Minhas janelas e outras portas

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos

 

Para contar aos meus leitores a maneira como enxergo o mundo através da janela de minha alma, e aqui não tem nada a ver com questões religiosas, mas sim a partir da definição de pensador grego Platão dá ao termo, categoria analítica, ou melhor, filosófica, isto é, o que anima o indivíduo, começo pela observação feita pelo filosofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831)  em seu livro Estética – a ideia e o ideal (São Paulo: Nova Cultural, 1991), segundo a qual “a obra de arte provém, pois, do espírito e existe para o espírito” (p. 35). Entendo aqui que, a exemplo do que externei no âmbito platônico, o entendimento hegeliano indica que se compreende por “espírito” a ideia, mais especificamente o que faz a pessoa ser o que se é enquanto fruto do processo histórico. Desta maneira, me parece que quanto mais o século XXI se solidifica, mais o pensamento humano se escraviza na época medieval. E aí fico com aquela pergunta a me martelar: por que será que isso esteja acontecendo?

A resposta pode parecer ser simples, entretanto, o intrincado sistema de fatores sociais, filosóficos e porque não religiosos pode ser útil na caminhada, mas não pretendo me deter especificamente em nenhum deles nessa breve narrativa, cujo objetivo é tentar entender os motivos que levam o homem a estar com um olho no devir que é construído no agora, no presente, e a cabeça no passado, para onde deseja retornar na medida em que a vida avança em direção ao amanhã recheado de penduricalhos tecnológicos, esgarçando as relações humanas, as reduzindo a meros algoritmos sonoros e sentimentais. Para solidificar minhas enunciações, bem que poderia desfilar aqui um arrazoado de autores, escritores e demais narradores que tentam, a exemplo do que objetivo nas linhas que se seguem, entender os tempos atuais em que tudo se dissolve na medida em que o homem busca solidificar coisas e situações, mas ao mesmo tempo, se esvaindo com a onomatopeia apresentada pelos relógios analógicos e, porque não, os digitais também. Mas nem só de reprodução musical dos objetos que nos cercam cotidianamente se faz a vida humana na Terra, até porque a tentativa de se recriar a sonoridade que existe no mundo, o ser que se deseja humano, constrói signos com significados e uma miríade de significantes para justificar a sua tentativa de domesticar o seu semelhante, seguindo aquilo que consegue realizar com os animais domésticos.

Mas, mesmo fazendo o alerta de que não usarei aqui um ou outro pensador, penso que seja interessante arrolar um pequeno fragmento do livro de Friedrich Nietzsche (1844-1900), no qual este pretende compreender a obra de arte sob a perspectiva do mundo na Grécia Antiga. Segundo ele, “o poeta só é poeta porque se vê cercado de figuras que vivem e atuam diante dele e em cujo ser mais íntimo seu olhar penetra” [O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 59]. Trocando em miúdos, como se diz no jargão popular, pode-se afirmar que, reservada as devidas proporções, Aristóteles já havia observado essa questão no seu livro Poéticas [São Paulo: Abril Cultural, 1999, p. 47] e posteriormente Walter Benjamin (1892-1940) ao indicar a eliminação do caráter aurático da obra de arte. Todavia, Hegel também, no fragmento que utilizei no começo desse texto, esmiúça um pouco mais essa querela de se dizer algo por meio da expressão estética, indicando o presente em que se vive. Neste sentido, fico cá, meus caros leitores, tentando entender porque as relações do presente são tão efêmeras, indicando que a solidariedade mecânica, tão bem definida por Émile Durkheim (1858-1917) não existe mais. Será que a certeza das desconstruções dos laços afetivos, tão bem definidos pelas autoridades patriarcais, para não dizer medievais, tem levado o homem a se fixar mais no passado, num desejo atroz de retroceder ao já conhecido mundo arbitrado por figuras ou sujeitos sociais que detinham sobre suas mãos o poder sobre a vida e a morte das pessoas, a exemplo do que acontecia no período absolutista na Europa?

Antes de almejar encontrar resposta a esta pergunta, até fiquei tentado em fechar a minha janela para evitar que o cheiro de carniça que advém de mentes putrefatas e ávidas por lucros cada vez mais estrondosos, fiquei imaginando porque o escritor russo Fíodor Dostoiévski (1821-1881) disse lá do mundo feudal russo que o homem é incapaz de tolerar a liberdade e está disposto a trocá-la pelo líder que lhe garanta pão e segurança. Achei melhor começar o movimento em que a janela seria lacrada e eu voltava para um universo em que as coisas faziam mais sentido, mas mesmo assim aquela voz lá na consciência me fez reter o movimento e ainda dar mais uma olhada, uma espiadela na rua e nos transeuntes que trafegavam apressados como se estivessem libertos e com seus direitos civis plenos, isto é, de ir e vir, contudo, sem ter condições de afirmarem-se a si mesmos enquanto seres humanos livres. Isso acontece, em minha singela compreensão, porque, enquanto caminham em velocidades atrozes pelas ruas e avenidas das megalópoles, médias e pequenas cidades, as mentes estão nos pretéritos que, ao mesmo tempo os impulsionam para o amanhã, os retém no ontem.

Para não tornar enfadonha minha narrativa por intermédio dessa brincadeira de gato e rato, em que o homem tenta se esconder do passado buscando abrigo no futuro, tendo no meio do caminho um presente esvaziado pelas querenças humanas que se multiplicam e se modificam com a mesma velocidade indicada pelos relógios digitais, penso ser significativa a reflexão segundo a qual, o indivíduo que esteja lendo essas linhas tenha condições, para não dizer coragem de abrir a janela de sua alma, nos dizeres platônicos, e dialogar francamente com ela. O primeiro passo seria interpelativo, isto é, de questionar-se a si mesmo, antes de buscar culpados naqueles transeuntes ali que caminham apressados às suas alcovas, na tentativa de se esconderem de um dia em que tudo deu errado e, enquanto confabulam com suas derrotas ou quase isso, passam por veículos de última geração conduzidos por indivíduos tão frívolos quanto suas vontades em potência, isto é, ser alguém para ser aplaudido como homem que deu certo, apesar dos problemas cotidianos.

Digo aqui que não afirmo e nem nego, absolvo ou condeno quem quer que pense desta forma ou diferente, mas apenas objetivo auxiliar aquele que me acompanhou até esses instantes finais desse pequeno enredo, entender qual janela o seu espírito, aqui pensando com Hegel, desejar ver escancarada para o mundo? Abertas as venezianas, o passo seguinte são as portinholas das moradas de suas consciências, como dizia Platão, as almas, ou seja, aquilo que os animam como entes que se buscam nas concretizações como humanos. Será que o medo de se descobrirem egoístas, gananciosos, ardilosos e sem escrúpulos para continuar na seara social, esteja fazendo com que essas pessoas tranquem esses universos dentro de si mesmas, passando a viver um mundo do faz de conta? Talvez isso é que de fato tenha estimulado o fim de todas as coisas, antes mesmo delas virem ao mundo significando a vida para aqueles que se colocam a pensar sobre si e seus semelhantes. Enfim, ficaria aqui, até sei lá quando, tratando dessas questões, mas é hora de fechar a janela, pois a brisa da noite invade o cômodo de onde olho a vida passar, às vezes apressada, outras tantas lentamente, contudo, o mundo que fica lá fora depois d’eu passar a tranca na janela é demasiadamente fantasmagórico que poderia ser eliminado pela conjugação de um verbo com a quarta terminação, contudo, tão difícil de ser praticado. Talvez amanhã quando um novo dia raiar, os fantasmas tenham desaparecido e, com eles o cheiro de cadáveres insepultos tenha ido embora também, inclusive o desejo de se praticar, ou melhor, odiar aquele que pensa diferente, a ponto de se aventar a hipótese de eliminar fisicamente seu oponente político. Mas aí são outras temáticas que, quem sabe um dia, abro a minha janela para contextualizar com a atualidade brasileira. De qualquer forma, é sempre bom enfatizar que devemos sempre amar em detrimento do odiar. Sendo assim, de janela fechada para o mundo, recomendaria aos meus leitores, quem sabe, o romance Ensaio sobre a Cegueira, do escritor lusitano José Saramago (1922-2010). É isso: de janela aberta ou fechada é necessário caminharmos construindo um amanhã melhor, quiçá o desejo dos egoístas, ególatras e seus déspotas pós-modernos e demais autocratas.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com. www.criticapontual.com.br.

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