Maquiavel e o presidencialismo de coalizão

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Parece-me que o momento pelo qual o Brasil vem passando, bem como o caminho percorrido até aqui, são propícios para se revisitar as páginas dum clássico da Filosofia e Ciência Política. O foco das linhas que se seguem nesta manhã – depois de uma partida de futebol em que o país está sendo representado na competição mundial que se realiza na Rússia – é o livro O príncipe, escrito no começo do século XVI pelo pensador florentino Nicolau Maquiavel (Nicolò di Bernardo dei Machiavelli) – [1469-1527]. Sendo assim, a exemplo do que se faz quando se pretende conhecer algo de alguma coisa, começo interpelando-me e estendendo a pergunta aos meus leitores ou quase isso: o que Maquiavel e sua obra têm a ver com a atualidade deste país que chafurda no lamaçal criado pela corrupção desde antanho tendo como o cidadão como corresponsável?

Para responder essa pequena questão, eu começo a jornada buscando compreender como o atual presidente da República – quiçá sua alta rejeição – chegou até onde está e o que faz para se manter em tal posição. Michel Temer, o “todo poderoso” do MDB nacional não caiu de paraquedas no principal assento do país, mas a partir de um trebelhar político significativo. Há vasta literatura e obras, artigos e reportagens dando conta da temática, por isso, eu tentarei ser breve para não fadigar os meus leitores. Muitos que hoje satanizam o atual mandatário, estiveram na linha de frente defendendo a chapa em que ele figurava como vice-presidente, todavia, bastou ele ser portador daquilo que Maquiavel chama de fortuna – relacionada ao que é fortuito [que acontece pro acaso; não planejado; eventual; imprevisto; inopinado] -, ou seja, sorte – para ser o mais simples possível – que ninguém o escolheu como vice da petista.

Durante a campanha para a reeleição, Dilma Rousseff e o seu partido mentiram descaradamente à nação, atribuindo ao adversário determinadas condutas pós-eleição que ela mesma, antes de assumir o posto, estava tendo, como por exemplo, a política de juros, medidas que atingiram diretamente as famílias que haviam financiado imóveis, veículos e que estavam dependuradas nos cartões de crédito e cheques especiais, sem contar as medidas que os bancos de investimentos e das montadoras poderiam adotar para reaver o veículo quando o comprador atrasasse duas prestações dos automóveis ou quase isso! Corrijam-me os doutos em leis, mas o que entendi é que, para que o bem alienado não fosse retomado pelo banco ou financeira, o devedor teria que renegociar a dívida, não mais com base nos juros contratados no momento da aquisição do automóvel e sim sob o novo percentual definido pela Selic. Procedimento este que inviabilizou o desejo de muita gente em ficar de posse do carro zero quilômetro, havendo situações em que o consumidor vendou o veículo antigo e usou o valor para dar como lance no novo bem móvel: resumo da opera: ficou sem os dois!

Lógico que a política monetarista, adotada pela governante que estava em vias de assumir o segundo mandato – aferido nas urnas e de forma democrática, derrotando o seu adversário visto como algoz das classes trabalhadoras – começou a complicar a gestão que estava por vir e a gestora passou a vir seu percentual de aceitação despencar pelas tabelas – para usar um jargão do mundo futebolístico. Desta forma, Dilma reassume o cargo sem ter condições de se manter de pé, precisando urgentemente do Congresso Nacional – instituição que representa a verdadeira cara do Brasil em suas mais diversas nuanças, inclusive na esfera da política partidária. Mas o que a petista fez, quiçá observações feitas pelo seu padrinho e mentor, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que cumpre a sua sentença de 12 anos de prisão num departamento da Polícia Federal no Paraná? Recusa-se a conversar com os congressistas, virando as costas para o universo da política, mesmo tendo um legislativo ávido por cargos e negociatas de toda sorte!

Temer aguardava ser escalado para fazer a ponte política entre o Palácio do Planalto e as duas piras do Legislativo Federal, mas quando o chamado chegou até os seus ouvidos, foi de forma tímida para não dizer pífia e tardiamente, pegando o então vice-presidente em evidente articulação política diante do fortuito que caíra em seu colo. Daí para derrubar a dama petista do Palácio do Planalto foi questão de tempo, mais para respeitar o espaço legal, evitando assim que ocorressem novas eleições, proporcionando, quem sabe, a vitória do PSDB, dificultando assim um realinhamento do MDB com os futuros novos governantes. Sendo assim, durante a agonia petista na pele de Dilma Rousseff no principal assento na capital candango, o atual presidente foi costurando e edificando sua casa abstrata para tornar-se o próximo presidente duma República mergulhada no que os cientistas sociais designam por presidencialismo de coalizão. Eles atribuem essa adjetivação ao país em que o regime é presidencialista com significativa fragmentação partidária no legislativo, obrigando o Executivo a manter prática semelhante ao sistema parlamentar. Nesta linha, é importante ressaltar que no Brasil, a Constituição Federal dá significativo poder ao Parlamento [voltarei a esse tema em outro momento].

Claro está que, para manter-se onde se encontra, o emedebista transpôs o sistema de coalização para o de cooptação em virtude dos problemas, na esfera jurídica, que rondam o seu assento no Palácio do Planalto. Arregimentado o Congresso Nacional através de diversos artifícios políticos, por exemplo, a compra de congressistas mediante a liberação de emendas, Temer pode continuar acocorado na cadeira presidencial e nas teias palacianas, todavia, deixando a Nação desajustada, cujo desgoverno ficou evidente na recente greve dos caminhoneiros que paralisou o Brasil por duas semanas. É preciso chamar a atenção aqui, não somente para este fato, mas também outros ocorridos em 2017, quando os prédios na Esplanada dos Ministérios começaram a ser atacados e depredados por ensandecidos manifestantes. Michel Temer convocou o Exército para conter o que ele considerava “baderna” e desserviço ao país. Naquele, e em outros episódios, é possível ressaltar outro elemento fundamental presente na obra de Maquiavel e o que se exige de um príncipe – governante, ou seja, a virtú que, traduzindo bem sinteticamente, significa a capacidade de fazer uso de recursos, como os aparelhos repressivos de Estado – Louis Althusser [1918-1990]. Neste sentido, em várias ocasiões o presidente do Brasil se utilizou desse expediente, inclusive a intervenção militar no Estado do Rio de Janeiro é um exemplo do que estou observando. Essa ação impede que seja feita qualquer alteração na Constituição Federal. Portanto, enquanto os coturnos e seus tanques de guerra estiverem passeando pelas orlas cariocas e fluminenses, a Carta Magna continua como está, isto é, uma grande colcha de retalhos e com diversos dispositivos e artigos ainda por serem regulamentados pelos poderes Executivo e Legislativo, obrigando o Judiciário a discorrer sobre matéria que deveria partir do Congresso.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor do ensino superior e médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

 

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