Sobras de um amor

2

 

Márcio passou o dia na redação inquieto, fazia tudo sem o menor interesse, no “automático” como disse certa vez uma amiga que estava de olho num cara para lá de interessante, como ela mesma dizia. O seu faro de jornalista não o deixava sossegado, pois sabia que havia naquela história, do leve toque nos seios, algo interessante e que poderia render uma ótima matéria, lógico que se o bêbado esquisito autorizasse a publicação.

Chegou mais cedo ao boteco e ficou no balcão, pediu um conhaque, mas do bom. Daqueles que não precisa fazer careta para ser engolido. Deu uma geral no estabelecimento e viu que, apesar de o local estar cheio de gente, como na noite anterior, a mesa em que estava o cidadão estrambólico estava vazia. O garçom disse que os frequentadores não sentavam lá, preferiam beber em pé do que tomar a mesa do esquisitão das roupas iguais.

No horário certo, Amadeu entrou, deixou no balcão o litro que havia levado no dia anterior e caminhou para a mesa. Rodolfo não lhe perguntou nada, pegou outra garrafa da que havia consumido no dia anterior e levou até ele. Encheu o copo e saiu sem falar nada. Márcio foi atrás com seu copo, fazendo menção de sentar e ser companhia, mas levou outra espinafrada.

– Porra! Você de novo! O que você quer desta vez? Já me encheu o saco ontem, me fez visitar lugares que eu não queria, tornou minha noite uma verdadeira fantasmagoria. Fiquei até às três da manhã acordado vendo aquele lingerie mudando de cor, mas ficando no mesmo corpo. Por favor, não se sente aqui, a não ser que você, além de repórter seja um caça-fantasmas.

– Prometo não incomodar. Só quero sentar aí com você. É possível?

– Se ficar de boca fechada e deixar eu beber sossegado, pode!

Márcio, ficou quieto, só observando os gestos e as caretas que Amadeu fazia quando engolia a sua bebida. No começo era lento, dava para ver que o líquido ficava mais tempo dentro da boca, mas quando a carranca ia diminuindo e ele bebendo mais rápido, a coisa mudava, ele gesticulava com as mãos, como se estivesse querendo falar com alguém, mas só os olhos se movimentavam. Foi aqui que Márcio, mesmo com medo, lhe perguntou.

– A moça do lingerie não foi embora?

– Foi nada! Agora a vestimenta está ficando vermelha, depois passa para o amarelo e em seguida fica verde. O verde é para eu ir, mas não dá tempo de eu chegar, pois ele fica azul e surge o primeiro dia em que a vi e as sequências não param mais.

Dizendo isso, encheu o copo novamente e bebeu tudo de uma vez. Olhando para o repórter, foi lhe dizendo: “escreva aí no seu jornal, que tive uma das dores mais fortes dentro do peito, depois que passei a esperar no mesmo lugar todos os dias ela passar”.

– Descobri que ela trabalhava numa livraria. Mudei meu horário de almoço e ia quase todas as semanas comprar um livro só para ser atendido por ela. Na primeira vez, ela me reconheceu do supermercado, mas não falou nada. Apenas me disse o valor do livro e me perguntou se eu ia pagar em dinheiro ou no cartão. Disse que era no cartão de débito. Depois desse dia, comprava livros toda a semana e ela me perguntava qual era o conteúdo do livro da semana anterior e seu eu o recomendaria.

– E daí, perguntou Márcio.

– Descobri o horário que ela saia do trabalho e o caminho que fazia até chegar a sua casa. Mudei o meu horário no trabalho para sair meia-hora antes. No trajeto que ela fazia tinha uma praça.  Então todos os dias ficava sentado lá para vê-la passar. Nas primeiras vezes, eu baixava a cabeça, fazendo menção que estava lendo alguma coisa ou olhando para o chão.

– Ela nem te olhava? Você nunca falou com ela.

– No começo a nossa conversa era somente na livraria. Até que um dia, ela parou para conversar comigo, mas não estava indo para a casa, estava voltando para a livraria. Naquela noite não sei que escritor ia lançar um livro lá e o proprietário a queria trabalhando naquele evento.

– E você não disse nada?

Amadeu olhou para o repórter com cara de enfado, tentando dizer com os olhos que era para ele enfiar a pergunta no rabo. Mas acrescentou: “ela me perguntou por que eu ficava ali naquele banco todos os dias? Eu respondi que era para vê-la, só isso. Não queria mais nada. Apenas vê-la passar já era o suficiente, pois o seu andar me apresentava uma sexualidade muito bela que eu tinha medo que o sexo poderia estragar”.

– Sexo estragar?

– Porra, macho, será que você não sabe que não se come uma mulher pelo sexo dela, mas sim a partir do momento que você capta a sua sexualidade? Vocês parecem que só vê a genitália, bunda e peito da mulher, esquece que a vagina tem uma dona que quer ser encontrada na batalha sexual.

– E como se faz isso?

– Caralho! Não vou ensinar nada! Vocês se acham donos da verdade, só sabem olhar para as mulheres e vê-las sem roupa. Não percebem que elas não querem isso, mas apenas que os homens as deixem nuas com seus olhares. E era assim que eu olhava para Y.  E ela percebeu!

– Porra! Nunca tinha visto uma mulher por essa perspectiva. Fale-me mais!

Amadeu encheu o copo e pensou em dizer alguma coisa, mas olhou para o relógio, despejou todo o conteúdo na goela e saiu sem dizer nada. Márcio socou a mesa, indicando inconformidade, mas fazer o quê, o cara era esquisito, porém, tinha uma história interessante e ia comentá-la com o redator no dia seguinte.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *