Sobras de um amor… parte II

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Enquanto Márcio, já pronto aguardava Angélica na sala, ela está completamente perdida, não sabe o que vestir e aquela observação do amigo martelando dentro do cérebro. Nada de roupa chamativa, que expõe além do que deveria. “Não quero te exibir como um troféu”, sentenciou o repórter. Do nada, berra o nome do amigo que a atende prontamente, a encontrando somente de lingerie dentro do quarto. “- Amor! Me socorre aqui. Não sei o que vestir. Quando saia com Rosângela, eu mais ou menos sabia o gosto dela. Então me arrumava para ela”.

Márcio fechou a cara. Não gostou nada de ouvir o nome da esposa da arquiteta. Mas precisava deixar a rabugice de lado, e seguir em frente. Olhou aquele belo corpo dentro de um lingerie azul turquesa, ficou imaginando o que poderia ser legal a doba dele usar naquela noite especial. Era a primeira vez que ambos jantariam com Eleanora. O convidado sabia que a parada não ia ser fácil. Então, seria interessante uma roupa muito simples.

– Posso ver o que você tem em termos de vestimentas? Eu sei que as mulheres não gostam muito, mas estamos numa emergência e se demorarmos mais um pouco, dona Eleanora manda a tropa de choque atrás de nós.

– Não vai se espantar, pois são coisas de mulheres.

Ao abrir a parte de calças, Márcio olhou, olhou e pediu para ela tirar uma que se parecia com um jeans branco. “- Coloque sobre a cama! Agora deixe-me ver suas blusas?”

Fez o mesmo com relação as calças. Escolheu uma para combinar com a lingerie. Uma de cor azul turquesa sem estampas e lisa. “- Coloque sobre a cama e agora vamos aos sapatos”. Ao ver o compartimento, não acreditou no que viu. “- Onde estão os tênis? Deixe eu ver!”.

Angélica abriu a parte destinada aos calçados e Márcio bateu o olho no primeiro e disse: “- Aquele ali! Acho que vai ficar legal. Estou te esperando em cinco minutos na sala. Se demorar mais do que isso, cancelarei o jantar”.

– Se eu não ficar bela para você, vou te deixar dormir na sala e sem cobertor algum.

– Ué! Pensei que eu fosse dormir no quarto de hóspedes!

– Está louco? Essa noite teu lugar é na cama comigo e nenhum outro lugar.

Rindo, Márcio saiu do quarto e colocou uma dose de uísque, enquanto a esperava se arrumar. Sabia que demoraria mais do que os cinco minutos. Escolheu uma música em que o interprete dizia logo no começo “Eu hoje tive um pesadelo e levantei atento, a tempo/Eu acordei com medo e procurei no escuro alguém com seu carinho”. O jornalista se deixou conduzir pela melodia, bebendo lentamente o uísque. Ao fechar os olhos, automaticamente veio em sua tela mental, a mulher que se arrumava no quarto para um jantar a três: ele, ela e Eleanora, a mãe, aquela que o havia humilhado ali mesmo na antessala daquele apartamento e, depois enquanto o marido se encaminhava para seus últimos suspiros, lhe pediu perdão.

Enquanto viajava nessas imagens, Márcio sentiu que a mão ficara mais leve, recebendo um selinho molhado e carinhoso. Ao abrir os olhos, viu Angélica com o copo na mão, lhe perguntando qual o sabor do beijo regado a uísque. “-Sendo dado por essa boca maravilhosa, só pode ser para lá de especial”.

Ela deu um rodopio para que o acompanhante lhe disse como estava. Márcio não demorou para responder. “-Belíssima. Encantadora. Simples e deslumbrante. E você? Gostou?”, pergunta ele.

– Se ficou ótimo para você, então estou feliz. Quero apenas estar contigo, sua opinião é a mais importante do que eu estou vestindo.

– Antes de quere me agradar, é preciso que tu estejas se sentindo bem. Eu não gosto muito de plumas e paetês. A mulher deve sempre se vestir de acordo com a própria alma. E eu achei que essa roupa tinha a ver com a jornada que começamos hoje. Fico feliz que tenha acertado. Eu de cá vendo mentalmente sua roupa íntima.

– Vamos então. Minha mãe está nos esperando.

Enquanto ele desligava a música, ela voltava para o quarto para pegar a bolsa. Saíram de mãos dadas. Naquela noite poderiam ficar assim, como enamorados. Mas chegando na casa de Eleanora, só ficariam mais íntimos se a mãe assim permitisse, argumentou Márcio quando entraram no carro. “- Amor! Mas tu és careta mesmo, mas um certinho que, tenho certeza, dará rumo ao meu existir daqui para frente”.

– Quantas vezes você e Rosângela jantaram com seus pais?

Angélica foi pega de surpresa pela pergunta: “- Nunca! Eles não aceitavam o fato deu estar me relacionando com uma mulher e ainda por cima negra. Então, você é a primeira pessoa que eu levo para participarmos de uma reunião familiar e anunciar como a pessoa que coloca no chão. O amor que me fez atravessar o estado, me obrigou a ameaçar tirar a roupa no meio de todo mundo para voltar comigo. Olha tanta coisa que eu tenho pra contar para a minha mãe!”

– Então! Há ainda que resolver a sua querela com a sua esposa. Não quero adiantar os carros colocando-os à frente dos bois. A nossa jornada é longa e que só poderá ser vencida com o fortalecimento do nosso amor. Então, vou chegar à casa de sua mãe como o jornalista que trouxe seu irmão de volta. Depois vamos ver como eu vou sair de lá.

A motorista apertou a mão de seu amado. Ele, por sua vez, percebeu o quanto os olhos dela estavam esverdeados como uma esmeralda. “- Amor, obrigado pela tarde. Desculpe eu não poder ter correspondido aos seus anseios. Mas sei que um dia eu estarei à altura do que o seu coração merece”, explicou Angélica.

– Dona Keka! Eu não tenho pressa. Eu não procuro apenas sexo, mas uma pessoa quem eu possa sonhar todos os dias e noites, principalmente se estiver acordado. Alguém que me aperte a mão indicando que não vai largá-la nunca. Não quero uma mulher que faça o mundo girar por minha causa, mas que coloque meu universo em serenidade. A pessoa para quem eu possa dar o seu nome a uma estrela. Então enquanto a eternidade durar, eu sempre vou ver aquele corpo celeste, sabendo que o amor, por mais distante de que esteja, sempre existirá dentro do meu coração.

– E você já encontrou essa pessoa?

– Ainda não! Mas sei que um dia a acharei. E a propósito, você não quer vir comigo procurar? De repente eu a localize e você dá de cara com o seu par perfeito.

– E o que seria o par perfeito para ti, meu amor?

– Alguém que não picotasse minhas roupas. Que não quisesse ficar com uma cópia da chave do meu apartamento. Que não fosse mandona, autoritária, mas que tivesse um olhar encantador, principalmente quando ela se sente amada, estando apaixonada.

– E você tem certeza de que ainda não a encontrou essa joia rara de que tanto fala e deseja?

– O que posso dizer para a senhora, minha patroa, é que eu sempre frequentei um boteco, e sempre via um cara meio esquisitão sentado lá, mas nunca tinha conversado com ele. Mas numa noite, não havia outro lugar para me sentar, então o jeito foi me acotovelar com o esquisitão. O mais esquisito nisso tudo é que apenas queria fazer uma matéria com ele e acabei nos braços da irmã dele. Não é doido isso?

– E coloca doido nisso, minha paixão. E eu estou tão feliz que você tenha se deixado ficar neste abraço comigo. Desejo seja eterno. Espero sinceramente que eu ganhe uma estrela de seu lindo coração. Só não sei como Márcia foi te perder? Mas ainda bem! Ela perdeu e eu achei. Agora não solto mais.

– E eu não sei! Pelas loucuras que você fez nesses últimos dias, eu não duvido de mais nada.

Trocaram cúmplices olhares, com o repórter se ocupando do rádio e colocando uma música para deixá-los mais relaxados, principalmente Márcio que não escondia a tensão. A primeira melodia agradou em cheio a arquiteta. Tanto é que quando o carona fez menção de mudar, ele pediu para que deixasse a música pois era tema de um filme baseado num livro. “- Acho que é O morro dos ventos uivantes. Eu li o romance e depois assisti ao filme. Maravilhoso. Você viu ou leu?”

– Não! Mas já sei que terei que fazer as duas coisas. Do contrário, alguém vai me perguntar, inclusive é capaz de me dar de presente!

– E a propósito meu senhorio, quando é que vós-me-cê aniversaria?

– No dia mais importante do ano: 31 de fevereiro!

– Por que você não pega esse seu 31 de fevereiro e enfia no cu?

“-  Ohh! Uma moça comportada que está levando o seu futuro esposo para conhecer a família, não pode falar essas coisas broxantes. É muito feio”, Márcio lhe chamou a atenção, caindo na gargalhada, apertando a mão da motorista que sempre dava um jeito de deixá-la livre para tocar a dele.

– Pare de rir assim! Não posso chegar na casa de minha mãe toda encharcada e com a ponta dos seios entumecidos. Ela vai pensar o quê?

– Que a filha está louca para girar junto com o ventilador de teto.

O repórter não aguentou e caiu na gargalhada novamente. Só parou para mudar a música. Encontrou uma duma banda do final dos anos 60 e que cantava em italiano e a canção tinha o título “Quando L’amore Diventa Poesia”/“quando o amor torna-se poesia”. O jornalista gastava todo o seu italiano com a arquiteta que ficou impressionada com o domínio que ele tinha daquela língua. Ele cantava um trecho em italiano: “Io canto il mio amore per te” e depois traduzia para Angélica: “Eu canto meu amor por você”. “Questa notte diventa poesia”/” Esta noite se torna poesia”/“Questa notte sarà melodia”/“Esta noite será uma melodia”/“E gridarlo vorrei”/“E eu gostaria de gritar”/“Io ti amo”/”Eu te amo”.

Impossível Angélica ficar quieta. Encostou o carro, fazendo com os pneus cantasse e agarrou Márcio. “- Meu neguinho delicioso. Assim vou chegar para o jantar de mamãe com fome de outra coisa. Adorei ouvir você cantando para mim uma bonita canção em italiano. Você acha mesmo que eu deixo você fugir de novo? Em hipótese alguma”.

Quando pararam de se beijar, Márcio deu risadas porque a arquiteta estava com a maquiagem toda borrada. Ao fita-lo ela disse: “- Está rindo do que, seu bobo? Tua boca parece um sorvete de chocolate com morango, toda borrada com o meu batom”.

Ela retocou a maquiagem e Márcio tirou a sobra do batom que ela havia deixado em seus lábios. Assim que terminaram, seguiram em frente. Não demoraram muito para chegar à mansão. A arquiteta tinha um dispositivo que abria os portões, semelhante ao havia no apartamento dela, um equipamento dentro de casa avisava quem estava chegando. O casal desceu do carro e, conforme o combinado, não estavam de mãos dadas. Assim que os viu, Eleanora foi dizendo:

– Que meia hora mais demorada minha filha? E por que as mãos não estão juntas? Pensei que tinha resolvido tudo no caminho lá dos confins do estado até aqui. E a propósito, você está linda? Se vestir assim foi ideia sua?

– Calma mãe! Uma pergunta de cada vez! Nos atrasamos porque eu fiquei insegura quanto a roupa que usaria. Um certo senhorito não quer que eu use peças que mostrem mais do que devia.

Ao terminar de dizer isso, Angélica pega não mão de Márcio, dizendo “venha”. O repórter ficou sem saber o que falar. Dona Eleanora já chegou e colocou a faca no pescoço dele. “Fazer o quê? Melhor seguir o protocolo”, pensou o convidado para o jantar de Eleanora.

– A roupa foi sugestão desse homem que sabe se vestir mal, mas com relação a definir o que seu amor usará, é especialista. Sei que fiquei bem e estou nas nuvens.

Márcio cumprimentou a dona da mansão enquanto se dirigiam à sala, onde aguardariam a finalização do jantar, atrasado de propósito. “- Angélica pode verificar se o cardápio está do jeito que você e Márcio gostam?”. A arquiteta entendeu a dica. Eleanora queria conversar a sós com o jornalista.

– Senhor Márcio. Não precisamos de apresentação. Já conversamos num momento delicado para nós. Eu lhe pedi perdão pelas minhas ofensas e pelo que me disse, fiquei impressionada com a sua franqueza. Pensei que, o que vi nos olhos e na pele de minha filha, fosse apenas tesão passageiro, mas eu sei o que ela fez para trazê-lo até aqui. Então, vou direto ao ponto: o que o senhor sente por ela? É semelhante às descobertas que Angélica fez em relação ao senhor?

– Dona Eleanora. Sua filha não é fácil! Mimada, teimosa, não gosta de ser contrariada e justamente por ser desse jeito conseguiu me trazer de volta. Antes deu dizer a senhora o que sinto em relação a ela, prefiro falar do que precisamos superar. Angélica está casada com outra pessoa, que é uma mulher e mesmo que não fosse do mesmo sexo, não quero começar nada, absolutamente nada enquanto ela não se resolver com Rosângela. Não quero fazer com outra pessoa o que fizeram comigo. Eu ainda tenho umas marcas do passado aqui dentro. Fui humilhado e sai escorraçado de minha cidade, justamente por reagir. Então, não quero ter que reagir a algo que parecia ser chuva de verão. Sua filha tem problemas por conta dos sucessivos estupros praticados pelo seu marido. Questões que precisam ser equacionadas, portanto, tenho que saber o tamanho do meu sentimento por ela. Porque, superar tudo isso, não vai ser fácil, mas estou disposto a fazer de tudo para que ela seja feliz se quiser seguir em frente comigo. Agora, se optar em continuar o casamento com Rosângela, não farei objeção. Não ficarei entre elas duas, e seguirei o meu caminho, depois de ajudar o seu filho a se equilibrar, reencontrando Tarsila. Ele é doido por ela. Desconfiou que é a pessoa que conseguirá colocá-lo definitivamente em terra.

– Obrigado meu rapaz! Agora eu sei que minha filha será feliz estando contigo. Eu compreendo todo o esforço que ela fez para te resgatar do anonimato onde queria se enterrar. E quanto ao perdão, faça a Keka feliz e deixemos a vida seguir o seu curso natural.

Assim que Eleanora terminou, Angélica estava voltando para a sala, já perguntando: “- O que vocês tanto conversam? Não vem me dizer que a senhora já encostou ele na parede com um par de alianças na mão, dona Eleanora?”

– Não, minha filha. Só quis deixar o repórter aqui e futuro genro mais tranquilo em minha companhia. O jantar já pode ser servido?

– Vai demorar ainda uns vinte minutos. Você espera né amor?

– Por mim, tudo bem.

Neste momento apareceu um garçom para servir mais um drink. Eleanora pediu para Márcio escolher um vinho para os três. A ocasião pedia. “- Vá com o garçom. Ele te levará até a adega”.

            Quando Márcio sumiu com o garçom, Angélica chegou mais perto da mãe, falando rapidamente, como uma adolescente que quer dizer tudo de uma vez: “- Mamãe, terei que mudar o meu guarda-roupa inteiro. Minha sorte que eu tinha essa roupa aqui. Ele não gosta de nada chique, cheio de paetês. Disse que quer me ver usando coisas simples, sem ser muito chamativa e que não pretende andar comigo como se eu fosse um troféu a ser exibido para quem quer que seja”.

– Keka. Não faça nada precipitada. Espere. Primeira coisa. Leve-o para passear no shopping e como quem não quer nada, pare defronte as lojas de roupas femininas e intimas. Veja em quais roupas o rapaz presta mais atenção. Não entre, pare com ele diante da vitrine. Pergunte, junto ao ouvido dele, qual acha que ficaria bem em seu corpo. Depois, pelo que eu observei, ele gosta de ler, é culto. Leve-o para a livraria, enquanto ele se diverte lá na escolha de um livro, diga que vai ao banheiro. Volte a loja e compre poucas peças. Nada de um monte de sacolas. Uma ou duas no máximo. Quando estiverem a sós em casa, experimente a roupa e mostre a ele.

– Mãe! Ele quer voltar ao apartamento dele, mas estou com medo que aquela Márcia possa aparecer e colocar tudo a perder.

– Filha! Deixe a coisa fluir. Ele mesmo me disse que só assumirá algo contigo depois que você romper com Rosângela, mas se caso tu optar por ficar com a professora, não inferirá na sua decisão e nem ficará entre vocês duas. Então, é esperar. Márcio me parece ser um homem de ouro. Uma pessoa ética e com bons valores morais. Você terá que arriscar, inclusive para sentir saudades dele, preparar-lhes surpresas. Mas te digo uma coisa. Vá logo resolver isso lá na Alemanha. Ele não vai te assumir, tipo andar de mãos dadas contigo em público e nem em reunião e festas da empresa.

Enquanto Angélica ficava reflexiva, Eleanora sentenciou: “- O Marcio não tem preço, mas tem tempo e fique atenta que o dele pode estar acabando”. Ao dizer isso, a anfitriã ficou esperando a reação da filha que, parecendo anestesiada, disse que no caminho do apartamento até a mansão o jornalista cantou uma música em italiano para ela. “- Mãe, eu acho que ela sabe mais do que aparenta e veio para cá para se esconder do vexame do quase casamento. Eu sinto que Márcio tem dores profundas. Faz cinco anos que não fala com o pai e nem com os irmãos por conta daquela noite, como ele mesmo diz, ‘que parece não acabar nunca’”.

Enquanto as duas conversavam, o convidado de dona Eleanora volta da adega em companhia do garçom, apresentando o vinho que escolheu. As duas ficaram de boca aberta, pois o repórter explicou tudo sobre o produto, sem, no entanto, ser enólogo.

Angélica se levanta e sem cerimônia pula no pescoço do jornalista, dizendo não saber desse seu lado de conhecedor de vinhos. Ao olhar para a mãe, percebeu que tinha se excedido, principalmente na frente de gente estranha. Márcio fez o mesmo e a arquiteta murchou. Sentando-se novamente, fazendo aquela cara de quem não gostou de ser repreendida em público. Eleanora colocou a mão no joelha de Márcio lhe dizendo: “- Meu rapaz, vai ter muito trabalho com essa doninha aí. Vai vendo desde já. Essa aí não costuma ceder com facilidade, mas acho que você já conseguiu progressos. Olha só a roupa dela. Tu tens bom gosto. Deixe-a sempre assim, sem exageros. O interno não pode ser recoberto por toneladas de maquiagem. Deve resplandecer pelas janelas da alma: os olhos e o sorriso”.

– Obrigado dona Eleanora.

– Vamos deixar o dona somente para ocasiões em que não for possível abandonar essa forma de tratamento. Aqui dentro de minha casa, para você sou Eleanora. Então só te faço um pedido. Só um: faça minha filha feliz e ajude ao meu filho a se ajustar.

– O que um simples jornalista de fundo de redação pode fazer, minha cara? A senhora mesmo fez de tudo para eu ficar na rua, sem casa e sem emprego.

– Eu sei disso, meu rapaz, mas só o fato de você estar aqui conversando comigo e com a minha filha, indica que eu estava completamente errada a seu respeito, agindo por impulsos e você me ensinando mais um pouco sem reagir, sem agredir. Sou imensamente grata por ter sua simpatia. O ontem não desaparecerá jamais, todavia, não podemos arrastá-lo para o amanhã.

Assim que foi anunciado que o jantar estava servido, o trio se dirigiu à mesa e Angélica fez questão de pegar na mão de Márcio, apertando-a, como para dar-lhe segurança. O copeiro falou ao ouvido da anfitriã e ela perguntou ao casal se gostaria de ouvir música. A arquiteta olhou para quase-futuro namorido e este perguntou se podiam ser músicas francesas. Obtendo a anuência, se levantou, indo montar rapidamente uma pequena seleção para o momento. Regulou as caixas de som para que as melodias não os incomodassem.

Ao voltar ao seu lugar, Angélica perguntou porque música francesa. O acompanhante respondeu, usando a frase dita por um compositor brasileiro: “- Pour ne pas oublier mon français” e traduziu: “para não esquecer o meu francês”. Em seguida pediu mais vinho ao garçom. Enquanto a primeira música começava na qual o interprete dizia: “… ela desabrochou numa linda manhã/no jardim triste do meu coração/trazia os olhos do destino…”, Angélica feito uma adolescência diz a Márcio: “-Você não me falou que sabia francês”.

– Você não me perguntou. Mas também isso não tem a menor importância. Não vou conversar com ninguém, que não seja brasileiro. De qualquer forma, aprendi porque, na época, achava que teria algum sentido, porém hoje, creio ser desnecessário. Só não quero esquecer o aprendi e a música é uma ótima oportunidade e as companhias também. Você e sua mãe acho que apreciariam em neste jantar músicas assim. Lá fora o ruído está horrível, então em nossos momentos íntimos, deixemos que os barulhos que não dizem nada, continuem lá onde estão.

Assim que termina de ouvir as observações de Márcio, Eleanora o bombardeia com um monte de perguntas relacionadas aos seus sentimentos em si e pela filha, inclusive o fato dela estar casada com uma outra mulher. O repórter responde tudo com clareza e serenidade, até porque não queria convencer a mãe da arquiteta e nem quem quer que seja em relação aso seus sentires. “- Eleanora, estou ciente de muitas particularidades de sua filha. E o fato dela estar casada com a antropóloga que se encontra agora em trabalho científico na Alemanha, me parece que cabe a Angélica lhe responder. Eu já lhe disse, depois de muitas discussões, brigas, desde que ela me surpreendeu em meu retiro, que aguardarei as decisões que precisa tomar e, caso opte por ficar com a esposa, não farei objeção alguma”.

Assim que Márcio terminou de falar, a arquiteta olhou para a mãe querendo dizer que não deveriam mais conversar sobre isso, mas nem isso foi capaz de conter o ímpeto de Eleanora que continuou com o bombardeio: “- Quando vou conhecer sua mãe, seu pai, enfim sua família?”

– Assim que eu os recuperar, com certeza farei questão de apresentar à senhora. Mas para o momento, como eu e Angélica não temos nada oficial, embora esse jantar seja oficioso, prefiro esperar. Não sou dado a reações e uma vez que fiz isso, compliquei toda a minha vida. Então, se ela me ama como diz me amar, saberá esperar quantas voltas forem necessárias que a Terra dê em torno do Sol. E quanto a mim, vou aguardar até ela solucionar a situação matrimonial em que se encontra.

As músicas terminaram e Márcio se apressou para perguntar se poderia mudar. Com o assentimento de mãe e filha, o repórter alterou a seleção de música, optando por MPB. Os primeiros acordes indicavam que o refrão cantado pelo interprete diria: “no silêncio da noite, fico imaginando nós dois”. Ao voltar à mesa, o repórter pede licença para as anfitriãs e pede que o garçom lhe sirva uma dose de uísque.

De maneira educada, Angélica e a mãe assentem. A primeira entendeu que o jornalista queria desengasgar o gato preso na goela depois de Eleanora colocar o rapaz nas cordas e sová-lo sem dó nem piedade, mas ficaria de olho nele. Depois do primeiro gole, a matriarca volta a marcar em cima. “- Senhor Márcio, imaginemos que a Keka fique com Rosângela, o que pretende fazer? Não vai lutar por ela. Vai sair de cena e desaparecer no tempo e no espaço?”

– Ninguém é obrigado a estar com ninguém. Por exemplo, estou aqui com vocês duas desfrutando de um lauto jantar, mas o faço por vontade própria. Sua filha não me obrigou a fazer isso, então por que eu exigiria que ficasse comigo, mesmo dizendo insistentemente que ama? Só me restará seguir em frente, se o desejo for contrário ao meu.

Quando Eleanora ia falar mais alguma coisa, Angélica deu um basta. “- Mãe. Agora chega. Acho que para ser um jantar oficioso, o meu amor aqui já disse tudo e mais um pouco”.

Como a garrafa estava em cima da mesa, o jornalista colocou mais uma dose em seu copo e falou: “- Não vejo nenhum problema em sua mãe me perguntar. Talvez esteja querendo saber se tenho ou não condições de te fazer feliz. Além do mais, você nunca trouxe ninguém aqui para jantar nessas condições. Então, diríamos que a situação é inédita, desta forma, ela, na condição de mãe, quer saber mais, o que é natural. Posso te garantir que dona Judith fará a mesma coisa contigo e ainda vai me dizer para fechar a boca por que é conversa de mulher para mulher e pronto.

Eleanora fitou a filha e ambas perceberam que ambas estavam com os olhos brilhantes. Terminado o jantar regado a peixe e muitas saladas, voltaram para a sala e conversaram mais uma hora e o tema foi Amadeu. O causador daquele inusitado encontro entre uma arquiteta ricaça e um jornalista de fundo de redação que fugia de um passado do qual se aproximava mais, na medida em tentava ficar longe.

Quando o casal se despedia de Eleanora, a anfitriã pediu um minuto e Angélica solicitou a Márcio que a esperasse no carro. “- Filha! Independentemente de você estar casada com outra mulher, acho que esse rapaz tem tudo para te fazer feliz. Não o deixe escapar e, quanto ao seu guarda-roupa, vamos mudá-lo aos poucos. E podemos pegar as peças que você não quer mais, já que o momento é outro, e realizar um bazar beneficente, doando os valores à uma instituição de caridade. E é claro, sem holofotes, já que a sua paixão não gosta de luzes em cima dele.

– Está certo mãe. Farei isso.

– Ah! Filha! Dá um trato nele por mim.

– Mãe! Até a senhora. Já não chega as outras concorrentes, até você querendo tirar uma lasquinha do meu homem!

Ambas deram risadas e Angélica confirmou que o agarraria com unhas e dentes. A filha entrou no carro e a mãe voltou para dentro de sua mansão, sentindo saudades de Jô, falando de si para si. “Apesar de você quase ter arruinado a vida de nossa filha, meu marido, ela parece ter encontrado alguém querendo ajudá-la a recolher os cacos e se reconstruir e ser de novo a minha menina. Ninguém vai impedi-la de ser feliz com esse jornalista”, pensou Eleanora, se encaminhando para o seu quarto, quando os empregados lhe perguntaram se ela precisaria de mais alguma coisa. A resposta foi negativa.

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