O reino das chibatas

Gilberto Barbosa dos Santos

 

No romance Eu vos abraço, milhões (2010), enunciação do escritor gaúcho Moacyr Scliar (1937-2011) o narrador – um comunista que, com o passar dos anos, torna-se capitalista, tendo um filho revolucionário perseguido pelo regime militar – descreve uma cena que marcou – pelo menos durante o seu tempo de militante político – sua existência. O pai do protagonista trabalhava numa estância nos pampas e pretendia pedir aumento salarial para o coronel-estancieiro. Quando foi dialogar com o empregador, o funcionário ousou olhar no rosto de seu interlocutor e obteve, como resposta por esse gesto, um tapa no rosto e a ordem para que nunca mais olhasse o patrão no rosto. Depois dessa ação, como o pai de nosso personagem principal abordaria a questão que o levou a conversar com o seu patrão? Essa ação transcorre no tempo romanesco nas primeiras décadas do século XX, lá pelos anos 10 e 20. Aqueles que me leem semanalmente aqui nesse espaço e também no www.criticapontual.com.br, dirão que tudo não passa de ficção, portanto, não tendo nada a ver com a realidade daqueles tempos. Será?

No enredo tecido por Scliar, até esse ponto da narrativa não se vislumbra que a relação narrada é entre senhor e escravo, mas entre empregado e empregador, contudo, pautado pela velha prática senzaleira, em que se tinha dum lado, o escravagista e do outro o escravizado e flutuando entre os dois flancos, o branco livre, sem posses e serviçal naquela estrutura, cujo prazer maior era surrar os africanos e violentar as africanas que se recusavam à copular com este “senhor” deserdado da terra, porém, de chicote nas mãos à mando do “coronel”. Essa pode ser a marca do período encerrado em 1889 por uma ação político-econômica da regente Princesa Isabel. Não pensem vocês, meus caros leitores, que a ação da filha do monarca foi de benevolência e porque tinha compaixão pelos cativos e seus filhos humilhados e despossuídos de suas humanidades. O fim do escravismo foi uma pressão do capitalismo, sediado principalmente em Londres, que via no Brasil um potencial enorme para comercializar suas mercadorias. É importante observar que no regime escravista, o africano não tem poder de compra e, conforme já ressaltei aqui, em determinado momento da vigência do regime, o Rio de Janeiro, capital do reino, havia mais africanos, sejam eles cativos ou alforriados, do que homens brancos. Só esse dado evidencia a preocupação dos capitalistas britânicos loucos para faturarem com o mercado brasileiro, sem contar a dívida que o Brasil mantinha com a Inglaterra por conta dos custos da Independência em 1822.

Sendo assim, é possível encontrar no ontem nacional, fortes lampejos das relações sociais mantidas hoje com fortes resquícios das chibatas de outrora. Na enunciação que utilizei para começar essa reflexão, fica claro que a escravidão já não existia mais, contudo, os antigos proprietários de africanos agiam com seus empregados da mesma forma como se ainda o escravismo estivesse vigente. Seria a força do hábito? O escritor carioca Machado de Assis (1839-1908), em uma crônica publicada logo após a abolição, aborda essa questão quando um escravagista alforria seu cativo doméstico, pagando-lhe um salário irrisório, mas no dia seguinte quando este não engraxa corretamente as botas do agora patrão, é agredido, cujas sevícias são justificadas pelo narrador como “força do hábito”. Ou seja, o empregador optou pelo espancamento do que a demissão simples, tendo como respaldo a falta cometida. Os meus leitores dirão que, em pleno século XXI, esse tipo de relação social pautada na força física como mecanismo de ordenamento foi substituído pela normatização e pelas leis. Portanto, as chibatas se foram há mais de um século, sendo que há apenas o registro da revolta da Chibata.

É importante observar que o chicote – objeto – foi substituído e a violência física também, fazendo parte, portanto, dum passado terrível que o Brasil possui recheado por miríades de pelourinhos e troncos escondidos em vários rincões brasileiros. Mas como disse Machado de Assis, em seu romance Memórias póstumas de Brás Cubas, foram-se os castelos feudais, mas mantiveram-se os costumes. Sendo assim, a chibata foi aposentada, contudo, o hábito permanece até o momento. As agressões podem não ser físicas, e quando existem, são apontadas como coisas esparsas e não mais usual no Brasil republicano. Ou seja, são isoladas, não configurando a razão de ser da sociedade brasileira. Porém, se se fizer um exercício intelectual, em que a violência pode se configurar como simbólica e abstrata, ela ainda persiste. O antropólogo Roberto DaMatta escreveu um livro em que analisa a expressão “você sabe com quem está falando?”, extrapolando para a pratica conhecida como “jeitinho brasileiro”. Se os meus leitores quiserem exemplos mais contundentes é só observar as eleições municipais, não somente aqui nessas paragens, mas em qualquer paroquia brasileira. As relações entre eleito e eleitor ocorre de que maneira? Na época senzaleira, era o famoso “favor” daqui e dali, o filhotismo, o par de botinas que chegava ao eleitor em duas prestações: um pé antes do pleito e o segundo depois da eleição. Hoje ainda o sobrenome permanece um poderoso adjetivo e marcador social, sem que o brasileiro consiga se desvencilhar dele.

A chibata de ontem virou a caneta de hoje e a verborragia tosca de quem está no poder, mesmo que com a anuência do eleitorado, cujas escolhas ainda são pautadas pela vingança e passionalidade e por uma correlação entre apaniguados e seus protetores, escudada na capacidade que estes têm para sacramentar milagres, como a multiplicação dos empregos, das verbas para a saúde e vagas nas creches. Observem os slogans de campanha: mais isso, mais aquilo e outros tantos mais. Através das canetadas são retirados direitos dos trabalhadores que se veem destituídos da noite para o dia de algumas garantias fundamentais que lhes protegem das sandices capitalistas. Nesta chave, o coronel-estancieiro se tornou o representante do povo no Congresso que, apenas numa canetada, desfere um tabefe mortífero no trabalhador, principalmente aquele que não tem qualificação alguma e com dificuldades para reingressar no mercado de trabalho depois de ser demitido por estar defasado no processo produtivo proporcionado pela Revolução 4.0 e não ser mais uma mercadoria capaz de gerar outros valores agregados, ampliando assim os lucros obtidos com a circulação de tais produtos. Novamente, o escritor carioca Machado de Assis tem na crônica Bondes Elétricos uma enunciação singular que, externava lá, nos tempos da escravidão e seu fim iminente, o que seria feito da massa de escravos alforriados. Foram-se as chibatas, as charruas, os açoites, as mordaças, mas mantiveram-se os hábitos que os brasileiros teimam em manter intactos, apenas os reconfigurando sob a túnica da democracia mais teocrática ainda e de togas guardiães das leis que são modificadas constantemente. Enfim, quiçá a prática presente, creio que o desafio de todo brasileiro é buscar uma saída para as mazelas que grassam esse país, de Norte a Sul, empobrecendo aqueles que acreditaram em milagres ofertados pelos créditos abundantes e salvadores da pátria, ora personificando o “pai dos pobres” getuliano ou o famoso caçador de corruptos ressuscitador do perseguidor de marajás. Para saber mais, é só observar Luiz Bonaparte, o sobrinho, pelo tio, Napoleão Bonaparte. Ou melhor, o hoje pelo ontem, isto é, por que o eleitorado continua esperando coisas novas se ainda continua votando como ontem? E a cada equívoco, dá-lhe chibatadas!

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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