Afinidades democráticas

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Começo a reflexão de hoje escudando meus argumentos num excerto do livro A política em tempos de indignação: a frustração popular e os riscos para a democracia, escrito pelo cientista político Daniel Innerarity – recomendo a leitura para aqueles que querem saber mais um pouco sobre esse universo e ter condições de opinar sobre essa emblemática temática. “A democracia é um sistema baseado na experiência de que, por mais segura que a maioria triunfante esteja, convém sempre ter por perto a minoria perdedora como último recurso, para assim haver uma alternativa no caso de, como de resto costuma acontecer, as hegemonias vigentes se esgotarem, as razões vacilarem e as maiorias se desgastarem. É o mesmo, em última instância, que ter a certeza de que não existe nada de permanente e que seja imune ao desgaste e ao questionamento” (INNERARATY, D. Rio de Janeiro: LeYa, 2017, p. 82). A partir desse fragmento, permaneço com a seguinte interpelação: por que o sujeito social tem medo da democracia, principalmente quando ela pode colocar no poder o seu adversário ideológico?

Para tentar responder essa singela pergunta, recorro ao escritor russo Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881), para quem o homem social é incapaz de tolerar a liberdade e está disposto a trocá-la pelo líder que lhe garanta pão e segurança. Essa observação, que cabe bem para os tempos do império romano e sua prática política do pão e circo, tem grande repercussão no presente, seja aqui do Brasil ou em algumas paragens do orbe terrestre onde a democracia liberal entrou em curto circuito pela incapacidade de congregar todos nos ganhos advindos do capital em sua fase financista, associados ao avanço tecnológico e a Revolução 4.0. Isso é a consequência da ausência de preparo de alguns conglomerados populacionais para uma nova etapa do capitalismo. São os filhos do falido Welfare  State (Estado do bem-estar social) – recomendo aos meus leitores o livro de Adam Przeworski: Capitalismo e social-democracia – que, diante do fim dessa política criada nos fins da II Guerra Mundial para reerguer a Europa destruída pelas forças contrárias e favoráveis à democracia, ou seja, a liberdade versos totalitarismo, viu-se na eminência de sua nadificação diante do crescimento de uma forma muito peculiar do mundo financeiro, escolhe aquele líder – populista – que diz que trará os empregos perdidos de volta e os tempos de bonanças tragados pela globalização.

É interessante notar que esse fenômeno na política não é novidade, pois quando a Alemanha sai destruída da I Guerra Mundial (1917), aparece um político com discurso virulento prometendo uma Alemanha forte e o faz isso apelando para o Volkgeist, isto é, o espírito germânico, apresentando um Exército imponente personificado na SS e desfiles magnânimos que lembram muito os exércitos romanos. Paralelo a ele, aparece na Itália outro indivíduo que, dourando um discurso, promete a mesma coisa: todos já sabem as consequências: sanguinárias disputas, truculências, totalitarismos, perseguições àquele que pensa diferente – deve ser acrescentado aqui os acontecimentos na antiga União Soviética com o slogan “todo poder aos sovietes” e os campos siberianos. As questões envolvendo o retorno ou a permanência de práticas populistas, agora em âmbito global – o que me permite chamar de globalização do populismo/nacionalismo -, podem ser encontradas na obra A razão populista, do cientista político argentino radicado nos Estados Unidos, Ernesto Laclau. Se esta prática, conforme apontei no início deste parágrafo, é transnacional, não há porque se espantar quando ascende ao poder governantes federais como ocorreu no Brasil, EUA e em alguns países europeus e também na Turquia, Recep Tayyip de Erdogan.

Todavia, quando se olha para o passado o que se aprende com ele, no afã de não repetir as tragédias pretéritas como aquelas que recheiam as páginas da História do Homem na Terra? Que a história se repete: uma vez como farsa e outra como tragédia, conforme já apontava o pensador alemão Karl Marx (1818-1883) na Europa Oitocentista castigada pelo avanço do capitalismo industrial e suas constantes transformações no campo manufatureiro, a exemplo do que acontece hoje em que as mudanças provocadas pela robótica colocam grandes contingentes de pessoas nas filas dos desempregos a esperarem uma nova oportunidade, de acordo com as afirmações feitas pelo professor da USP, Paulo Arantes em seu mais recente livro Novo tempo no Mundo. Diante dessa realidade, o que resta aos sujeitos que se encontram nessa situação? A volta dos tempos dourados e, aquele cidadão-político que promete o retorno ao paraíso do consumo, do status e dos benefícios conquistados graças as políticas assistencialistas das sociedades escudadas no estado do bem-estar social, conquistará o coração do eleitorado. E para que isso possa acontecer, a exemplo do que aconteceu durante o período nazifascista na primeira metade do século XX, é preciso construir um “inimigo” para ser “satanizado” e posteriormente comercializado no feirão eleitoral que acontece de tempos em tempos, como aqui no Brasil em que a cada 24 meses o cidadão é chamado a optar por uma mercadoria-política que promete a segurança do pão e do circo, isto é, da barriga cheia e a cabeça plena de penduricalhos que faça o sujeito social, sem cidadania, existir de forma efêmera, até porque o próprio capitalismo, de acordo com as observações feitas por Karl Marx em um livrinho-panfleto chamado O manifesto do partido comunista, se dissolve no alvorecer de um novo dia, prometendo prazer sem fim, mesmo que o indivíduo saiba que no final do expediente a coisa será diferente, conforme apresentou Platão em sua alegoria da caverna e Homero em sua ode em prol do périplo de Odisseu, Odisseia.

Diante dum quadro assustador semelhante ao descrito nas linhas acima, o que se esperar duma massa incauta e desprovida de sentido político e senso crítico? Cometer os mesmos erros do passado, mas prometendo que desta vez será diferente? Parece-me que não é possível esperar resultado diferente quando se faz a mesma coisa. Por exemplo, em 1989 a votação no Brasil ocorria por meio de cédulas impressas e urnas de lona, em 2018, o processo contou com dispositivos eletrônicos e mais seguros, contudo, as escolhas seguiram os mesmos figurinos de outrora, ou seja, pautadas no Salvador da pátria e no caçador disso e daquilo: no pretérito, o slogan era “caçador de marajás”; no presente a palavra de ordem era acabar com a corrupção – não quero nem pensar nas consequências, pois o quadro que se avizinha não é alvissareiro para a democracia, pois conforme indicou o ex-presidente e cientista político, Fernando Henrique Cardoso, tão satanizado pelo atual mandatário, desde a redemocratização em entre 1984 e 1988, de todos os presidentes eleitos, dois foram depostos e um está na cadeia, cumprindo pena, cuja sentença é sempre lembrada pelos defensores do atual governante: coisas da democracia, mesmo que estes, de vez em quando, flertam com atitudes e propalações contrárias à Constituição Federal: coisas de Brasil, Nação que ainda vive a longa transição do mundo escravagista – da Casa-Grande e da Senzala – para o universo do homem livre e da plena liberdade. Embora o país tenha um longo caminho a ser percorrido, inclusive deixando o âmbito senzaleiro para o do capitalismo e do liberalismo, ainda que engatinhando, a democracia é sempre melhor do que totalitarismos pautados na tese do pão e circo romano. E que todos aqueles que desejam um país livre se coloque ao debate franco e escudado na razão, conforme pretende os mais importantes filósofos desde os pré-socráticos.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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