Gilberto de Assis Barbosa dos Santos
Gosto de compartilhar aquilo que me choca. Adoro partilhar aquilo que me toca. Chocar e tocar, dois verbos com as terminações em ar ou, como diriam os defensores das normas cultas da Língua Portuguesa, pertencentes à primeira designação verbal. Por favor, meu caro leitor, caso eu esteja equivocado, me corrija, já que estou fazendo uso de outro verbo, porém, da segunda designação: “er”.
Mas deixemos de verbos, eu e tu, pois temos ciência de que o bom poeta é aquele que sabe transformar verbos em versos com profícuas rimas. Eis aí uma poética sempre a me chocar, porque saberá tocar-me a alma – aquele ser que anima a minha experiência material – sem, no entanto, me conhecer a partir da integridade do espírito – aqui é preciso abrir espaço para uma pequena explicação: compreendo por espírito o que no universo germânico é definido como povo e em grego etnia. Se é assim, então devo recorrer à minha ancestralidade, pois é ela quem me define no presente e no futuro, tendo eu, portanto, um passado para apresentar ao meu vindouro.
Se um bom verso ou poema me choca, no sentido positivo dado à terminologia, como o que foi apresentado pela escritora Helena Arruda em seu último livro Ave rara: uma arqueologia da palavra[1], mais especificamente a enunciação “amor”, o que poderia dizer sobre o que me toca a partir d’alma? Como podes observar, leitor amigo, ainda permaneço no campo da inquirição, crendo apenas que o tempo é quem poderá me responder. Porém, o que faço durante esse outro tempo demarcado pela onomatopeia do relógio, cujo espaço pode ser uma breve eternidade ou longos segundos?
Ainda estou posicionado no mundo da pergunta, mas creio que Aristóteles, lá de sua enunciação “Poética”, poderá me ajudar, pois afirmou que o historiador escreve sobre o que realmente aconteceu, enquanto o enunciador diz, por intermédio da ficção, aquilo que imagina ter ocorrido. Todavia, outro pensador alemão e mais perto do meu agora, Nietzsche, disse, lá no final do século dezenove que o poeta só escreve sobre aquilo que lhe está próximo, no seu cotidiano. Neste sentido, então vos digo, leitor amigo, o que me toca é o afeto, seja de onde vier e, por conseguinte, o que mais me choca é a ausência deste mesmo afeto num momento em que os homens brincam de jogar bombas uns nos outros, entretanto, atingem, sobretudo, crianças, mulheres e idosos. Daí minha alma buscar abrigo em ficções e narrativas que me enchem de esperanças e sentimentos que deverão ser distribuídos àqueles que desejam essas afetuosidades.
A distância, às vezes, nos impede de enviar flores e outras personificações, mas esta não nos impossibilita de remeter a quem solicita, muitas vezes, apenas com o olhar, palavras de carinho, atenção, amor e amizade. Neste sentido, creio que o universo tecnológico, que tanto assombro nos provoca, pode muita coisa, entretanto, não lhe é permitido soprar a palavra, um verbo que se transformará em verso e outras tantas rimas em mãos poéticas. Sendo assim, a escrita, conforme alguns historiadores, foi inventada na antiga Mesopotâmia pelos sumérios ou assírios – não sei ao certo – tem essa maestria: tornar o mundo mais afetuoso por meio de múltiplas narrativas para regozijo daqueles que sabem ler a partir, não do que está escrito, mas sobretudo, pelo que foi soprado pelo coração que realmente sente, sem nenhum interesse material ou relação de troca, na qual um se perde ao tentar contentar o outro levando-se em conta o que deveras sente. Acho que é isso, mas caso não seja, só de escrever já valeu pela tentativa de uma simples enunciação.
[1] – Helena Arruda. Ave rara: uma arqueologia da palavra. Cotia, SP: Urutau, 2023, p. 63.