por Rivail Rolim
Todos os indícios apontavam que a eleição de Jair Bolsonaro daria materialidade a ideias de reverter a questão dos direitos humanos no país e de defender a intensificação da repressão e maior rigor nas punições. Não é sem sentido que juristas, criminalistas e pesquisadores têm se mostrado muito preocupados
Nos últimos 50 anos, o mundo ocidental do Atlântico Norte, inclusive o Brasil, passou por intensos questionamentos ao Estado de bem-estar social e ao funcionamento da Justiça criminal, que se consolidara após a Segunda Guerra Mundial.
As instituições carcerárias passaram a ser vistas como ineficientes: a noção de que “nada funciona” se disseminou como rastilho de pólvora. Ao mesmo tempo, cresceram consideravelmente os grupos políticos e da sociedade civil que defendiam abertamente a adoção de penas mais duras e ações repressivas mais rigorosas, como a política criminal “tolerância zero” – ou, nas expressões na língua inglesa, three strikes and you’re out e lock’em up and throw the key.
Autores como Loïc Wacquant e David Garland chegaram a afirmar que se constituiu uma nova cultura do controle do crime com a criminalização da miséria e a adoção de uma estratégia de grande confinamento. Nos Estados Unidos, a população carcerária passou de 500 mil, em meados da década de 1970, para mais de 2,3 milhões na atualidade. Essa tendência também chegou à Europa, em menor escala.
Justamente diante dessa conjuntura de grandes transformações no mundo ocidental, o Brasil iniciou sua transição política, culminando com a promulgação da Constituição de 1988, a chamada “constituição cidadã”.
Entre os fundamentos constitucionais, destacamos a intenção de construir uma sociedade livre, justa e solidária (Art. 3, I); erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais (Art. 3, III); promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (Art. 3, IV).
A partir desses preceitos, a “cidadania, literalmente, caiu na boca do povo”, para lembrar as palavras de José Murilo de Carvalho. Entretanto, alguns grupos políticos e empresariais neoliberais começaram a dizer que a constituição cidadã era populista e perdulária, pois jamais seria possível concretizar o que estava contido em seus vários títulos, capítulos e artigos. Por sua vez, direitos civis e individuais (direitos humanos), utilizados para denunciar as arbitrariedades do regime militar, não tiveram a mesma aceitação.
A nova racionalidade punitiva, entrelaçada com situações concretas de discriminação e exclusão presentes na história do país, abalou consideravelmente os postulados que propugnavam pela necessidade de efetivação dos direitos para a maioria da população. Na realidade, uma política criminal constituída durante os governos militares de que os “inimigos” deveriam ser combatidos ficou quase intocada, mesmo com a transição política.
Vários programas em defesa dos direitos humanos foram elaborados pelo governo federal (em 1996, 2002 e 2009) para criar uma nova concepção acerca dos direitos civis, políticos, econômicos e socioculturais, considerados universais e indissociáveis. Nos mandatos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, o governo brasileiro, pela primeira vez na história republicana, adotava e defendia direitos humanos.
O país procurava se alinhar aos países desenvolvidos na adoção de um constitucionalismo social e humanístico instituído após a Segunda Guerra Mundial, expresso em um dos principais tratados internacionais, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 1948.
Entretanto, no lançamento do primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), em 1996, já se apontava que os resultados seriam incertos e dependeriam da forma pela qual o Estado e a sociedade se comprometeriam. Não tardariam acusações de estar sendo condescendente com os bandidos, ou de ser responsável pelo aumento da criminalidade no país. De fato, o aumento da criminalidade e da insegurança levou indivíduos e coletividades a alegar que direitos humanos serviam mais a criminosos e delinquentes do que às vítimas.
Assim foi se disseminando, por alguns grupos políticos, da sociedade civil e do aparato repressivo, a ideia de que os governos após a Constituição de 1988 não enfrentavam a criminalidade com rigor. Que um regime democrático era leniente com os bandidos.
Nos últimos 30 anos, tivemos um aumento vertiginoso do aprisionamento, seguindo a nova racionalidade punitiva.
Em 1990, tínhamos em torno de 90 mil pessoas encarceradas. Em 2018, atingimos a marca de 726 mil, um aumento, portanto, de mais de 800%, conforme dados do Depen. Com esse número, ficamos atrás somente da China (1,6 milhão) e dos EUA (2,3 milhões) em população carcerária. O Brasil está na quarta posição no encarceramento de mulheres que, neste ano, chegou a mais de 45 mil.
Tampouco foi possível conter a violação de direitos para a maior parte dos cidadãos de segmentos populares. Relatórios de instituições especializadas têm mostrado esse cenário de constante desrespeito, principalmente no caso de crimes cometidos por agentes do Estado. Relatório da Human Rights Watch, de início de 2018, denuncia que a violência policial no país segue sem freios.
Houve avanços na efetivação de um estado democrático de direito, com respeito às liberdades individuais e coletivas, precisamos reconhecer. Mas, ao mesmo tempo, cresceu o número de entidades civis, membros do aparato repressivo-judicial e partidos políticos que passaram a se posicionar diametralmente opostos à forma como o Estado lidava com a questão da segurança pública e de respeito aos direitos civis e individuais.
O atual presidente da República, um ex-militar, chegou a apoiar publicamente grupos de extermínio em um discurso na Câmara Federal, em 2003.
A posição do atual presidente parecia isolada à época. Ou, no máximo, reverberava em alguns grupos sociais, políticos e do aparato repressivo-judicial. Porém, suas ideias foram ganhando visibilidade até que saíram vitoriosas nas urnas em 2018.
Todos os indícios apontavam que a eleição de Jair Bolsonaro daria materialidade a ideias de reverter a questão dos direitos humanos no país e de defender a intensificação da repressão e maior rigor nas punições, além de flexibilizar o acesso a armas.
A indicação de Sérgio Moro ao Ministério da Justiça e Segurança foi vista com bons olhos neste sentido. O ex-juiz, que havia comandado a Operação Lava Jato, foi considerado a pessoa certa para ocupar o cargo, pois poderia ter melhores condições para implantar as propostas defendidas durante a campanha.
No dia 4 de fevereiro, Moro apresentou um pacote de medidas para enfrentar os grandes problemas da segurança pública. Basicamente, seu projeto “anti-crime” tem como pressuposto uma concepção punitivista na resolução dos problemas sociais, a intensificação das ações repressivas, a legitimação do uso da força letal por parte dos agentes do Estado e a fragilização das garantias constitucionais. Nessa direção, o Ministério da Justiça tende a seguir o pressuposto de “entupir a cadeia de bandidos”.
Isso aumentará ainda mais os problemas do sistema prisional brasileiro e da segurança de uma forma geral, pois muitos jovens acabam sendo recrutados pelas organizações criminosas quando são aprisionados. Com autorização para o uso da força letal nas ações repressivas, haverá um recrudescimento da violência legal e ilegal por partes dos agentes do Estado.
A introdução do acordo (plea bargain) entre o réu e o Ministério Público, copiada do modelo americano, pode ter impactos catastróficos, especialmente para os que não podem contar com os serviços jurídicos. Aquele que estiver sendo acusado, por exemplo, pode se declarar culpado com receio de um julgamento negativo e passar a cumprir a pena imediatamente, contribuindo ainda mais para o aumento dos encarcerados.
Na possibilidade do acordo, há uma situação de vulnerabilidade e assimetria entre o réu e o Ministério Público, em um cenário com procuradores poderosos, flexibilidade de garantias constitucionais e desconsideração de padrões probatórios mínimos.
O excludente de ilicitude, contido nas propostas de Moro, agravará ainda mais a violência policial. O uso indiscriminado da força policial e a institucionalização da morte como método legitimado e normalizado de combate ao crime serão concebidos como política de segurança pública.
Não é sem sentido que juristas, criminalistas e pesquisadores sobre a vivência dos direitos têm se mostrado muito preocupados. Assim, fazemos coro àqueles que veem o pacote com bastante desconfiança e ceticismo, pois fomenta um cenário de insegurança pública e jurídica generalizado que poderá criar mais dificuldades para o avanço na construção de um Estado democrático de direito.
Por Rivail Rolim é Professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e autor, entre outros, de O policiamento e a ordem (Eduel, 1996)
Todos os indícios apontavam que a eleição de Jair Bolsonaro daria materialidade a ideias de reverter a questão dos direitos humanos no país e de defender a intensificação da repressão e maior rigor nas punições. Não é sem sentido que juristas, criminalistas e pesquisadores têm se mostrado muito preocupados