Sobras de um amor …

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Enquanto o elevador voltava para o térreo, Angélica tentava minimante entender quais eram as intenções de Márcio com a história de seu irmão. Ambos não tinham nenhuma ligação, por que então querer publicar algo tão particular, que diz respeito apenas aos seus familiares. Ou seja, dramas particulares que não dizem respeito a quem quer que seja, exceto para aqueles que vivem o problema? Tendo essas questões em mente, a irmã de Amadeu chegou até seu carro, um conversível desses de última geração que só faltava falar. Entrou. Ao se sentar, colocou as duas mãos sobre o volante e de imediato, ao olhar a aliança em sua mão esquerda, sentiu saudades da esposa, pois naquela correria toda do dia, não conseguiu se quer falar com ela pelo telefone. Enviou uma mensagem pelo aplicativo: “ – Já estou chegando em casa meu amor! Saudades! Hoje você é somente minha!”

Embora tivesse enviado a mensagem toda romântica para sua companheira, Angélica estava com a cabeça em outro lugar e esse foco estava assim desde a noite anterior, quando fora tirar satisfação com Márcio, sendo tratada como uma qualquer, uma esquálida que não merece a menor consideração. “Com quem aquele preto pensa que está falando?”, recordou a irmã de Amadeu enquanto repetia o mesmo trajeto da noite anterior.

“Se bem que ele tem lá o seu charme”, pensou enquanto prestava atenção no trânsito. Cor acobreada com tonalidade mais para o preto, nem muito cobre parecendo a cor da pele dos indígenas que tinha visto num documentário que havia assistido outro dia em companhia Rosângela, sua esposa. Foi despertada do seu devaneio ao ouvir o som do celular indicando que havia acabado de receber uma mensagem.

“- Tudo bem amor. Eu te espero, como das outras vezes. Mas quero saber por que andou sumida o dia todo e nem uma mensagem me enviou. Bjs A tua de sempre Rosângela”.

Tentando mudar o foco de seus pensamentos, como se movimenta o dial para encontrar outra estação de um rádio, a arquiteta buscou imagens dos tempos em que conheceu Rosângela – o amor de sua vida, diria a ela durante a recepção feita para anunciar aos amigos e familiares distantes a união das duas -, mas novamente as feições de Márcio se interpuseram entre o que desejava pensar e o que realmente estava imaginando, exceto o sentimento. “Mas por que será que esse sujeito, um funcionário de fundo de redação, está aqui me incomodando tanto?”, perguntou-se a si mesmo Angélica. “Ah deve ser impressão ou coisa parecida”, disse baixinho, se deixando ouvir a própria voz tentando se convencer de que não passava de impressão. O repórter tinha lá seus atributos de macho interessante, com aquele aspecto de homem pegador, mas ao mesmo tempo assustado diante de uma mulher que se impõe: “provavelmente um tímido incorrigível tentando ser o que não é”, sentenciou a arquiteta em seus pensamentos.

Como se estivesse conversando consigo mesma se tendo como setada no banco do carona, disse: “Deixe de besteiras. Você nunca se deu bem com o sexo oposto e a última vez que esteve com um homem, foi um verdadeiro fiasco. Ele pertence a outro mundo totalmente diferente do seu. Segue em frente e nem olhe do lado. Diante de você tem a sua esposa que é louca por você!”

Foi com essa conversa de si para si que a arquiteta entrou em seu prédio. Todos os moradores tinham no para-brisa de seus automóveis dispositivos que avisavam as pessoas que permaneceram dentro do apartamento que alguém estava chegando. Desta forma, qualquer um que quisesse usar a garagem do prédio e não fosse morador, precisava da autorização de um dos condôminos que estivesse dentro do apartamento para liberar a entrada. Foi através desse dispositivo que Rosângela soube que a esposa já estava no prédio.

Angélica entrou fazendo aquela cara de felicidade por rever a esposa, já que não falara com ela desde aquela manhã, além de não ter conseguido dormir direito a noite anterior. Optando por trabalhar em seus projetos que tinham prazos para entrega. De modo que vira quando o Sol tingia com cores laranja o horizonte, indicando que um novo dia estava chegando. “E que dia!”, pensou a arquiteta ao olhar para a janela da sala de onde via surgir a nova aurora. Retornando ao presente, desejou ter uma noite tranquila.

Foi com esse pensamento que chegou a cozinha, deu um beijo em Rosângela que preparava o jantar e foi logo dizendo o que estava terminando de fazer. “Hoje vamos a refeição será salmão grelhado com molho de maracujá e para beber aquele vinho branco especial que você tanto gosta”.

– Numa segunda-feira? Posso saber qual o motivo para essa comemoração?

– Não existe momento específico para se comemorar o amor e estar vivo para vivenciá-lo. Não acha?

Diante do exposto pela parceira, Angélica a olhou tentando ficar animada e não estragar a surpresa que a amiga planejara com tanto esmero. “- Vou tomar um bando que estou exausta e enquanto isso você terminar de preparar o jantar que, pelo cheiro, está apetitoso!”.

Enquanto a arquiteta se caminhava para o quarto, Rosângela a olhou com amor e ternura, suspirando e dizendo-se para si mesma em pensamento: “Não sei como seria a minha vida se essa mulher não estivesse nela. Sou privilegiada”. Tendo esse pensamento como parceiro, a professora foi até o seu computador e deixou um arquivo aberto. Era um artigo científico sobre a relação amorosa e sexual entre Martinho e Iracema, personagens principais do romance Iracema, de José de Alencar. O objetivo era tentar entender a obra não sobre a perspectiva de um europeu com uma nativa, mas a submissão da mulher ao homem, marcada por várias passagens da enunciação, entre elas, quando a protagonista volta à sua tribo se sente, juntamente com o seu filho, desterrada e sem lugar para existir.

Assim que deixou tudo acertado no notebook, Rosangela foi dar uma última olhada no jantar e arrumar a mesa para quando que quando Angélica terminasse o banho já pudessem comer e é lógico saber o que estava lhe afligindo desde a noite anterior. Não pregou o olho e saiu logo cedinho, retornando somente no começo da noite, sem lhe dar notícia alguma.

Assim que terminou de aprontar tudo para que fosse um jantar de amor, a professora foi até o quarto onde Angélica já estava terminando de se arrumar. Abraçou a esposa pela cintura lhe dizendo o quanto a amava e de como a arquiteta tinha significativa importância em sua existência e que não saberia o que fazer sem a amada, caso lhe acontecesse alguma coisa ou se separassem.

Antes de anunciar aos amigos e familiares suas intenções, o casal teve uma conversa franca na qual Angélica deixou claro que gostava de transar com homens também, entretanto, jamais lhe seria infiel. Ou seja, enquanto estivesse com ela, não precisaria se preocupar. “Eu também te amo sua boba e sei o quanto você significa em minha existência e estabilidade emocional”, disse lhe Angélica dando-lhe um beijo demorado.

Saíram abraçadas do quarto e quando chegaram na sala de jantar, Rosangela pediu que a esposa lesse o texto que estava aberto na tela de seu computar. Queria uma opinião de quem não era da área e caso precisasse faria alguns ajustes antes de mandar para a revista de Antropologia da Universidade em que dava aulas de Antropologia no curso de Ciências Sociais e Economia.

– Está bem! Depois do jantar dou uma olhada e escrevo no final minha opinião. Pode ser?

– Pode sim amor! Venha, vamos jantar antes que esfrie.

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