Entre livros e estantes

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos

         Mais um final de dia na redação e o deadline tinha finalmente passado e as minhas quatro matérias emplacadas. Então estava ali, meio que de bobeira, mas pensando nos dados e informações que deveriam ser levantados para redigir um texto que estamparia as páginas do periódico no próximo domingo e encantar, ou quase isso, os leitores. Desejava inovar no conteúdo e na forma narrativa para aquele final de semana e a temática escolhida foi contaminação por restos mortais. Poderia aqui explicar, em linhas gerais, qual o fulcro do assunto, pois teria que dialogar com médicos legistas, coveiros e tanatopraxistas – aqueles caras que deixam o defunto bonitinho durante o velório para que os parentes e amigos derretam suas últimas lágrimas por aquele corpo inerte.

Mas para não estragar essa crônica, ou coisa parecida, pularei essa parte por não ser o escopo das linhas que se seguem, mas apenas ter o caráter introdutório objetivando explicar o que aconteceu logo depois dessa viagem pelo mundo da preparação dos mortos, conforme preconizavam os egípcios, além dos banhos de leite de rosas que os defuntos tomam para ficarem com aquele cheiro agradável que, misturado ao aroma dos crisântemos, deixará nas narinas dos parentes e amigos, lembranças dos finados. Pois bem, meus caros amigos leitores, enquanto pensava numa coisa e noutra, recebi em meu terminal de trabalho a solicitação para preencher um espaço vago na página sobre cultura e havia urgência pela narrativa para liberação da mesma para fazer “casal” com outra página – quem é do ramo sabe o que significa casar páginas pares com impares.

Perguntei o tamanho que tinha a disposição, fui informado que era de ¼ no standard. Agora sim, ficou claro a quantidade de linhas que deveria produzir num piscar de olhos. Mas de onde retirar tanta história para agradar o leitor exigente daquele caderno? Coloquei-me a pensar sobre o que seria interessante. Não vinha nada de especial, nem mesmo a tentativa de dialogar com um livro, romance ou sei lá o que poderia ser significativo aos leitores daquele matutino informativo. É sempre bom ter claro, meus caros, que o jornal existe não para publicar aquilo que os governantes desejam, mas sobretudo o que almejam esconder dos seus eleitores. Daí a necessidade de se ter uma imprensa livre, conforme os preceitos constitucionais. Entre uma viagem e outra por dentro do meu cérebro e de minha mente, levando em conta que o cérebro é uma coisa e a mente é outra. Se a primeira existe a partir da chamada massa cinzenta, a segunda é mera abstração, para não dizer subjetivação do ser concreto, isto é, daquele humano que, sabendo-se ser incompleto, almeja se completar no outro que se materializa diante de ti usando um invólucro material diferente, ou não, até porque quem diz que duas pessoas do mesmo sexo não podem nutrir entre si verdadeiros sentimentos universais? Mas não foi essa a temática trabalhada na época, já que não desejava me enveredar por uma seara que não conheço muito, como por exemplo, um branco querer opinar sobre coisas e situações raciais vivenciadas pelos descendentes de escravos. Podem até externar alguma coisa, mas o lugar de fala não é o mesmo, portanto, a opinião não abarcará a totalidade da problemática. Mas vá lá, caso almeje emitir um olhar, deverá se municiar de muitos depoimentos e situações, para não ficar no achismo, muito em voga hoje.

Entre um devaneio e outro, recuperei uma tarde de sexta-feira lá dos meus tempos de universitário. Dias loucos aqueles, mas sempre haverá recortes interessantes que podem indicar coisas maravilhosas que ainda estão presentes neste exato momento em que essa crônica, ou coisa parecida, é preparada. Após a aula na parte da manhã e o almoço no bandejão, me desloquei até a biblioteca da unidade para continuar a leitura de um clássico da literatura francesa, mais especificamente o realismo construído pelas enunciações de Vitor-Marie Hugo. Claro que, entre tantos enredos que nos legou, o escritor deixou uma primorosa enunciação designada como Os miseráveis – vale a pena percorrer aquelas páginas. Não vou tratar aqui do conteúdo desse romance, mas dos fatos que se sucederam naquela tarde enquanto eu percorria as costuras textuais confeccionadas pelo francês no século XIX. Quem passou pelo ambiente universitário sabe que as sextas-feiras à tarde os campi parecem cemitérios com poucos discentes e alguns mortos-vivos, já que a maioria aproveita para se deslocar até a cidade de origem e curar as dores da semana no colo da mamãe – não existe remédio melhor do que esse. Digam-me leitores se estou equivocado.

Eu, que vos conto essa história, semelhante a que fiz publicar naquela edição do jornal num sábado, cuja data não me lembro direito, pois o tempo já vai longe, todavia também não tem tanta importância, pois o melhor é o conteúdo da enunciação. Para não enrolar muito ou até mesmo produzir nariz de cera, como se diz no jargão da redação, vou direto ao ponto. Chamarei a principal protagonista desta pequena história de Dolores, apelidada de Duran por conta da cantora Dolores Duran. Não precisam ficar procurando saber se esse é o nome ou não, pois o escopo aqui não é tratar da pessoa, mas do fato e isso é tudo! Sendo assim, estava lá de olho no livro, viajando nos enredos de Jean Valjean quando ela passou diante da minha mesa. Não haveria novidade nenhuma, pois éramos amigos desde os primeiros dias de universidade, então, não me aterei a esses primórdios, mas apenas àquela tarde chuvosa de sexta-feira e suas consequências.

Confesso-te meu caro leitor que nunca a tinha visto usando vestidos, apenas calça jeans e uma camiseta cor-de-rosa. Parecia que só possuía aquela, mas fui informado que Duran tinha mania de comprar várias peças iguais, inclusive encomendado várias delas. Então as cores eram as mesmas, os modelos também, contudo, eram peças diferentes. Coisa de doido, podem dizer aqueles que me leem, mas acho que todos, ou boa parte da humanidade, tem lá suas esquisitices.

Despreguei os olhos do livro e acompanhei os movimentos dela, inclusive como a saia do vestido balançava enquanto a manequim se encaminhava para uma mesa. Não sabia que a amiga tinha sardas nos ombros, detalhes que a deixava mais bela. Sei que estão curiosos para saber como era vestimenta. Digo-vos que havia pequenas estampas em xadrez nas cores cinzas e preto que a deixavam mais encantadora, com alças fininhas. Como Dolores era minha amiga, longe de mim desejá-la como mulher, mas bem que poderia elogiá-la pela beleza que portava naquela tarde chuvosa de sexta-feira. Ela se sentou de um jeito todo especial, cruzando as pernas de fronte para uma estante cheia de livros, de modo que ninguém conseguiria, mesmo de soslaio, ver a cor de sua calcinha ou coisa parecida. Achei aquilo tão sensual, que não resisti. Retornei para a minha mesa e escrevi um bilhete para ela.

Tinha que ser simples e direto e ao mesmo tempo divertido, pois sabia que depois riríamos muito. Ah! Enquanto eu lia Vitor Hugo, Duran percorria com os olhos as páginas do romance Thérése Raquin, do escritor naturalista francês Emile Zola. Pensei, repensei, tornei a pensar e acabei por escrever: “gostaria de ser um desses livros que, aprisionados na estante, esperam ávidos para serem retirados por um leitor ou leitora. Mas enquanto o socorro não vem, eles podem ver os que as calças jeans, que você tanto usa, escondiam. Não só as pernas, mas também a gruta do amor coberta pelo lingerie”. Passei por ela, a cumprimentei, conversando rapidamente sobre amenidades e depois lhe informei que na mesa em que eu estava, havia uma pessoa antes que pediu para eu lhe entregar aquele bilhete. Minha amiga ficou toda encantada e enquanto tentava me arrancar o nome do ser, disse que não podia informar e acabei voltando ao meu lugar. Assim que Dolores percebeu que o autor da pequena missiva era este que vos escreve, caros leitores, foi até a mesa gargalhando, querendo saber o motivo daquele texto. “- Vai me falar ou não? Por que escreveu isso? Sei que não é apaixonado por mim. Então o que foi”, quis saber Duran.

Comecei a rir sem parar e depois é que consegui explicar. “- É que nunca te vi usando vestido, sempre está metida naquele jeans ensebado e camisetas cor-de-rosa que parecem ser a sua segunda pele. E depois, com aquela cruzada de pernas, não tinha como controlar o que ia em minha mente. Fiquei com inveja dos livros que estavam enxergando para além das pernas”.

Dolores retornou à sua mesa e eu continuei a ter a parceria d’Os miseráveis. A leitura foi muito profícua e quando chegava ao clímax da obra, fui despertado pela minha amiga me convidando para irmos embora. “- Essa chuva não vai dar trégua. Vamos que te dou uma carona e, quem sabe, podemos continuar a conversa do bilhete”. A minha resposta foi uma sonora gargalhada porque sabíamos que não ia rolar nada, já que nunca enxergava a mulher, mas somente a pessoa. Chegamos rapidamente até a casa dela. No trajeto, havia sido convidado a degustar uns pedaços de bolo com chá de hortelã. E sabe como é, meus caros leitores, comida nunca devemos recusar.

Enquanto Dolores preparava o café da tarde, fiquei olhando a esmo pela janela da sala. Do outro lado da rua havia um terreno enorme que, se fosse usado com esmero, seria possível construir uma mansão. Fui despertado pelo chamado dela. “- Depois que comermos, vou contigo ver essa chuva da minha janela”.

A refeição durou mais ou menos uma hora e a chuva nada de arrefecer, muito pelo contrário, aumentou de intensidade. Ajudei-a a ajustar as coisas na cozinha e voltei, agora tendo a companhia dela, para a janela observar a água que caia naquela parte da cidade. “- O que você enxerga quando olha a chuva”, perguntou Dolores. Para sacaneá-la, disse que via somente água. “- Está vendo como falta romantismo em sua vida e nunca será um daqueles livros que viu a cor minha calcinha quando eu cruzei as pernas”.

Ao ouvir essa resposta cai na gargalhada. Ela continuou olhando para a chuva e para o nada, até que me disse que no meio do terreno, defronte à sua casa, tinha uma placa de madeira com algo escrito. Era para eu ir lá, ler o que estava enunciado na tabuleta, voltar e informar-lhe. “- Estais doida mulher? Acha mesmo que foi me encharcar de água para satisfazer um capricho seu?”. Dolores foi enfática, ao dizer: “- Se me amasse iria lá e retornaria com um enorme sorriso”.

Diante do que Duran disse, expliquei que se quisesse eu daria o imenso sorriso ali naquele momento, sem precisar me molhar. Do nada, ela me perguntou: “- Quem roubou seu coração e colocou no lugar um tijolo”. Antes mesmo que eu respondesse, ela sugeriu que tomássemos mais chá com bolo e lá fomos nós novamente para a cozinha eliminar o vácuo estomacal naquela tarde chuvosa de sexta-feira, enquanto conversávamos sobre Zola e Vitor Hugo, isto é, sobre o naturalismo e o realismo na literatura da França Oitocentista.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com. www.criticapontual.com.br.

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