Machado de Assis para prefeito

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Para aqueles que ainda não o conhecem, vou apresentá-los: Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro em 21 de junho – portanto sob o signo zodiacal de Câncer – de 1839 e desapareceu, ou seja, veio a óbito em 29 de setembro de 1908. Durante os 69 anos de existência, este símbolo singular da literatura brasileira enfrentou dificuldades desde o nascimento, já que era filho de um descente de escravo alforriado com uma portuguesa. E ser descendente de africanos, mantidos em cativeiro naquela época, bem como ainda hoje, requer muita persistência para se sobressair numa sociedade marcada, sobretudo pelo preconceito étnico, econômico e material.

Machado que, enquanto compunha sua obra composta por crônicas jornalísticas, contos, poemas, peças teatrais e romances, trabalhou na imprensa carioca e posteriormente conseguiu uma colocação na estrutura administrativa dos governos monárquicos e republicanos, tendo se aposentado no Ministério da Agricultura – esse assunto é abordado no capítulo Machado de Assis entre a realidade e as letras que integra meu livro O sentido da República em “Esaú e Jacó”, de Machado de Assis. Acho que até ai todos já sabem, mas o que muitos, eu creio, não conhecem é a genialidade deste escritor que nos legou obras ficcionais que nos possibilitam entender o funcionamento do Brasil nessas primeiras décadas do século XXI. Há uma enorme bibliografia sobre a contribuição romanesca do folhetinista que provocou a elite carioca da época com seus textos enigmáticos, contudo, reveladores da alma humana e como o indivíduo é mesquinho e usa da perfídia quando tem interesses em se tornar eleito por parte de uma patuleia avida por pão e circo, porém, sem uma visão clara do universo da política.

Um exemplo do que acabo de externar acima pode ser encontrado no capítulo IV Ideia fixa, que está contido no clássico Memórias póstumas de Brás Cubas. Em determinado trecho dessa seção, o narrador, que se coloca na condição de defunto-autor, diz aos seus leitores: “Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem? Mal comparando, é como a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia ficou. Verdade é que se fez grande e castelã… Não, a comparação não presta”. Esse trecho, que foi utilizado pelos examinadores do vestibular da VUNESP em 1989 para avaliar os estudantes que disputavam uma vaga na UNESP a partir de 1990 – que contou com o meu ingresso no curso de Ciências Sociais daquela instituição –, permite ao observador atento, e sem um viés ideológico, compreender o presente da política brasileira, seja em que esfera for, isto é, municipal, estadual ou federal.

Outro aspecto significativo que o folhetinista Machado de Assis legou para as gerações futuras diz respeito à interpretação dos fatos que marcaram o enfraquecimento da Monarquia. Há vários pontos apresentados em romances, contos e crônicas, mas eu destaco um em específico e que pode ser acessado pelo leitor no site http://www.revistacomposicao.ufms.br/composicao15.pdf, mais especificamente o artigo Monarquia e República nas crônicas machadianas. Neste texto eu, juntamente com o meu orientador o Professor-doutor Carlos Henrique Gileno, aponto como o cronista, através duma narrativa metafórica, para não dizer alegórica, informa os seus leitores, a partir da personagem Augusto República, que o Império estava carcomido e prestes a ruir. Desta forma, parece-me que as reflexões machadianas podem ser significativas para os que buscam entender o funcionamento da máquina pública brasileira.

Indico aos estudantes e, também aos não estudantes, ou seja, aqueles que já passaram pelos bancos escolares ou não, mas alfabetizados, a leitura do conto Capítulo dos chapéus. É uma pequena obra em que o contista narra as peripécias de duas mulheres pelos corredores do Congresso Nacional, sendo que uma delas namora um político que exige dela apenas que vá ao parlamento assistir seus discursos. Interessante notar que quando o amado está esbravejando, somente ela presta atenção nos discursos, enquanto os demais pares ficam conchavando com os outros parlamentares as votações que dizem respeito ao interesse de determinado segmento. Machado registrou, de forma ficcional, isso no Brasil Oitocentista, entretanto, basta assistirmos as sessões de qualquer legislativo brasileiro e verificaremos que a coisa continua a mesma, ou seja, ninguém da trela para o que é propalado do alto das tribunas, a não ser que o que está sendo dito é de interesse de seus financiadores e chefes partidários. Isso é fruto duma democracia delegativa e não participativa, conforme nos atesta o cientista político Guillermo O’Donnell em seu artigo Democracia delegativa? – o texto, para os interessados, pode ser acessado, de forma gratuita, no http://novosestudos.uol.com.br/v1/files/uploads/contents/65/20080624_democracia_delegativa.pdf.

Para não cansá-los, meus caros leitores, seguirei adiante no campo das enunciações de um dos nomes mais significativos das letras mundiais. Em Esaú e Jacó, conforme apontei em meu livro que lançado pela Editora Novas Edições Acadêmicas – braço de uma editora da Alemanha -, o escritor faz uma ponte entre o Antigo e o Novo Testamento para dizer que Monarquia e República, a exemplo do que aconteceu com as personagens bíblicas Esaú e Jacó – que deram origem às tribos árabes e judaicas – saíram do mesmo ventre, isto é, da mesma situação política da época em que as divergências se pautavam pelas diferenças entre Liberais e Conservadores. Se isso foi no passado, no presente, os ventos que sopram do universo candango dizem que os dois lados da moeda que se digladiam pelo impeachment da atual mandatária saíram do mesmo buraco político cavado pelo arauto do petismo nacional. Sendo assim, o criador que articulava para se manter sob os holofotes do poder, repudia sua criatura somente porque ela resolveu ter brilho próprio e para isso construiu suas asas, não semelhantes às de Ícaro, mas sim idênticas às que a Constituição Federal lhes forneceu.

Enfim, percorrer as páginas confeccionadas por Machado de Assis no século XIX, entre elas, os contos O enfermeiro, O alienista, Pai contra Mãe, A cartomante, significa mergulhar na formação de um país que se queria moderno, porém, mantendo a escravidão como estrutural socioeconômica que contaminou, não somente o escravagista, mas também o próprio cativo, de acordo com o que demonstrei em meu artigo A violência do escravismo em Machado de Assis e disponível no site http://revistas.marilia.unesp.br/index.php/levs/article/view/5054/3590.  Desta forma, creio que será possível a todos os brasileiros que, se seguissem o exemplo dos alemães, conheceriam as obras de seus literatos, como José de Alencar e assim, teriam condições de entender como a ficção e a realidade, se misturam, possibilitando interpretações dos atuais fatos políticos como consequências dum passado que se faz presente no momento em que as pessoas se relacionam visando um fim específico, ou seja, integrar uma burocracia, com ares aristocratas, eficiente objetivando o bem comum e não de determinados segmentos que desejam encastelar-se nos cargos de comando e ingressando na classe de plutocratas. É neste sentido que gostaria de ver Machado de Assis prefeito de um dos mais de cinco mil municípios brasileiros.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, sociólogo, professor no ensino superior e médio em Penápolis. Pesquisador do Grupo Pensamento Conservador – UNESP e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS-UNESP. Escreve às quintas-feiras neste espaço: www.criticapontual.com.br. E-mail: gilbertobarsantos@bol.com.br, gilcriticapontual@gmail.com, e gilberto_jinterior@hotmail.com .

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