Sobras de um amor…

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Os instintos de repórter de Márcio ficaram mais aguçados e este ficou atento à próxima revelação, mas tinha que deixar Angélica falar até onde quisesse. Pois a partir dali tomaria mentalmente nota de tudo, tentando fazer conexões com as coisas que Amadeu já tinha revelado através de suas alucinadas metáforas.

– Basicamente é isso! Sei que é uma mulher que ele conheceu no emprego que arrumou. Mais ou menos né. Por que, na verdade quem pagava o salário dele era minha mãe. Quando Amadeu foi ao supermercado pedir trabalho, o gerente viu o seu sobrenome, fazendo a conexão, percebendo de quem se tratava. Pediu para ele aguardar que verificaria com o pessoal do RH se havia alguma vaga disponível. Mas a verdade, o gerente ligou para os meus pais e acertaram o trabalho e o salário dele, inclusive que os valores seriam depositados mensalmente na conta do meu irmão como se fosse feito pela empresa.

– Isso é coisa de gente que mima o filho, transformando-o num verdadeiro inútil, um futuro psicopata que se recusa a crescer, como naquela história do Peter Pan.

– Pense o que o senhor quiser. Mesmo sabendo que não tem qualidades nenhuma para julgar ninguém, até porque tua vida deve ser bem medíocre em todos os sentidos, ou seja, uma verdadeira bosta!

– A senhora veio aqui para me ofender ou para saber se eu posso ajudar a recuperar a mente debilitada de seu irmão?

– Tudo bem! Não vim aqui para discutir, mas para tentar dar um rumo ao problema que eu tenho e quero ver se ele tenha uma significativa redução.

– Certo! Vamos ao que interessa então.

– Meu irmão disse que a conheceu no local de seu trabalho, depois marcaram de se encontrar numa livraria ou ele ficava numa praça esperando ela passar todos os dias. Não sei ao certo. Depois disso começaram a se falar somente pelas redes sociais, inclusive trocando intimidades, imagens de roupas íntimas e outras coisas que não preciso externar aqui para o senhor. Do nada, ela desapareceu. Segundo Amadeu, a mulher apagou todos os vestígios e por mais que ele tentasse localizá-la, nada conseguiu, inclusive voltou a marcar ponto na praça na esperança de que ela voltasse a passar por lá. Mas nada aconteceu e, creio que foi aí que ele começou a ficar fora de órbita do jeito que está hoje. Amadeu também me disse que jogou fora todos os equipamentos em que estavam registradas as senhas das redes sociais que usava com ela. Numa noite, se irritou por conta das saudades, desmontou tudo e saiu jogando pelas ruas e lixeiras da cidade os pedaços e chips do computador e dos celulares.

– É! Teu irmão é bem amalucado mesmo! Então se apaixona por uma “dona” que do nada o deixa não mão e desaparece. Sem contar que eles chegaram a se ver pessoalmente por alguns momentos e depois leva um pé na bunda virtual. Ah! É mais doido do que ser trocado por outro ou deixado no altar pela noiva que fugiu com o melhor amigo.

– Por que está dizendo isso? Aconteceu desta maneira com o senhor?

– Claro que não! Tá doida a senhora!?

– Só disse para dar um tom ao drama do seu irmão. Está explicado de onde vem o sarcasmo e acidez do seu querido Amadeu!. Acho que não dá para continuarmos essa conversa. Estou sentindo que vamos acabar brigando como ontem.

– Se o acha isso, melhor eu ir embora mesmo! Mas antes quero pedir ao senhor que pense na possibilidade de retomar a sua história, mas que desse um outro enfoque. Se não for lhe pedir muito, só faça isso depois que nos falarmos novamente sobre o assunto, com o senhor me apresentando uma hipótese de como escreveria essa matéria.

– Mas eu não tenho nada. Só tem uma narrativa sem pé nem cabeça sobre uma mulher que nunca transou com seu irmão, exceto através das redes sociais, praticando um sexo virtual. Isso é bem doido, mas sei que tem muita gente que faz isso e, caso esse isolamento social que estão falando que está por vir, a coisa vai virar moda e devem aumentar as trepadas pela internet.

– De qualquer forma, o senhor tem uma história para narrar, inclusive se contá-la direitinho, creio que essa moça ou mulher aparecerá e aí podemos saber direito o que aconteceu e, quem sabe, tirar meu irmão desse atoleiro em que está metido.

Assim que terminou, Angélica olhou bem para Márcio e de forma bem autoritária, como é próprio das virginianas – pelo menos o jornalista estava crente de que ela era deste signo -, perguntou em tom impositivo: “- Posso contar com o seu trabalho e sua discrição?”

– Depende. Primeiro tenho que falar com o diretor. Depois da comida de rabo que levei hoje. Se eu falar dessa história com ele, é capaz de comer meu cu sem vaselina e ainda me obrigar a pedir desculpas porque estou de costas para ele.

– Que linguajar chulo! Que horror.! Nem parece que é um ser com certa cultura quem está dizendo isso.

Márcio novamente lhe olha com espanto, mas ela já estava de pé pronta para ir embora, momento em que pode percebê-la melhor. Enquanto Angélica lhe passava o número de seu celular, sem pudor nenhum, o repórter fez uma checagem total da mercadoria, como os homens costumam dizer nas conversas em mesas de bares. Ela fez de conta que não notou os olhares de cobiça, quase lhe desnudando totalmente.

– Boa noite senhor Márcio! Recomendo-te não ir à redação de seu jornal amanhã. Fique atento às suas ligações. Creio eu que irás receber ao menos duas chamadas antes do meio-dia. Portanto, não acho de bom alvitre que beba o restante daquele uísque. Embora ele seja de excelente qualidade, quando derruba, a pessoa fica atordoada por umas 24 horas.

Dizendo isso, Angélica deu um sorriso sarcástico, deixando em Márcio uma impressão que não esqueceria tão cedo. Atrás de toda aquela empáfia de riquinha e mimada, a irmã de Amadeu parecia ter uma certa sensibilidade, porém, feita desalmada, gostava de bater em homens desarmados, como ele estava naquele momento.

– Aqui está o meu cartão e o número de meu celular e também conectados com os aplicativos. Obrigado pela conversa, dona Angélica.

Márcio a acompanhou até a porta de seu apartamento, observando que ela tinha uma aliança na mão esquerda. Logo comprometida, como quem dizendo-lhe “afasta-se, minha conversa com você será sempre relacionada ao meu irmão!”. Com esse pensamento, o jornalista vai até a sala e sente o envelope no bolo traseiro de sua calça. O ato o fez recordar que ainda tinha algo para fazer antes de ir dormir.

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