Sobras de um amor…

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– Antes que o senhor me apedreje com toda aquela conversa de ativismo afro isso e aquilo, que não levará a lugar nenhum, já lhe adianto: sou casada e minha esposa é uma antropóloga negra e sou imensamente feliz com ela. Portanto, como pode ver não tenho nada de racista.

– Mas eu não ia dizer nada, até porque não tenho nada a ver com a sua vida! Só quero realizar o meu trabalho para que amanhã não venha dizer que sou isso e aquilo e um péssimo profissional. Não estou nem aí para a sua opinião sobre a tonalidade de minha pele. Não vou mudá-la só porque tem uns espertalhões que se acham melhores do que eu pela ausência de pigmentação em suas peles e contas bancárias recheadas de dinheiro. O que adianta ter milhões aqui e ali se não é capaz de ajudar um semelhante. Olha para você! Toda imponente e não é capaz de retirar o irmão da condição de quase mendicância, insanidade mental e emocional!

– Obrigado pela sinceridade.

– De nada! Não vou cobrar nada por ela, pode ficar sossegada, minha senhora. Olha. Se quiser me deixar na próxima esquina, sem problema algum.

– Eu sei onde o senhor mora e se eu me propus a lhe dar carona, o levarei até o seu destino final. A não ser que tenha vergonha de andar no carro com uma mulher dirigindo e ainda por cima, branca. Porque o senhor tem toda pinta de daqueles machos que acham que são donos do mundo.

– Por favor, não tire conclusões a meu respeito com base no seu tosco achismo. E como já lhe disse, sua opinião não me interessa.

O carro em que Angélica e Márcio estavam andou mais de meia hora e o casal se manteve em silêncio. Ambos olhavam para frente sem se tocarem, até que uma lufada de vento vindo do lado da arquiteta levou o aroma de seu corpo até o nariz do repórter que não conseguiu evitar uma reação indicando o prazer que sentia com aquele cheiro.  Respirou fundo, mas seguiu em seu silêncio fúnebre, tentando controlar até a respiração para não trair seus sentidos.

Quando o veículo parou defronte ao prédio de Márcio, este se movimentou para sair, mas Angélica o conteve e, olhando bem dentro dos seus olhos, lhe disse:

– Por favor, gostaria muito mesmo que o senhor me desculpasse pelo ocorrido no restaurante. Não tem nada a ver com a sua etnia ou coisa parecida. É que essa situação do meu irmão está me tirando o eixo.

– É! Eu sei! Normalmente quando os bacanas perdem a pose extravasam tudo o que lhe vai n’alma e depois só resta pedir desculpas ou tentar comprar alguma coisa que indique uma bandeira branca. A senhora pode ficar tranquila. Não precisará mais destilar seu preconceito contra a minha pessoa. De agora em diante só conversaremos por e-mail e talvez por meio do aplicativo. De modo que não precisaremos ouvir a voz um do outro, quiçá ver-nos fisicamente e nem virtualmente.

Desceu do carro e nem olhou para trás. Entrou como um foguete no prédio. Somente quando estava dentro do apartamento é que deu por falta do livro. Esquecera dentro do carro da arquiteta. “E agora? Ligo ou não ligo? Peço o livro ou deixo pra lá?”, se perguntava Márcio. Resolveu deixar para lá. Não tinha a menor intenção de rever Angélica. Até porque ela lhe parecia familiar, mas não sabia de onde vinha a recordação.

Enquanto o jornalista ficava na dúvida entre ligar ou não ligar, Angélica viu o livro no assoalho do carro, mas resolveu não falar nada e nem enviar mensagem para Márcio. Para ela seria mais uma oportunidade para lhe falar pessoalmente e desfazer o mal-entendido da hora do almoço. Ficou uma situação muito chata, embaraçosa, pois não pretendia falar com ele daquela maneira. “Mas por que reagi assim? O que está me acontecendo?”

Esses pensamentos em forma de perguntas enchiam a cabeça da arquiteta, enquanto dirigia automaticamente pelas ruas da cidade até chegar ao seu escritório. Assim que tomou assento em sua mesa, o telefone tocou. Era Rosângela toda efusiva em virtude da informação que havia recebido pela manhã.

– É! Meu projeto de pesquisa para o pós-doutorado na Alemanha foi aprovado. Só precisarei arrumar um local para ficar. Com o aceite, também vem uma bolsa integral para bancar as mensalidades. Posso ficar lá durante um ano. Não é o máximo, meu amor?!

– Se é Rosângela! A noite vamos comemorar essa conquista!

– Mas eu só vou se você for comigo! Não quero ficar lá um ano sem você, amor.

A esposa de Angélica tinha lhe cravado a forquilha no pescoço, impondo essa condição para aceitar o curso na Alemanha. Uma coisa que havia desejado e esperado muito nos últimos dois anos. “E agora? O que faço? Não posso me ausentar do país, deixando meu irmão nessa condição de miserável e em andrajos!”

– A noite conversaremos sobre isso! Você sabe que detesto que me imponham as coisas, que me obriguem a fazer o que eu não quero! Então quando chegar em casa falaremos sobre isso. Deixe-me trabalhar aqui. Estou com uns projetos atrasados. Você sabe como essa história do Amadeu tem afetado o meu processo criativo!

O casal se despediu e a arquiteta tentou se concentrar no trabalho, mas sempre vinha à mente aquelas horas que passara em companhia de Márcio. Turbulentas, era verdade, mas que haviam lhe deixado marcas e um livro em seu carro. Isso significava que iriam se ver pessoalmente mais uma vez, pelo menos era o que imaginava. “E essa agora de Rosângela ir para a Alemanha e querer que eu vá junto. Meus Deus do céu, o que farei?”, pensou com um pouco de desespero, forçando ao mesmo tempo a concentração no trabalho.

Entre uma ação e outra, as horas da tarde foram se arrastando, chegando finalmente o horário de encerrar o expediente. “Hora de ir para casa”, pensou Angélica, cujo cérebro tentava atinar com outra coisa. “Márcio disse que tem um encontro com o meu irmão agora. Acho que vou dar uma passada por lá para ver como está Amadeu”. Tendo esse pensamento em mente, a arquiteta saiu do escritório fazendo as recomendações de praxe à sua secretária.

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