Sobras de um amor…

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– Senhor Márcio, vou direto ao ponto: como eu lhe disse ontem em sua casa, preciso que o senhor escreva essa matéria sobre o meu irmão, sem que ele ou alguém de minha família seja identificado. Se o que esperamos ocorrer, será muito bem remunerado. Aliás, a partir de agora o seu salário será pago por nós! Já fechamos isso com a direção do seu jornal. Era o mínimo que eu podia fazer, depois de quase provocar a sua demissão ontem.

– Como é que é?

– É isso mesmo que o senhor ouviu! Enquanto estiver trabalhando na reportagem sobre o meu irmão, minha família bancará seus gastos e salários. Inclusive o seu aluguel deste mês já está pago. Tudo isso para que se concentre no seu trabalho.

– Essa pessoa que vocês querem encontrar deve valer ouro mesmo! Para fazer tudo isso e acreditarem que alguém possa ler a minha matéria e sair das sombras, se revelando para o dondoca do seu irmãozinho.

– A opinião do senhor, relativo ao meu irmão, não me interessa. Quero saber se vai ou não produzir a matéria pela qual já está sendo bem remunerado. Caso não queira, entenderei e o todo o dinheiro gasto até aqui, terá que nos devolver até amanhã.

– Tudo bem! Aceito. Farei o material, até porque estou curioso para saber como o cérebro do Amadeu foi parar no chiqueiro de sua família. Até agora já ouvi e vivenciei coisas bem estranhas, mas isso não interessa dizer agora. Teu irmão marcou comigo no final da tarde de hoje, dizendo que tem novidades para me falar.

– Ótimo. Não vou atrapalhar seu trabalho e nem vou procurar mais o meu irmão, mas quero que me mande por e-mail o que apurar. Quero saber tudo, detalhe por detalhe. Quanto tempo o senhor acha que levará para produzir essa reportagem? Dois meses? Mais?

– Calma! Já tenho algumas coisas que levantei. Falta apenas cruzá-las para ver se tem sentido com o que creio estar havendo. Mas prefiro não falar nada agora, até porque a senhora já tem uma parte do que foi publicada nos dois últimos domingos em forma de crônica que quase provoca a minha demissão.

Enquanto Márcio terminava de falar, o garçom se aproximou novamente, perguntando se os dois já tinham escolhido o que ia pedir. Angélica olhou no cardápio, pedindo um salmão grelhado com molho de maracujá e para beber uma água com gás e limão a parte. Para acompanhar o peixe, salada de broto de feijão e tomates a parte.

Enquanto a arquiteta fazia o seu pedido, Márcio terminou o seu uísque numa golada só e passou os olhos no cardápio e quando o garçom se dirigiu a ele, escolheu picanha na pedra, acompanhada de salada de broto de feijão com cenoura e uma cerveja. Ao terminar o seu pedido, viu que Angélica lhe olhava, com um jeito interrogativo. Talvez porque havia solicitado cerveja quando tinha acabado de tomar uísque. Ela sabia que o seu acompanhante gostava de uma bebida, mas este tinha muito trabalho pela frente e o consumo de álcool podia ser problema.

Pensou em lhe dizer algo, mas resolveu ficar calada. Achou melhor o silêncio, até porque não queria encontrá-lo mais. Pretendia falar com ele apenas pelo e-mail ou os aplicativos, mas somente o necessário. Enquanto pensava nessas coisas, observou que Márcio estava com um livro e fez perguntas sobre isso.

– O senhor só lê coisas relativas ao seu trabalho ou gosta de outros tipos de livros, tipo romances, crônicas?

– Basicamente eu gosto de todo tipo de literatura, principalmente aquelas que me ajudam a organizar os textos e reportagens que escrevo. Gosto que meus textos tenham histórias, sentido, fazendo com que aqueles que as leem não apenas fiquem informados, mas tenham condições de transformar essas informações em fontes de conhecimento. Não vejo o jornal de hoje como o que embrulha o peixe de amanhã. Mas por que está me perguntando isso? A sua área de atuação não tem nada a ver com jornais. Pelo que sei, a senhora é dona de um dos melhores escritórios de arquitetura do estado.

– É! As pessoas dizem que sim, mas temos muito a melhorar ainda. Por enquanto só trabalhamos para o pessoal que tem bom gosto e recebem pessoas gabaritadas em suas casas e ambientes de trabalho, como escritórios de advocacia, lojas e outros estabelecimento comerciais.

– Quer dizer que quem não tem dinheiro, não tem bom gosto e não merece os préstimos de sua empresa.

– Senhor Márcio, não me venha com esse discursinho disso e daquilo. O senhor sabe muito bem que sem dinheiro não se tem conforto e quem não pode pagar, não deve nem entrar no meu escritório. Por isso, só atendemos com agendamento prévio, pois dá tempo para checarmos se a pessoa tem ou não condições de frequentar a minha empresa. Se descobrirmos que não. Que vivem de empréstimos bancários, dependurados em cartões de crédito, desmarcamos dizendo que surgiram compromissos que apareceram de última hora e que assim que for possível entraremos em contato.

Márcio fez uma cara e já obteve como resposta: “ – O que o senhor pensa pouco me interessa, já que a sua opinião não pagará esse almoço, mas o meu dinheiro pagou o seu mês de aluguel”. Assim que Angélica terminou de falar, o pedido de ambos chegou.

Depois do que escutou, o jornalista comeu o mais rápido possível o que pediu e em silêncio. Havia pensando em pedir outra cerveja, mas achou melhor não. Era capaz de vir quente ou lhe fazer mal. Assim que terminou, chamou o garçom, pediu a conta do que almoçou e bebeu, mas Angélica disse para não se preocupar.

– Eu não estou preocupado, embora a cor de minha pele possa incomodar muita gente, eu ainda pago aquilo que consumo e bebo.

A arquiteta olhou para o garçom e de forma imperativa disse: “É por minha conta, eu já disse! Ou o senhor é daqueles machistas que não aceita que a mulher pague a conta? E quanto a cor da sua pele eu não estou nem aí para ela e sabe por que? Por que dinheiro nenhum no mundo vai fazer com que ela deixe de existir”

– Não sou machista porra nenhuma! Só não aceito ser humilhado por quem quer que seja e nem pelo saldo bancário de filho da puta nenhum e a senhora não é diferente de ninguém! É uma branquinha que acha que pode comprar e humilhar as pessoas, principalmente as pretas. A senzala desapareceu faz tempo, minha senhora, mas muitos de sua laia ainda não perceberam isso.

Márcio disse isso entre os dentes, pegou seu livro e saiu. Cumprimentou o garçom com a cabeça e se foi com passadas pesadas. Quando estava no térreo, pensou em como voltaria para casa. Não sabia se ia a pé ou pedia um transporte pelo aplicativo. Nesse momento, sentiu alguém lhe puxar pelo braço. Ao olhar, observou que era Angélica que já lhe pedia desculpas.

– Por favor, mil desculpas. Não sei o que me deu lá dentro. Não sou preconceituosa, isso eu posso lhe garantir.

– Tudo bem. Não vou criar caso por conta da sua falta de compostura e também se é ou não racista. Até por que não vamos nos ver mais mesmo. Só vou falar com a senhora através de e-mails.

– Vamos! Eu te levo para casa!

Ao ouvir o convite, Márcio pensou em declinar, mas achou que seria infantilidade de sua parte. Então aceitou.

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