Entre o real e o ficcional

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Começo meu diálogo de hoje com meus leitores a partir de três trabalhos que me auxiliam, entre outros livros que tenho à minha disposição, na reflexão sobre o Brasil enquanto Nação que não se desconecta do mundo global de mercadorias. Claro que o país tem lá suas peculiaridades que o faz ser um local diferenciado das demais partes do mundo, sobretudo por ser caracterizado como um espaço cosmopolita, tendo diversas cidades dentro do conceito de megalópoles, ou seja, grandes centros para os quais se dirigem pessoas do mundo todo em busca de oportunidades de trabalho, bem como de um ambiente propício para se viver melhor. Bom! Feitas as devidas observações iniciais, passarei ao âmbito das respectivas obras e, de como elas podem escudar uma linha de raciocínio que busca compreender o momento pelo qual passa a sociedade nacional que se pensa moderna, contudo, luta para a manutenção de traços e condutas escravagistas e, olha que o fim do regime escravocrata já passa de uma centena de anos, entretanto, ainda são encontrados fortes lampejos de ações que fazem com que o sujeito social mais atento, entende que ainda há brasileiros que se creem naquela sociedade estamental, dividida entre dois extratos, sem a menor possibilidade de mobilidade social: de um lado, havia o escravo e do outro o escravagista e, entre as duas categoriais, o “homem livre” que não era nem coisa e nem outra, mas vivia dos “favores”, dos farelos que caiam do alto do trono do sistema colonial-metropolitano.

O primeiro texto, intitulado Poética, escrito pelo filósofo grego Aristóteles (384.a.C-322.a.C) tem como escopo encontrar uma distinção entre o historiador e o poeta. No capítulo IX, o autor diz que “o poeta conta, em sua obra, não o que aconteceu e sim as coisas quais poderiam acontecer, e que sejam passíveis tanto da perspectiva da verossimilhança como da necessidade”. Desta forma, no capítulo IV: Ideia fixa, de seu romance Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis (1839-1908) poderia muito bem se enquadrar nessa observância no que diz respeito às alegorias das migalhas que caem do alto da bandeira, alimentando outras que tremulam no meio do mastro e em seguida as que ficam eu seu sopé. Acontece que em Esaú e Jacó, também é possível, ao leitor atento, encontrar apontamentos que dizem respeito à passagem da Monarquia para a República como se nada mais tivesse ocorrido do que a mudança de nome do regime, isto é, de Monarquia para a República. Sendo assim, recorrendo novamente a Aristóteles, quando o mesmo diz que “o historiador e o poeta não se distinguem por escrever em verso ou prosa”, mas que tal diferença reside no fato de “que um relata os acontecimentos que de fato sucederam, enquanto o outro fala das coisas que poderiam suceder”, cabe notar que quando Machado publica essas duas obras, a Monarquia tinha acabado de ser exterminada, portanto, o que o escritor pretendia era apenas especular com tais fatos, entretanto, também não é possível afirmar com segurança quais eram as intenções de Machado de Assis neste romance em tela.

Como meus leitores podem observar, somente a partir desse pequeno trecho do livro de Aristóteles é possível produzir uma enxurrada de outros textos que objetivam distinguir o real do ficcional, levando o leitor a fazer a seguinte interpelação: até onde uma narrativa romanesca esconde lampejos do universo concreto, da matéria utilizada pelo autor para compor a sua obra e o que é fruto da imaginação do jogador textual: o escritor? Posto isto, me fica a seguinte pergunta: onde termina a ficção e se inicia o real no universo enunciativo do jogo textual? O segundo ponto: será que uma novela consegue fornecer ferramentas para se pensar determinada realidade social, mesmo que seja na esfera local? Creio que cabe aqui um pequeno excerto a partir da apresentação que o filósofo Abrahão Costa Andrade faz ao livro A ideologias e a utopia, do pensador francês Paul Ricœur (1913-2005). De acordo com Abrahão, “a experiência humana coloca um desafio frontal ao pensamento filosófico”. Segue-se a essa observação, a pertinente indagação: de qual experiência está-se falando, cujo conteúdo é ferramenta para o pensar filosófico? Pode-se citar a seguinte questão como fulcro de uma reflexão pautada na razão, objetivando a verdadeira face de certas verborragias que sustentam movimentos políticos, opiniões teocráticas que se pretendem responder a interpelação que os homens se fazem e também aos seus semelhantes: “por que está aqui se relacionando socialmente com outras pessoas que lhes são diferentes em tudo: desde a essência à pigmentação da pele?”

Antes de buscar, ou pelo menos tentar encontrar, uma resposta a tais interpelações, recorro a terceira obra das que elenquei para conversar com os meus leitores semanais deste jornal e também do meu site [www.criticapontual.com.br.] A obra em tela é a enunciação “Nascido do crime”, confeccionada em tons autobiográficos pelo escritor sul-africano Trevor Noah. Logo no início do enredo, o leitor deparar-se-á com observação sobre o apartheid [segregação em africâner], segundo a qual para alcançar o seu escopo, o regime, que vigorou por quase um século na África do Sul, apostava na alimentação do ódio tribal, ou seja, colocava combustível nas divergências entre os nativos para, desta forma, dominar todos. O interessante a ser notado nessa enunciação é o local de onde o enunciado narra a sua história e dialoga com seu narratário: do ponto de vista pessoal, ou seja, um enredo contado na primeira pessoa, cuja existência é marcada por ser filho de pai branco [suíço] e mãe escura [sul-africana]. Trevor Noah nasceu quase uma década antes da eliminação do regime apartheid, fato que acontece logo após a libertação do líder Nelson Rolihlahla Mandela (1918-2013) – pertencente a etnia Xhosa – que ficou preso por 27 anos, apenas por se opor ao sistema de segregação etnorracial imposto pelo governo da África do Sul a partir da ideia dum pastor protestante branco que conseguiu ser alçado ao cargo de Primeiro-ministro.

Posto isto e, levando em consideração as assertivas aristotélicas dando conta da distinção entre o poeta e o historiador, como é possível analisar a realidade mundial e a brasileira quando o assunto é preconceito racial? Para auxiliar na reflexão acrescente-se a essas obras o livro do ator global, o baiano Lázaro Ramos: Na minha pele. Usei duas observações ficcionais, ou melhor, autobiografias que dizem respeito a realidades distintas, contudo, no Brasil, o preconceito racial ou o etnocentrismo é disfarçado e, por mais que muitos dizem que não há “racismo”, a pratica cotidiana nos aparelhos estatais, principalmente aqueles que existem para cuidar da segurança, desmente qualquer argumento. Lógico que não se pode generalizar, entretanto, quando o cientista social busca compreender a belicosidade dos aparelhos repressivos de Estado, entende como se processa historicamente a repressão e predileção por determinadas pessoas a partir da tonalidade da pele. O jornalista Fernando Molica, ficcionalizou em seu romance Bandeira negra, amor, comportamentos que os dados estatísticos, armazenados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e pelo Fórum Nacional de Segurança Pública, afiançam. Então, me parece que no caso brasileiro, a ficção, em determinados casos, apenas apresenta, através da verossimilhança o cotidiano nacional.

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gildassociais@bol.com.br ;gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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