A ferrovia de Heitor e outros lobos

 

 

 

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Imagem/Gilberto Barbosa – Ferrovia marca o início da cidade

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos

 

Perambulava pelas minhas ruas cerebrais que ocupavam todo o espaço existente dentro da minha caixa craniana quando resolvi que era preferível dar alguns passos pelas vias concretas e ser um transeunte normal. Já vos disse leitor que andar pelas vielas, praças e avenidas da nossa cidade é um exercício histórico? Se não disse, então te faço essa recomendação e deve dar tal passeio antes que todos os logradouros que lembram o nosso passado vão ao chão para dar lugar aos modernos conglomerados arquitetônicos, mesmo que eles não passem de dois andares, mas dá ao cidadão comum a sensação de modernidade e conteúdo para discursos verborrágicos de nossas autoridades políticas.

Mas deixemos de lado essa parte horrível do passeio pela cidade que surgiu como prolongamento da Estrada de Ferro que o progresso trouxe, mas também aprisionamento das populações nativas e desmatamento de longos trechos de florestas. Tristemente as gerações futuras conseguirão acessar esse passado somente através de fotografias ou por meio de desenhos psicografados. Bom! Eram essas as minhas reflexões quando percebi que estava próximo a um grande calçamento de paralelepípedos e um amontado de moleques que esmolavam.

Eles não queriam pães, semelhantes àqueles que Jean Valjean – celebre personagem imortalizado pelo realista francês, Victor Hugo – roubou para alimentar os sobrinhos. Eles desejavam era, pelo menos uma dezena de reais e pelo estado físico e presumo mental, já que estavam em andrajos, os esmoleiros desejavam outra coisa que pudesse saciar outro tipo de fome. Disse-lhes que fossem à prefeitura ali perto e pedisse algo com que pudesse saciar a fome.

O líder da matilha disse-me: “Tio, nóis tem outro tipo de fome que só sai da gente com umas pratinhas! O senhor não tem? Eu e meus amigos estamos que não comemos faz uns três dias e ficamos andando para lá e para cá a procura de um prato para sentar em cima, como se fossemos mosca no melado!”.

– Já disse! Não tenho dinheiro e a única que posso oferecer-lhes é orientação, como a que acabei de apontar. A prefeitura fica aqui pertinho. Vão lá e com certeza, vocês vão comer.

– É tio. O sinhô não entendeu! Então a coisa vai ficar nervosa pro seu lado! Passa a carteira e pronto! Só assim pra nóis comê Ou o dinheiro ou a vida?

Sem pestanejar muito, deixe-lhe a carteira, repleta de recortes de jornais e restos de recados que sempre anotava. Números de telefones de pessoas que sabia que nunca iria ligar. O único prejuízo foram os  documentos, mas como estava perto da delegacia de polícia, fui até lá e fiz um boletim de ocorrência, só para evitar aborrecimentos futuros por conta da ausência dos documentos, já que teria dor de cabeça para fazer outros – não que eram muitos, consistia apenas em RG e CIC. A carteira de trabalho há muito estava jogada dentro de uma mala que quase nunca abria, já que nunca conseguia trabalho e vivia da ajuda de vizinhos e da caridade dos familiares que me deixavam morar na casa. Acho que era mais barato para eles do que me ter o dia todo dentro de casa, a ler desenfreadamente tudo que me caísse às mãos.

Feita a ocorrência, o negócio era voltar para casa, mas resolvi fazer o caminho pelo qual que eu podia divagar vendo os prédios antigos e os casarões que abrigaram muitas festas e pompa de uma elite que há muito se foi, seja tragada pela morte ou pela miséria e olha que pode ser a financeira, a moral e a ética ou tudo junto, pois sem não houver um mínimo de princípios éticos e morais, não há fortuna que resista a hipocrisia dos herdeiros. A fortuna vai-se, mas ficam os prédios a resistir as interpéries da vida e a avidez da modernidade, mas fazer o quê, num mundo que o dinheiro fala mais alto, quem está ligando para o passado e o que os imóveis guardam? A Internet pode preservar tudo, afinal tem um servidor nas nuvens que tudo armazena desde histórias picantes a fotos de famílias e outras bugigangas dignas de museus históricos. Desta forma, para que ficar com prédio velho em pé? O único que resiste é a velha estação que trouxe muitos imigrantes migrantes a essa terra que acabou comendo seus corpos sepultados na necrópole municipal.

No meio do caminho, resolvi voltar a fazer a rota antes traçada, mesmo que inconscientemente, passei pela rua em que ficava a estação. Larga e movimentada. Davam para passar dois caminhões carregados de coisas: sacas de feijão até os carros importados que muitos doutores, de outrora, mandavam vir da capital do Estado para marcar o seu mandonismo, a exemplo de Mundinho Falcão, personagem do romance Gabriela, cravo e canela, do bom baiano Jorge Amado. Mas isso são coisas lá do passado, como a composição O trem caipira de Heitor Villa Lobos. E por falar nele, um cara que fica o dia inteiro sentado na frente de uma estalagem que localiza-se bem defronte a uma passagem que dava para a estrada de ferro e era usada pelas pessoas para encurtar caminho até o centro da cidade, estava ouvindo esse louvor à música brasileira.

Gosto da música dele, mas prefiro o Guarani, de Carlos Gomes. Talvez por conta do programa radiofônico A voz do Brasil. Acredito que o leitor não esteja interessado nessa voz e nem outra que possa parecer com os nossos políticos sempre a prometer o que não vão realizar, mesmo porque se realizarem acaba a plataforma e o quinhão de mentiras que vão apresentar na próxima campanha eleitoral.

Ao mesmo tempo em que me alegrei com Villas Lobos – pensando no cara que morreu por conta de Helena que provocou a guerra de Troia, me entristeci ao ver que a estação ferroviária prometida ser outra estação – quem sabe a de cultura – virou covil de esmoleiros e os pivetes que me assaltaram estavam ao lado de um ser que parecia controlar os trabalhos de esmolas e roubos.

– Olha Tição! Você faz cara de miserável e pede uns trocados. Nunca aceite comida, pois aqui tem. Sempre diga que dinheiro é melhor, pois com ele você pode comprar o que acha mais gostoso para o seu estomago. Às vezes você quer comer aquilo que o filho dos ricos estão comendo ou tomando, como um sorvete. Mas é preciso fazer olhar de cachorro piedoso. Não falha! Sempre haverá um bestalhão que dará o dinheiro. Se for nota pequena, tome a carteira dele e corra para cá.

Não sabia para onde ir, tamanha hipocrisia deste sujeito que aliciava menores para pedir para ele em troca de drogas e promessas de uma vida melhor. E o pior de tudo é que as autoridades sempre diziam nos programas radiofônicos que a mendicância em nossa cidade estava controlada, mas bastava sair às ruas para ver que tudo não passava de mero palavrório e jogo microfônico. A verdade era outra e o exercito de esmoleiros crescia na medida em que o tempo avançava lá pelos lados natalinos.

Local para abrigá-los não faltava. Dinheiro também não. Comida dava-se se um jeito, quando a fome apertava com o estomago ameaçando engolir os órgãos irmãos, como as tripas numa espécie de batalha antropofágica, lá ia correndo os esmoleiros para uma espécie de casa de transição. Comiam, trocavam de roupa e voltam para as ruas. Se o frio era intenso, ficava-se ali até a tempestade fria passar e depois se ganha o mundo, onde tudo pode acontecer, até mesmo a sorte de um dia poder encontrar um bilhete premiado. Eita sonho besta! Mas o mundo estava repleto de história assim… se verdadeiras ou não, eu já não sei, mas que iludia os desafortunados, ah isso enganava.

Mesmo sofrendo fiquei ali um tempo parado observando aquele prédio que muita história tinha para contar, mas infelizmente as paredes não podiam falar, apenas as pessoas e essas estavam ocupadas demais em ludibriar o povo e esse povo sonhando demais para saber que na velha estação ferroviária morria a cada dia e a cada mendigo que chegava o passado de uma cidade que tenta ter futuro, mas ele não chegará somente através dos modernos prédios, mas também de ações sociais eficazes e preservação da memória. Mas para quem pensar na memória, se ela falha na maioria das vezes em pessoas de carne e osso, o que dirá em prédios em ruinas cujo único sentido é servir de moradia a quem não tem mais nada, somente o velho corpo em andrajos.

Por hoje é só meu caro leitor, fico por aqui esperando que o próximo trem chegue logo e me leve ao ontem ou ao futuro dessa sociedade, pois o presente, sem a velha locomotiva já não me encanta mais, restando apenas apelar para as minhas memórias, antes que elas entrem em ruina como os velhos vagões que estão abandonados por esses milhões de trilhos espalhados por esse país a fora.

Depois de tudo o que eu vi, resolvi voltar para casa e tentar achar o meu disco do Heitor Villa Lobos e ouvir o trem caipira e tentar encontrar o Heitor antes que ele morra para dizer-lhe que não vale a pena morrer por Helena ou por quem quer que seja, já que o melhor é viver enquanto se pode, depois resta o ontem dentro da cabeça e um medo terrível do presente, pois o futuro nunca chegara. Caso não encontre o Heitor, vou mesmo de O guarani ou também vou de nada, deito em minha cama para tirar o meu cochilo da tarde a espera da abençoada chuva, pois o calor está infernal, herança da cana que tem sugado muita coisa das famílias, pois quando ela está no copo acaba com a esperança de muitas famílias evaporada no bafo da cachaça.

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