros leitores, por abordar uma problemática bem diferente do que rola mundo afora, mas que diz respeito a todos nós, inclusive este que vos escreve, justamente por fazermos parte do sistema-mundo, como dizia meu professor nos tempos de Unicamp, Octávio Ianni (1926-2004) durante as aulas no curso Teorias da Globalização. Feitas as devidas ressalvas – quase que explicações – alusivas ao que se seguirá, passo ao escopo das linhas futuras, esperando que as mesmas possam agradar-vos, meus caros. Bom! Como já diz a nomenclatura desta singela missiva de hoje, objetivo tratar da distinção entre o “eu” emocional e o “eu” racional e se há possiblidade de os dois corpos ocuparem o mesmo espaço na consciência humana. Diz um certo preceito filosófico que dois corpos não ocupam o mesmo espaço. Será? Creio que sim, mas também pode ser que a razão consiga conviver pacificamente com a emoção.

Se isso é fato, qual o caminho a ser percorrido pelo ser social para equilibrar no mesmo frasco biológico e humano, os dois quadros, para muitos inconciliáveis? É comum, o sujeito pensante encontrar situações extremadas, isto é, ou o homem muito afeito ao seu campo emotivo ou aferrado aos preceitos racionais e aí entra a questão da letra fria da lei. Parece-me que antes mesmo de nos atermos, eu e você, meu caro leitor, a essa ideia do que a lei diz e a prática serem divergentes no que diz respeito à esfera social, é preciso analisar como se dá a construção do homem enquanto um ser dotado de razão e emoção. Entendo, de forma bem rápida em virtude das dimensões espaciais que essa reflexão ocupa aqui neste jornal, que o indivíduo nasce com capacidades inatas, ou seja, aquelas que lhe são próprias em função de sua natureza biológica – lembrando que bio significa vida [corrijam-me os biólogos, caso esteja equivocado], para se tornar um ente bípede e tornar-se portador de cultura.

Posto isto, coloco-vos a seguinte interpelação: o homem nasce sabendo distinguir o certo do errado ou isso lhe é dado pela convivência social? A resposta seria no campo racional ou emocional? Se o meu leitor começar a sua jornada pelo campo da socialização primária, isto é, nos primórdios em que o sujeito inicia seu percurso pela vida em sociedade, constatará que o ente em si é portador tanto da vertente racional quanto do campo emocional e deve ser educado de forma a saber lidar de maneira harmônica com os binários existenciais [morte/vida; ausência/presença; ser/não ser; sim/não]. Como se diz no jargão popular: “nem tanto ao mar e nem tanto à montanha”. O desafio é encontrar esse ponto, principalmente se levar em conta que, aqueles que são responsáveis por incutir essa razoabilidade do futuro indivíduo social, precisam, antes, encontrar tal harmonia no interior de si mesmos. É significativo alertar aqui que ensinar a criança a revidar sempre não tem nada de razão e sim de muita reatividade e violência. Parece-me que o primeiro processo consiste em orientar a agir sempre, nunca reagir e tal atitude só pode advir depois de raciocinar sobre determinadas perguntas: por que fulano, beltrano, estão agindo desta forma comigo? Lembro-vos, meus caros leitores, que o velho adágio “meu pirão primeiro” pode explicar os motivos que levam a sociedade a alimentar níveis alarmantes de desigualdade social.

Muitos dirão: “o sistema é assim”! Quando escuto tal exclamação, já tasco logo uma pergunta: quem faz o sistema ser desta maneira? Ele é fruto das interações sociais, normalmente coercitivas, conforme nos diz o sociólogo francês Émile Durkheim (185801917) quando pretende entender o mundo que o cerca. Para alcançar o seu escopo, cria como ferramenta analítica o método designado como fato social, compreendido como “coisa” e externo ao próprio homem. Pode-se traduzir por “coisas” as instituições como “família”, “estado”, “educação”, “religião” justamente porque já existem quando o indivíduo chega a esse mundo material. Sendo assim, creio que o processo então passa a ser o de entender como elas funcionam e porque foram constituídas como se apresentam ao homem, principalmente nos primórdios de sua socialização. Lembro-me que o escritor e filósofo norueguês, Josten Gaarder, durante uma de suas passagens pelo Brasil, disse, num programa televisivo, que não são as crianças que precisam de Filosofia, mas sim o adulto, pois elas sempre perguntam, contudo, o homem já formado, crê-se cheio das certezas e de seus absolutismos recheados de quase verdades tidas como universais. Se isso é fato e, tendo a acreditar que seja, por que as pessoas, quando atingem a vida adulta deixam de perguntar e agem como se fossem os donos de tudo, inclusive da natureza? Se têm tantas certezas disso e daquilo, por que o mundo, a cada dia que passa, está se tornando um local complicado de se viver?

A interpelação, meu caro leitor, com a qual terminei o parágrafo anterior não tem nada de emotiva, embora emocional, em virtude da constatação de que o homem que deveria ser um humano de fato, se comporta mais como seres instintivos desprovidos de razão, ou porque a abandonou em prol de formas irracionais de viver em sociedade ou ausência de aprendizado durante seus processos de socializações. Eu do meu lado não consigo compreender como alguém pode ter problemas de obesidade por não conseguir controlar o seu apetite, enquanto outros morrem de inanição logo ali na esquina. Claro que o ser dotado de razão e não de condições interpelativas dirá: “o cidadão que morre de inanição à sua frente o faz por livre vontade. Ele escolheu estar ali, com o estômago a lhe devorar as entranhas porque assim o quis”. Entendo que deve se analisar racionalmente as questões que envolvem tal situação que se reproduz aos borbotões aqui e alhures. Caso seja um evento isolado, é possível tratá-lo não somente a partir de suas consequências, mas também de sua gênese, porém, se começar a se repetir em vários pontos de uma cidade, de um estado, de um país, de um continente, então deve ser visto como fenômeno social, pois se repete e em virtude de causas maiores que não se podem ser compreendidas como fatos isolados, mas como fruto da institucionalização equivocada da vida em sociedade, logo, opção dos homens que se reúnem e fundamentam o Estado a partir da letra fria da lei.

Se os fenômenos sociais, no campo da miserabilidade humana, são frutos das escolhas de governantes, então, podem ser evitadas num amanhã não muito longínquo e a partir de escolhas democráticas e racionais que os sujeitos sociais fazem em seus presentes eleitorais. Desta forma, vos pergunto, meus caros leitores, por que os homens que se dizem portadores duma certa razão se comprazem com a miséria alheia? Onde fica o seu campo emocional? Será que aprendeu a usar o intelecto para prejudicar, ou melhor, proporcionar falecimento ao seu semelhante através da fome? Parece-me que não há mais nada abjeto que seja ver o semelhante morrer de fome ou ainda, como aponta o poeta do parnaso Manuel Bandeira (1886-1968), ver o homem vasculhando o lixo para encontrar comida rejeitada das fartas mesas dos dirigentes e governantes que são escolhidos livremente pela população por meio das urnas – isso numa sociedade que se pensa democrática. Enfim, em que campo a expressão “meu pirão primeiro” reina? No universo da emoção ou da razão? Será que a obra Leviatã, do filosofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) pode nos dar uma luz? Creio que seria de bom alvitre tu, meu caro leitor, lê-lo e este que vos escreve, relê-lo. Então vamos à obra!

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

 

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