Sobras de um amor … parte II

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Ao ver a arquiteta em prantos, Márcio ficou sem ação e toda a armadura que o protegia se desmoronou. Foi como se o aparato tivesse sido atingindo por um artefato que o dissolveu por completo, restando apenas resquícios do que a proteção dos guerreiros foi um dia. Mesmo se desmantelando por dentro, o jornalista não moveu um músculo até que Angélica cessasse o seu choro. Ainda com os olhos em lágrimas fixou seu globo ocular na face do acompanhante, pedindo desculpas por ter se desequilibrado.

– Eu lhe entendo. Vejo o quando sua alma está em frangalhos, ansiosa por um ombro para descansar desta batalha que lhe parece inglória. Nem Dom Quixote daria conta de tamanha labuta, quanto mais uma pessoa fragilizada em sua intimidade e querenças e com fortes resquícios de um passado autoritário a lhe assombrar, sem deixar espaço para pensar.

A irmã de Amadeu, enxugou as lágrimas que ainda escorriam pelos olhos cada vez mais esverdeados, semelhantes as tonalidades das esmeraldas. Voltando a face para Márcio, em silêncio agradeceu profundamente o fato dele estar ali com ela, sem julgar, sem sentenciá-la, a achando uma grã-fina cheia de grana e em plena crise existencial.

“- Onde está Amadeu?”, lhe perguntou o repórter.

– Deixei ele em casa dormindo. Me disse que estava com dor de cabeça. Então aproveitei para dar um remédio e depois ofereci suco maracujá e um chá. Enquanto tomava, conversamos sobre todas as coisas e sobre nada. É impressionante como tem momentos de lucidez para logo depois desligar-se completamente do mundo. Bastou eu deixá-lo uns cinco minutos que dormia feito uma criança no sofá.

– Então você precisa voltar. Se ele acordar e você não estiver lá, vai ser aquele deus nos acuda.

– Não se preocupe o remédio que eu lhe dei é uma espécie de sonífero. Deve fazê-lo dormir por um bom tempo. Antes de sair de casa, o coloquei na cama e vai permanecer assim pelo resto da tarde.

Assim que a arquiteta terminou de falar, o jornalista fez menção de deixar o veículo, mas foi impedido por Angélica que pediu para que ficasse. Márcio olhou-a, dizendo:

– Como ficar? A destrambelhada da sua mãe, feito criança mimada, acaba de me deixar no olho da rua, sem nada, tapando o cu com a mão. Impossível ficar aqui nessa cidade, sendo acossado pela sua família.

– O apartamento é meu e vou reverter essa situação, inclusive devolvendo seus móveis ao local de origem. Mas agora preciso que não vá. Fique e me dê um tempo para arrumar tudo isso. Tenho que ter a cabeça no lugar para processar tudo isso. Preciso de alguém com um pouco de serenidade, como a que tem me demonstrado nesses últimos dias.

– Mas como fico até lá? Nem roupa eu tenho e já estou começando a me sentir um verdadeiro porco. Se demorar muito, daqui a pouco os mosquitos começam a fazer morada no meu corpo e quererem me presentear para algumas aranhas. Estarei fedendo em vida. E eu não quero isso para a minha pessoa.

A arquiteta, sem dizer nada a Márcio, colocou o carro em movimento, justamente para ele não ameaçar deixar o automóvel quando ouvisse a proposta dela.

– Vamos a uma loja. Compraremos umas roupas e sapatos para você, meu amigo. Está na hora de jogar fora essas camisas sebosas. Elas são oriundas de um passado que você luta para esquecer, mas toda vez que abre o seu guarda-roupa, lá estão as peças a lhe dizer o contrário.

“- Nem, pensar dona Angélica. Não vou a loja nenhuma com a senhora”, afirmou sem muita convicção, pois sabia que não tinha outro remédio, mas falou assim mesmo para delimitar o território.

– Não tem mais isso e nem menos aquilo. Vamos e pronto. Está decidido!

A arquiteta pegou o celular. Parou novamente o automóvel. Ligou para uma pessoa dizendo que entraria pelos fundos. Era preciso deixar umas roupas e sapatos no provador. Olhando para Márcio lhe perguntou às medidas.

– Não sei. As roupas que eu tenho foi minha mãe quem comprou. Então, não me pergunte as medidas.

Rindo da resposta do repórter, Angélica deduziu que as medidas fossem semelhantes à do irmão. “- Os mesmos tamanhos do meu irmão”. Desligou e não conseguiu segurar a gargalhada.

– Meu deus do céu! Um homem já passando dos 30 anos não sabe as medidas que usa. A mamãezinha que comprava as roupas e como está longe dela, usas as mesmas roupas de sempre.

– Porra Angélica! Você não perde uma para me zoar. Há pouco estava aí em prantos e agora quer colocar no meu cu, só porque não entendo nada de comprar roupas e moda e por isso uso sempre as mesmas que tenho há muito tempo. E já que é para chutar o balde, essa camisa aqui eu a tenho desde os meus 20 anos e continua inteira.

– Inteira, mas cheia de sebo.

Só para mudar de assunto, Márcio perguntou a Angélica se o segurança-garçom estava seguindo-os.

– Claro. Ele só sai quando eu dispensar.

– Quem diria: Rodolfo garçom que de fato é segurança!

“- Quer melhor disfarce do que esse, meu caro repórter”, afirmou a arquiteta que colocou o carro novamente em movimento.

O automóvel passou defronte a uma loja que Márcio só conhecia pela vitrine. Nunca entraria ali por vários motivos. O primeiro deles era a falta de dinheiro e o segundo não havia motivos para incrementar o guarda-roupas. Sua vida e rotina era espartana. Do trabalho para casa, do apartamento para o jornal com umas paradinhas no Bar da Net e algumas recepções em momentos específicos da redação e uma ou outra escapadinha com o amigo Roberto. Fora isso, era um misantropo incorrigível, pelo menos até aquela noite que conheceu Amadeu. Dali para a frente, e não fazia tanto tempo assim, muita gente estava prestando atenção nele, o que era horrível, pois o seu desejo era passar despercebido por todos.

Contornaram a rua principal e entraram numa viela em que ficava os fundos da loja. Angélica deu duas buzinadas e os portões se abriram. Márcio ficou impressionado como as portas daquela cidade se abriam aquela mulher que alguns minutos atrás chorou desesperadamente do seu lado.

Adivinhando o seu pensamento, a arquiteta foi logo dizendo: “- Coisas que o dinheiro facilita e muito, mas não cura um coração sangrando e atormentado pelo autoritarismo familiar. Contudo, é sempre bom aproveitar um pouquinho do que se tem!”.

Desceram do automóvel e a vendedora já a esperava. Sem dizer nada, conduziu o casal para uma sala específica dentro do estabelecimento comercial. No caminho, a atendente ia à frente, mas fez um movimento com a mão que não passou despercebido de Márcio. Ele viu quando Angélica colocou várias notas de R$ 200 na mão que foi ágil em descansar no bolso da funcionária.

“Realmente o dinheiro abre portas, sejam elas do paraíso ou do inferno e também do purgatório”, pensou Márcio recordando quando Amadeu lhe falou de Dante Alighieri e o livro A divina comédia. A cada movimento que a arquiteta fazia, o repórter entendia como corações com certa pureza ficam em frangalhos num mundo em que tudo tem o seu preço. “Não culpo Saulo por ter me tornado um sem-teto. Ele também tem lá suas questiúnculas e pelejas para manter os seus”, disse Márcio baixinho para si mesmo, porém, a sua acompanhante escutou, porém, deixou transparecer que não tinha escutado nada.

Ao adentrarem no compartimento, Márcio viu um amontoado de calças, camisas, tênis e sapatos. Quis voltar pelo mesmo caminho que chegara, mas foi impedido sutilmente pela mão de Angélica colocada em suas costas. A atendente saiu, indicando que assim que terminassem era só acionar o interruptor, passando o código de barras que havia em cada peça no raio de luz vermelho que o valor já seria acrescido na conta que a arquiteta mantinha naquela loja.

– Por que fez menção de ir embora, hein Márcio? E tome cuidado quando sonoriza seus pensamentos. Alguém pode escutá-los e aí já viu né!? Quantas pessoas você acha que valoriza o seu caráter e sua conduta?

– Está bem, dona Keka! É que não estou acostumado com tanta frescura para comprar umas duas ou três peças de roupas e um par de tênis.

“- Isso não é frescura! É praticidade e vamos lá”, disse a arquiteta pegando uma calça e mandando-o experimentar.

– Nem em pensamento eu fico sem minhas calças na sua frente.

Angélica olhou incrédula para o repórter e começou a rir. “- Agora eu entendo porque você e meu irmão se deram bem. São iguais. Só que um é preto e o outro é branco como as peças do xadrez”.

Márcio não disse nada. Fechou a cara e começou a pegar as calças e medir na frente do corpo. Escolheu três. “- Está de bom tamanho. No quarto do hotel eu experimento”, informou à arquiteta, passando às camisas. Escolheu três, quase idênticas só mudando a cor e o formato da gola. “- Pronto. Faltam apenas o tênis e um par de meias”.

A irmão de Amadeu olhou para ele dizendo, em tom de ironia. “-Cuidado, meu caro repórter. O zíper pode prender o seu pau e ai como vai se masturbar com ele todo machucado?”

– Angélica, antes que eu me esqueça, vai tomar no olho do seu cu.

Antes de terminar o que estava dizendo, a arquiteta jogou para ele um pacote contendo meia dúzia de cuecas. “- Acho que isso dá até recuperarmos suas coisas. Quer experimentar algumas aqui para eu ver como é que fica?”, disse isso e caindo na gargalhada.

Finalizaram as compras, feitas rapidamente o que não passou despercebido da arquiteta. “- Nossa! Até para comprar você é rápido e sereno. Não enrola muito”.

– Para que enrolar muito. Roupas são roupas e feitas para serem usadas, vestidas e não para servir de manequim em qualquer evento. Por isso, não vou a muitos. Quando chego parece que estou todo cagado. As pessoas não tiram os olhos de minha pessoa.

– Talvez seja porque você vai a esses lugares todo ensebado. Com roupas velhas e camisas lavadas no vaso sanitário. Parecendo que você saiu dos anos 80 direto para o século XXI.

O jornalista pensou em dizer algo, mas ficou apenas numa singela observação: “- Fazer o quê? Eu sou assim e não sei se conseguiria ser diferente”.

– Paciência, meu amigo. Se tu gostas de se parecer com um homem do pretérito, mesmo tendo pouco mais de 30/40 anos, é um problema seu.

– Eu tenho 35 anos e não aparento ser velho. Já me disseram que se eu quiser passo por 25 anos.

Terminaram a conversa entrando no carro. Quando ela colocava o automóvel em funcionamento, a vendedora apareceu lhe acenando e a arquiteta respondendo dizendo que depois passaria para tomar um chá.

Já na rua, Angélica continuou a carga de zombaria sobre Márcio. “- Eu não acredito que você não experimentou nada. Nem mesmo o tênis. Por que não pegou mais algumas coisas? Precisa remodelar seu guarda-roupa. Para sair comigo as que você pegou hoje dá, mas pode providenciar outras. Essas são poucas”.

– Em primeiro lugar, não preciso de muita coisa. E em seguida, quem disse que vou sair com você? Nesta cidade se me virem contigo, no dia seguinte meu corpo estará dependurado num poste. Não! Nem pensar. Quero apenas rever o meu apartamento e “pagar” o meu aluguel. Sendo assim, recuso o presente que me deu.

– Bom! Isso quem decide sou eu e ninguém mais. Não vou ficar aqui falando com você sobre o que ainda não é. Até eu resolver o problema do seu apartamento, ficará em casa comigo e meu irmão.

– E sua mãe? Se ela aparecer lá, eu não responderei pelas consequências.

– Deixa ela comigo. Eu resolvo. Amanhã cedo quando eu for ao meu escritório organizarei isso, inclusive marcar um almoço com meus pais. Decidi que Amadeu só voltará a falar com eles quando tiver condições. Quero evitar o que aconteceu hoje.

– Minha cara Angélica, gostaria de saber onde você adquiriu esse gosto por mandar, dar ordens e querer tudo do seu jeito.

– Meu caro Márcio, quem foi que lhe disse que tenho apreço pelo mando? Eu quero dividir, também conduzir e ser conduzida. Se houver equilíbrio, ninguém comanda e todos seguem lado a lado e compartilhando a felicidade. Acho que é por isso que não me dou bem com o sexo oposto. Esses homens têm mania de querer do jeito deles, até na cama querem mandar. Primeiro vem a satisfação deles e, se sobrar um tiquinho, doa para a mulher como se tivesse dando a ela uma migalha para deixá-las contente por terem satisfeito o macho. Sendo assim, meu amigo, sigamos em frente, um ao lado do outro e tentando colocar a cabeça do meu irmão no lugar. Você com suas prioridades e eu com as minhas, quem sabe um dia as fontes que procuramos não se encontram.

O trajeto entre a loja e o apartamento de Angélica foi feito rapidamente. Mas antes de ingressar no prédio, a arquiteta dispensou o segurança-garçom dizendo que não ia precisar mais dele naquele dia, mas era para ficar atento, pois Amadeu estava com ela, contudo Rodolfo não podia jamais desaparecer. “- Estarei por perto, caso precise, dona Angélica. Tenha uma excelente noite”.

O casal entrou no imóvel e mesmo no elevador, se manteve em silêncio. Quando os dois estavam no apartamento, Márcio fez menção de se jogar no sofá e o fez de fato, mas foi alertado pela arquiteta que o dia ainda não tinha terminado. Ambos foram ver se Amadeu ainda dormia. O enxadrista estava completamente adormecido na cama.

Voltaram para a sala e o repórter se jogou no sofá. Angélica lhe disse: “- Nada disso. Vai lá experimentar as roupas e desfilar aqui para eu ver”.

– Como é que é? Nem fodendo!

– Vá logo e tire essa roupa fedorenta do seu corpo. Daqui a coisa começa a ficar complicada e eu não gosto de mosquitos dentro de minha casa.

– Está certo. Preciso tirar essa roupa mesmo. Estou com ela faz dois dias e está com cheiro vencido.

Márcio disse isso, pegando as sacolas, se dirigindo ao quarto de hóspedes. Percebeu que teria que dormir lá mais uma noite. Angélica aproveitou e também foi ver o irmão que dormia feito pedra em sua cama.

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