Conexões entre ficção e realidade

Gilberto Barbosa dos Santos

 

O que é necessário para um país sair do atoleiro em que se encontra? Quem respondeu que não é preciso muita coisa, basta haver cidadãos com cidadania, acertou! Entretanto, o trabalho se torna complexo quando se pensa nos mecanismos e ferramentas que possibilitem a passagem duma condição à outra, isto é, do indivíduo para o cidadão pleno, mas não no sentido de ter todos os direitos, sejam eles políticos, sociais e civis, mas, sobretudo que saiba usá-los no momento apropriado.

O jurista brasileiro, Ruy Barbosa (1849-1923), disse certa vez que um país se faz com homens e livros. Será que ele estava com a razão? Será que um indivíduo aprisionado dentro duma biblioteca feito Visconde de Sabugosa – personagem criado por Monteiro Lobato (1882-1948) para a saga do Sítio do Pica-pau Amarelo – ou o Luiz Corujão – que ilustrava a revista A Nossa Ilha distribuída no final dos anos 70 do século XX pelo Governo Federal – teria condições de avaliar corretamente o mundo descortinado por ele, após passar anos a fio circulando apenas entre os livros e criando um mundo que lhe saltava das páginas das coleções, romances e outras publicações? O escritor francês Marcel Proust (1871-1922) afirmou certa vez que a leitura abre portas que, sem esse hábito, dificilmente descortinariam. Sendo assim, aquele sujeito que passa o dia envolto em livros e muitas obras literárias, teria condições de analisar melhor uma determinada realidade do que àquele que não consegue terminar a leitura dum livro num espaço de 365 dias.

Além do hábito de leitura, o indivíduo precisa ser portador de determinadas habilidades e ferramentas que os permita fazer uma conexão de sentido entre a ficção e o real, ou seja, entre o abstrato e o concreto. Desta forma, por exemplo, a leitura de O tronco do ipê, de José Martiniano de Alencar (1829-1877), possibilita ao leitor revistar uma velha fazenda cafeeira no norte fluminense, também entender como eram as relações entre escravos e escravagistas naqueles anos de tensão e, como o narrador inventado pelo romancista, conservador e defensor da Monarquia que havia rompido com o Império, via aquelas relações e a cordialidade, ou seja, a aceitação do africano de sua condição, a exemplo do que narra Platão em seu livro A Política, poderia servir para colocar fim ao cativeiro. Claro que a pena e a escrita alencariana são utópicas. Alencar acreditava que, assim como em suas enunciações indigenistas, o escravo, o negro, o preto ia se sujeitar, depois das sevicias sofridas e praticadas por escravagistas empedernidos décadas a fio, à cultura da violência do branco, aceitando os preceitos civilizacionais que este dizia ser portador.

Aqui me ocorre os trabalhos do pensador inglês, o jusnaturalista Thomas Hobbes (1588-1679), Leviatã e Do Cidadão. Para o meu escopo aqui me restringirei ao primeiro livro que é dividido em três partes: uma matemática, a segunda biológica e somente a terceira diz respeito ao universo da política e da Filosofia e a formação dum Estado abstrato, objetivando tirar os homens do seu estado natural no qual se tornam lobos dos próprios lobos – usando a alegoria hobbesiana. Lógico que ele ficou conhecido por essa observação, entretanto, faz-se necessário debruçar-se sobre a obra como um todo para entender o que o autor pretendia afirmar a partir dessa afirmativa. Desta forma, creio ser possível, mesmo de forma lacônica, apresentar uma leitura sobre a parte em que Hobbes trabalha o lado biológico do ser, segundo a qual o indivíduo pode agir como animal irracional conduzido pelo instinto e ai, talvez as teses defendidas por José Alencar de uma transição tranquila entre o trabalho escravo e o livre, assalariado nos moldes sonhados pelos capitalistas ingleses do século XIX, não seriam possíveis.

Posto isto, a pergunta que não quer se calar é a seguinte: será que um sujeito, uma etnia, um povo ou seus descendentes aceitariam de bom alvitre que outra pessoa lhe açoitassem constantemente o dorso objetivando civilizá-lo? Será iria conviver pacificamente com o branco e agradecido pelas chibatas recebidas durante os momentos de rebeldia? As interpelações têm sentido, quando se observa que nenhum sujeito social nasce com aptidão para ser escravo, conforme Platão nos apresenta em Política. Desta forma, me parece que as enunciações romanescas alencarianas, principalmente aquelas que diziam respeito ao elemento africano, beiravam a utopia, todavia, são significativos enredos que possibilitam aos seus leitores deste século XXI, entenderem como se davam as relações entre senhores e escravizados. Lógico que nas mais de milhares de propriedades rurais e urbanas espalhadas pelo Brasil todo, era possível encontrar africanos que não eram maltratados pelos proprietários, inclusive vários que não viviam mais sob o auspício de seus senhores, optando por morarem fora do cativeiro pagando aluguel para seus proprietários. Essa realidade pode ser detectada na ficção O cortiço, de Aluísio Azevedo (1857-1913). Ali o leitor encontrará de tudo um pouco, lavadeiras, capoeiras – naquela época essa adjetivação era negativa e dava ao seu portador a característica dum fora da lei -, prostitutas, homossexuais, imigrantes, todos rejeitados pela sociedade carioca da época do Império.

Bom! Pelas enunciações acima retiradas de alguns clássicos da literatura brasileira e universal e outros textos filosóficos, meus leitores devem estar se perguntando: o que faço com isso? Em primeiro lugar, entender que aquele passado, retratado em diversas obras, não ficou lá no ontem, conforme Machado de Assis (1839-1908) diz que na época medieval havia as arraias que se apegavam aos muros dos castelos vivendo a partir do que as paredes lhes serviam. Passou o medievo como consequência de vários acontecimentos, entre eles, o surgimento do capitalismo em sua primeira fase mercantil, ampliado com as navegações e os descobrimentos de novos continentes, desembocando na Revolução Industrial e Revolução Francesa, a situação pouco mudou, ou seja, se foram os castelos, mas as arraias e suas práticas permaneceram e deram as caras aqui no Brasil. O romancista José de Alencar já denunciava esse hábito numa série de cartas que endereçou ao Imperador D. Pedro II denunciando o assalto aos cofres da realeza praticado pela plutocracia brasileira associada a uma burocracia aristocratizada. Novamente, se foi a Monarquia, chegou a República, mas o ethos plutocrático em conluio simbiótico com a casta encastelada nos primeiros escalações da vida administrativa federal se manteve e continua sangrando os cofres públicos, se apropriando de forma privada do que é coletivo.

Enfim, essa pornochanchada entre o público e o privado que existe desde os primórdios da República precisa terminar. A questão é: como encerrar esse filme de terror em que todos os pobres morrem no final e os morcegos, que habitam os escombros dos mais diversos palácios governamentais e paços municipais, continuam opulentos e intocáveis em suas tocas recheadas com o dinheiro do contribuinte? Só depende de uma coisa: do brasileiro do início desta narrativa se tornar cidadão de fato e de direito e, antes de ficar se digladiando por extremistas e candidatos truculentos, começasse a observar com muita acuidade que, passos errados nos momentos eleitorais podem acabar com a paz de um país. Olha os equívocos nas últimas eleições presidenciais e para o legislativo nacional e, depois para os Executivos municipais e suas respectivas câmaras de vereadores.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor do ensino superior e médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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