Construção cotidiana do Brasil

Gilberto Barbosa dos Santos

 

O Brasil continua produzindo seus enigmas e outras temáticas que podem fazer com que qualquer pesquisador, nacional ou brasilianista, se coloque a tarefa de entender uma Nação cujo nascimento se deu em 1808 quando a Família Real chegou aqui vinda de além-mar protegida pelas embarcações britânicas. O trabalho, inicialmente pode parecer simples, já que consistiria em fazer inicialmente um levantamento de obras e materiais que dão conta dessa História.  Feita essa listagem, o próximo passo diz respeito, não somente ao que está escrito em livros e documentos, mas também o de, abstratamente, definir o que se pretende encontrar nesse farto material.

Desta forma, o que a chegada da Família Real Lusitana ao nosso país pode nos dizer nessa segunda década do século XXI? Em primeiro lugar, antes da vinda da corte lisboeta ao Brasil, esse imenso território era Colônia, não tinha um povo e com o seu “espírito” – aqui é pensado a partir de Platão quando este define aquilo que dá mobilidade a um corpo, seja individual ou social, ou seja, o anima; se pensarmos a partir do universo alemão seria uma espécie de Volksgeist [Espírito do povo]. Sendo assim, me parece que, antes da primeira década Oitocentista, ainda não havia Brasil com todas as instituições relativas à formação e sustentação de um Estado; existiam pífias experiências aqui e ali, mas foram abortadas pela realeza como movimentos sediciosos que desejavam apartar-se de Portugal.

Depois que a nobreza e suas nobiliarquias passaram a existir na colônia – alçada a metrópole -, foi preciso criar as condições institucionais para que o país começasse a funcionar como tal e a quitar as dívidas feitas com o traslado oceânico sustentado pelas formas britânicas. A pergunta que fica é a seguinte: a criação desses órgãos e aparelhos – ideológicos e repressivos – de Estado – para usar um discurso de Louis Althusser (1918-1990) – seguiu critérios racionais, principalmente no que diz respeito às pessoas que ocupariam os postos chaves e de comando nessas instituições? O espaço aqui é pequeno para fazer uma avaliação mais detalhada sobre o conteúdo e a objetivação da interpelação, todavia, é possível dizer que as escolhas não foram do ponto de vista do mérito, ou como se diz no momento, pela meritocracia. Se as instituições recém-criadas não começaram a funcionar a partir das escolhas racionais de seus integrantes, mas sim a partir dos amigos do Rei e de uma prática intitulada “beija-mão”, como esperar que a situação fosse diferente no presente? Existem aqueles que acreditavam que somente com o advento da República e mandando a Monarquia para o frio sepulcro a coisa seria possível surgir uma sociedade, ou melhor, um Estado no qual o mérito seria o carro-chefe.

Pois bem! Conspirou-se nos bastidores dos governos desde 1808. Primeiramente debaixo das barbas de D. João VI, depois de seu sucessor, D. Pedro I – mais dado a farras homéricas e uma quantidade infindável de amantes. Este, por falta de governabilidade e habilidade política, foi obrigado a deixar o país, passando o trono ao seu filho D. Pedro II, ainda criança que foi tutelado até o golpe de maioridade. O brasilianista Roderick J. Barman em seu livro Imperador cidadão (São Paulo: Editora da UNESP, 2012) faz um registro significativo dos bastidores do reinado de D. Pedro II e de como as conspirações eram enormes durante o período regencial e depois já durante os reinados. O monarca conviveu com grandes problemas políticos, a criação do Poder Moderador e as trocas constantes dos gabinetes ministeriais: ora Liberal para, no momento seguinte, ser Conservador. O escritor Machado de Assis (1839-1908) compôs uma importante passagem dessa gangorra ministerial. O episódio é encontrado no romance Esaú e Jacó e relata o momento em que a mulher do advogado Batista – um Conservador – tenta convencê-lo de que sempre foi Liberal. Claro que essa roupagem machadiana diz respeito ao Brasil oitocentista, entretanto, ela bem pode representar o presente da política nacional e o troca-troca partidário sem que o mais importante nessa pulada de muro, isto é, o aspecto ideológico da legenda seja levado em conta no momento em que se muda de legenda.

É nessa enunciação machadiana que encontraremos também significativas observações, do ponto de vista ficcional, como o escritor, por intermédio do narrador Conselho Aires viu aquelas acontecimentos que marcaram profundamente a História do Brasil: na madrugada daquele sábado, 15 de novembro, os jovens estudantes da Escola Militar do Realengo, respaldado pelos Oficiais do Exército brasileiro e, sobretudo pelo professor positivista Benjamin Constant, derrubaram a coroa, instaurando em seu lugar uma República de clara vertente comtiana, como se pode observar no lema de um dos pavilhões brasileiros: a bandeira nacional – “Ordem e progresso”. Até ai todos que acompanham meus escritos semanais, são cônscios destas minhas observações, portanto, não é necessário aprofundá-las, exceto para dizer que o episódio da troca de tabuleta da Confeitaria do Custódio apresenta aos leitores deste Brasil contemporâneo, a ideia de que a República de 1889 não substituiu a Monarquia e seus privilégios instalados aqui em 1808.

O mais engraçado é que os privilégios conquistados por uma nobiliarquia falida e desacreditada até em suas titulações – Machado de Assis trata com devida ironia as honrarias quando o Imperador outorga o título de barão a um banqueiro [no mundo concreto o monarca nunca concedeu tal honraria a quem atuava no campo das finanças] – se mantiveram durante a recém-criada Res publica [República]. Se se era para deixar tudo como estava por que mudar? Será que a exigência partiu dos cafeicultores do Vale do Paraíba, empobrecidos e vendo, a cada dia que passava, seus ativos em escravos perderem valor no mercado nacional, fez com que debandassem para os lados republicanos? No que diz respeito à escravidão, é preciso acrescentar que a Maçonaria brasileira sempre esteve à frente para colocar fim a esse perverso regime. Por exemplo, era vetado a qualquer maçom possuir escravos! Fora isso, o cativeiro se manteve atuante até aquela manhã de sábado, 13 de maio de 1888 e suas consequências negativas, principalmente para os descendentes de escravos que se viram da noite para o dia – como se diz no jargão popular – no olho da rua, sem um quantum de proteção.

Enfim, essa é uma pequena parte da História do Brasil que não ficou lá no seu nascedouro e com aqueles acontecimentos, mas com significativos desdobramentos para o presente. Sendo assim, é possível apontar que o nosso cotidiano, principalmente nas esferas sociais, econômica e política, é concretizado a partir dessa pesada bola de ferro atrelado à cidadania nacional que impossibilita o seu povo de caminhar rapidamente para o progresso, conforme o lema de pavilhão nacional.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor do ensino superior e médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *