“E daí?”

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Começo o texto desta quinta-feira tentando recuperar, através das minhas memórias, uma grande quantidade de informações, – transformadas em conhecimentos – obtidas durante o curso Teorias da Globalização que fiz nos meus tempos de UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas) – mais especificamente no IFCH [Instituto de Filosofia e Ciências Humanas] pertencente àquela instituição de ensino superior brasileiro. As aulas foram ministradas pelo sociólogo Octavio Ianni (1926-2002). É justamente das intervenções feitas naquele período pelo cientista social e professor emérito que retiro o título do artigo de hoje. Mas por que nomear a presente reflexão com uma interpelação? Não é necessário tergiversar muito sobre a resposta, pois ela é simples, já que o sociólogo da UNICAMP, que deixou obras singulares Estado e Capitalismo na qual afirma que o Estado brasileiro “se configura como um instrumento decisivo de coordenação e ação em todas as esferas da economia” [somente essa observação vale significativas análises, contudo, não vou me atentar a elas aqui neste espaço] -, buscava ser simples em suas enunciações pedagógicas e abordagens metodológicas com a interpelação que intitula os parágrafos de hoje.

Interessa-me aqui resgatar parte daquele curso porque Octavio Ianni propunha a todos matriculados na disciplina um desafio dentro das ciências sociais e seus principais princípios metodológicos: o funcionalismo de Emile Durkheim e o seus fatos sociais compreendidos como coisas e externas ao homem, portanto, agindo coercitivamente no viver social dos seres humanos; o materialismo histórico e dialético de Karl Marx, através do qual este analisa a sociedade a partir de seus sucessivos modos de produções materiais e de sua historicidade, pois o homem faz a sua história, contudo, pelas condições sociais existentes e não como o deseja, por isso, determinadas mudanças só seriam possíveis no curso da história e do viver dos indivíduos através de ações humanas; e por fim, a sociologia compreensiva de Max Weber e as construções tipológicas por meio das quais é possível ao cientista social entender o mundo que analisa a partir das ações sociais dos sujeitos objetivando um fim específico, cujo resultado alteraria completamente o motor da história, como ocorreu com reforma protestante iniciada pelo monge dominicano Martim Lutero em 1517 através de suas teses contra as indulgências.

O desafio proposto por Ianni a todos os estudantes, ávidos para sorverem o máximo de conhecimento possível daquele emérito cientista social, era apontar uma saída para os dilemas e mazelas perpetrados à sociedade pela globalização do mundo que pode ser definida em linhas gerais como fenômeno que “expressa um novo ciclo de expansão do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório de alcance mundial. Um processo de amplas proporções envolvendo nações e nacionalidades, regimes políticos e projetos nacionais, grupos e classes sociais, economias e sociedades, culturas e civilizações. Assinala a emergência da sociedade global, como uma totalidade abrangente, complexa e contraditória. Uma realidade ainda pouco conhecida, desafiando práticas e ideais, situações consolidadas e interpretações sedimentadas, formas de pensamento e voos da imaginação”. Essas observações abrem o livro A era do globalismo publicado por Octavio Ianni em 2001.

Diante do exposto acima e para não deter-me em demasia em digressões desenfreadas e sem conexão de sentido com o Brasil e o mundo desta segunda década do Terceiro Milênio, vou direto ao ponto, pois a globalização transformou tudo, levou a vida para o centro da estrutura financeira e do mundo virtual, contudo, ainda assistimos comportamentos atrozes e outras bizarrices, como por exemplo, a execução, segundo informações preliminares, de cinco pessoas em Mogi das Cruzes, cujos corpos foram recentemente encontrados pelas autoridades de segurança do Estado. “E dai?”. Execuções e assassinatos de jovens ocorrem todos os dias nos mais de cinco mil municípios brasileiros, muitos envolvidos com o mundo do crime, outras vítimas inocentes da truculência do cotidiano, fruto duma crise humana sem precedentes. “A crise profunda da civilização ocidental, a crise dos valores individualistas e das esperanças que os sustentavam, manifesta-se, entre outras coisas, numa crise de ação e também, como vimos, numa crise de amor, crise geral de valores em que apenas uma atitude sobrevive: o conhecimento”. E o que nos relata o sociólogo Lucien Goldmann em: A sociologia do romance.

Essas indagações de Goldmann nos reportam ao romance Bandeira negra, amor escrito pelo jornalista carioca Fernando Molica e objeto central do artigo Violência policial e racismo em Bandeira negra, amor que recentemente publiquei na revista do Laboratório de Estudos da Violência e Segurança [LEVS], pertencente a UNESP (Universidade Estadual Paulista), campus de Marília. O enredo aborda a execução de três adolescentes negros e moradores do morro do Borel, no Rio de Janeiro. “Embora a enunciação esteja no campo ficcional, suas abordagens possibilitam aos leitores compreenderem que a mesma reproduz o cotidiano de muitos indivíduos que habitam as regiões mais pobres das principais cidades brasileiras”, como é o caso desse crime ocorrido em Mogi Guaçu. O autor do enredo consegue atingir esse propósito porque “[…] o poeta só é poeta porque se vê cercado de figuras que vivem e atuam diante dele e em cujo ser mais íntimo seu olhar penetra”, de acordo com que Friedrich Nietzsche nos diz em seu ensaio O nascimento da tragédia, helenismo ou pessimismo. Isso é possível também porque a “[…] a leitura é para nós a iniciadora cujas chaves mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não saberíamos penetrar […]”. Desta forma, Marcel Proust (8171-1922) quer indicar que acessar narrativas ficcionais como as de Fernando Molica significa se enveredar por universos distantes, porém, concretos, conforme aponta as páginas iniciais do romance Casa de pensão, de Aluísio Azevedo. Ali o leitor encontrará, de forma explicita a violência e sevicias que os escravos domésticos e dos eitos eram submetidos por qualquer falta praticada. Lamentavelmente tais agressões estão resinificadas simbolicamente no Brasil de hoje.

Enfim, retomando o título do artigo desta quinta-feira, o leitor deve estar se perguntando: “e daí, o que fazer?”. Como mudar esse quadro dantesco profundamente encalacrado até a raiz em sucessivas crises? O cidadão comum deve fazer como o Barão de Münchhuasen que, atolado juntamente com o seu cavalo num pântano, sai do lodaçal puxando-se pelos próprios cabelos? Essa interpelação, reservada as devidas proporções, me parece semelhante ao desafio proposto em meados da década de 90 do século XX pelo sociólogo Octavio Ianni aos seus alunos no IFCH. Desta forma, conter esse rastro de violência que, sobretudo, tem, segundo aponta a advogada e coordenadora do SOS Racismo da Assembleia Legislativa paulista, Eliane Dias, como vítimas principais as populações negras. De acordo com os apontamentos que ela fez em entrevista publicada pela revista Cult, “hoje, nós temos trinta mil jovens negros assassinados por ano neste país. Mais do que em qualquer outra guerra, jovens negros são assassinados”. Observações que devem ser consideradas por toda uma sociedade egocrata que se intoxica de consumismo usando extremamente o pronome possessivo “meu”.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, sociólogo, professor no ensino superior e médio em Penápolis. Pesquisador do Grupo Pensamento Conservador – UNESP e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS-UNESP. Escreve às quintas-feiras neste espaço: www.criticapontual.com.br. E-mail: gilbertobarsantos@bol.com.br, gilcriticapontual@gmail.com, e social@criticapontual.com.br.

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