O Brasil de amanhã encarcerado no ontem

Gilberto Barbosa dos Santos

 

É interessante notar como o brasileiro do presente se apega em demasia a um país que ainda não é, isto é, se detém numa ideia de Nação que necessita do hoje para ser erigida, contudo, isso só será possível se o Brasil fizer suas pazes com o passado e olha que existem escaramuças, açoites, humilhações e toda sorte de torturas desferidas contra os desafortunados e aqueles que ousaram questionar os devaneios que afetam os sujeitos sociais que comandam paróquias e redutos produtivos bem como seus asseclas. Os meus leitores que estão acreditando que o escopo de hoje será novamente a questão escravista, podem estar ligeiramente equivocados, pois quando os serviçais espancavam os cativos por determinação dos escravagistas, também acabavam se igualando à condição daqueles que haviam lhes ordenado determinadas agressões, bem como daqueles que recebiam as chibatadas. Mas não deter-me-ei nessa chave, ou melhor, chaga brasileira de outrora que, mesmo tendo ficado lá no longínquo Brasil oitocentista, permanece entranhada entre as relações sociais do hoje.

Por que será que o futuro assombra tanto quanto o passado, deixando o presente muito tenso e tenebroso? Uma vez perguntaram a Albert Einstein (1879-1955) se haveria a possibilidade de se criar uma máquina do tempo. Gosto sempre de lembrar a resposta que o cientista dera, não exatamente da forma como reproduzo aqui, pois é apenas uma singela observação: o ser humano encontraria com outros eles. Caso a viagem fosse para o ontem, com certeza conseguiria modificar o homem que existe no agora e está lendo as linhas que estampo semanalmente aqui neste espaço. No entanto, se o passeio fosse um salto no futuro, também haveria a possibilidade de o viajante também se deparar com outros dele, modificado pelas experiências pretéritas. Pois bem, no começo da década de 80 um filme chamado De volta para o futuro apresentou-nos, a partir da ficção cinematografia, tal possibilidade e o resultado foi interessante, tanto é que a película é cultuada até hoje como narrativa fílmica de ficção científica.

Outro aspecto significativo na minha temática de hoje é uma outra interpelação: por que será que o indivíduo quer sempre revistar o ontem? Ao serem interpelados, a maioria diz que objetiva retroceder. Há um filme interessante nesse sentido, chamado no Brasil de Um sonho de liberdade. Dentro do enredo há vários momentos instigantes, como um em que a personagem principal diz ao seu interlocutor que há apenas duas coisas para se fazer durante o existir: se ocupar em viver ou em morrer, e neste caso aqui a morte aqui não tem nada a ver com o desaparecimento físico da pessoa, mas sim faz alusão à desistência de concretizar o tão idealizado desejo de se ver num amanhã melhor do que o hoje. Quase no final da projeção, uma das personagens da película, em diálogo áspero com profissionais encarregados de dar-lhe ou não a condicional, ao ser instada a falar se se considerava reabilitada, esta afirma não haver um só dia em que não dialogava com aquele jovem que cometera um crime atroz, mas isso já não é mais possível, pois o que restou daqueles tempos de juventude foi apenas um velho sentenciado a prisão perpétua.

Pois bem, faço uso desses dois filmes, associados ao romance O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde (1854-1900), justamente para tentar entender o infinito desejo que o indivíduo tem de revistar o seu passado, sem, no entanto, buscar melhoras para o seu presente. Diante da dificuldade de conversar com o seu eu do agora, projeta num vir a ser – kantiano – tudo que gostaria de ver realizado, entretanto, delega para outrem a responsabilidade de conceder-lhe a felicidade, numa espécie de democracia delegativa, como diz Guilhermo O’Donell (1936-2011) em primoroso artigo sobre a temática, principalmente na América Latina (http://uenf.br/cch/lesce/files/2013/08/Texto-2.pdf). Na obra do escritor irlandês, o ambicioso cientista quer a vida eterna, dinheiro e mulheres – até parece com muitas das pessoas que os sujeitos encontram em seus cotidianos, tamanha a vaidade e presunção de algumas que se acham mais humanas do que outras, somente porque suas peles não possuem pigmentações, a tal da melanina. Há uma frase capilar, segundo a qual, quer se conhecer um homem, dê-lhe poder e dinheiro e aí todos o conhecerão. Nessa mesma linha, o meu leitor pode dar uma lida no romance O conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas (1802-1870), cuja narrativa diz respeito ao universo da França Napoleônica, mas também aborda inveja, traição e dinheiro e, sobretudo, o desejo de se ter, não o dinheiro que o outro teria já que não tinha um vintém, como se diz no jargão popular, mas sim ser o que o invejado era e aí não é possível, pois há que se refletir muito sobre a pessoa em que se tornou por conta das escolhas que se fez durante a jornada terrena.

Nesta chave, se fosse possível ao meu leitor retroceder na escala temporal, para onde iria e por qual motivo? Agora deixando a esfera da pessoalidade, ou seja, do indivíduo individualizado e enveredando por alguns marcadores sociais que possibilitem ao ser unitário transformar-se em indivíduo coletivizado: para qual espaço físico-social iria? Se o escopo for o Brasil e seus diversos aspectos, creio que o périplo não deva ser o país de amanhã, mas a Nação de ontem, cujo contato poderá fornecer pistas para que o viajante tenha condições de entender o porquê de a Nação encontrar-se estagnada, principalmente do ponto de vista econômico, inviabilizando a mobilidade entre as categorias sociais que cimentam as relações entre sujeitos. Que outra Nação, o brasileiro encontraria? Há 30 anos, seria possível aportar para um Brasil em plena finalização de sua Constituição e a confecção do que viria a ser o que o cientista social, Sérgio Abranches, chamou na época presidencialismo de coalizão [Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2018] que perdura até hoje sobre outras prerrogativas, como o presidencialismo de cooptação, profundamente marcado por uma relação tênue, tensa e simbiótica entre Executivo e Legislativo. Essa prática política é consequência duma Carta Magna que dá ampla força ao legislativo, contudo, numa república presidencialista. O legislador acreditava que no plebiscito realizado em 1993, o cidadão, já pleno de seus direitos civis, sociais e políticos optaria pelo sistema parlamentarista, ficando a chefia do governo [primeiro ministro] destinada ao partido com mais cadeiras na Câmara e no Senado Federal e ao presidente da República, a chefia de Estado – portanto uma República Parlamentar. Todavia, as urnas em 1993 indicaram outro desejo dos brasileiros: o regime presidencialista, com o Executivo concentrando em suas mãos a chefia do governo e também a do Estado, numa concentração para lá de temerária, mas é o que temos. E daí? Pergunta que o sociólogo e professor do IFCH da Unicamp – de quem tive o prazer de ser aluno – Octávio Ianni (1926-2004) fazia sempre nos finais de suas aulas, sempre concorridíssimas.

Como o meu leitor semanal pode perceber, passados três décadas, os equívocos constitucionais ainda permanecem, transformando o país numa nau ingovernável com presidentes após presidentes esbravejando isso e aquilo, batendo na mesa dizendo que manda e desmanda, contudo na esfera privada, ou seja, nas relações com os demais países, a situação beira ao escárnio para não dizer vergonha, humilhação. Se for tentar achar um culpado, não será difícil encontrá-lo, pois ele ressurge a cada quatro anos em situação xifópaga com o seu escolhido: o eleitorado que vive uma existência simbiótica com aquele que deveria atuar para melhorar as condições de vida de todos, indistintamente, conforme está previsto na Constituição Federal, segundo a qual, todos são iguais, contudo, está dispensado dessa atividade, pois a democracia por aqui é delegativa. Então, que tal embarcar na máquina do tempo?

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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