Liberdade constitutiva da cidadania

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Não sei qual pensador francês deixou estampado nas páginas da Enciclopédia – compêndio publicado na época do Iluminismo Francês – a assertiva, segundo a qual, não concordaria com que o seu oponente, ouvinte ou interlocutor dissesse, contudo defenderia eternamente o direito deste sujeito social externar suas observações e olhares diferenciados.  Somando-se a essa observação cunhada na França Oitocentista e tão importante na constituição de sociedades democráticas, recorro a Constituição Federal Brasileira – a constituição cidadã – para tentar desenhar umas mal traçadas linhas enfocando a liberdade de informação e opinar sobre quaisquer temas que assim desejar, lógico dentro dos preceitos legais.

No problemático artigo 5.º – complexo para aqueles que adoram uma bajulação e não gostam de ser questionados em seus atos de desmandos e atrozes arbitrariedades – da Constituição Federal, é possível compreender o dispositivo indicando que “todos são iguais perante a lei”. Vejam bem, meus caros leitores, a igualdade aqui é definida apenas do ponto de vista da letra fria da lei – me corrijam os meus amigos entendidos ou operantes do Direito. Isso quer dizer que tudo o que não esteja na legislação não existe. Desta forma, apenas na Constituição é que todos são iguais, fora dela, pode-se esquecer essa ideia de que todos viveriam em harmonia e aí, retrocederíamos aos tempos reportados pelo pensador inglês Thomas Hobbes (1588-1679) em seu Leviatã, isto é, no estado de natureza, momento em que todos são contra todos, personificado na concepção, segundo a qual, o homem é lobo do próprio homem. Todavia, Hobbes escreve o tratado para explicar como foi necessário o advento do Estado para cessar essa forma beligerante da existência social do homem.

Se a partir da constituição dum estado, normatizado pelos poderes tipificados por Montesquieu (Charles-Louis de Secondat – 1689-1755), em seu clássico O espírito das leis, pode se vislumbrar a tal da igualdade e por que ela não foi concretizada até o momento? Seria fruto dos desenvolvimentos acelerados do sistema capitalista? Seriam consequências das relações violentas entre os chamados povos “civilizados” de além-mar e os “nativos” e, porque não, os africanos? Creio que o processo é lento e muito longo, sem que as autoridades constituídas tenham interesse em minimizar a problemática. Sendo assim, a igualdade é apenas formal, já que na prática a situação é bem diferente. Parece-me que todos que me leem semanalmente aqui são cônscios de que existem dois Brasis: aquele que está contido na lei – que acaba sendo devorado pela pecha “lei para inglês ver!”, cunhada nos tempos da escravidão -, e o segundo que vive de conchavos nos bastidores palacianos, atrelado com a cultura burocrática aristocratizada sempre batizada e empossada pela plutocracia que, desde o Império, vive das tratativas e de acordos espúrios nos subsolos do poder.

Levando em conta as observações contidas nos parágrafos anteriores, como é que o item IV do referido artigo, segundo o qual “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, pode ser evidenciado numa sociedade em que o “coronel” pós-moderno ameaça deus e todo mundo quando está-se diante de informações que não podem ser vedadas ao povo, ou melhor, ao eleitorado? A pergunta me reporta ao começo deste texto quando enfoquei a Revolução Francesa em seus lemas significativos: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Na alínea V da mesma constituição, o sujeito social e cidadão encontrará a seguinte assertiva: “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”. Até aqui, ao que está indicado, tudo se encontra dentro das conformidades legais, isto é, a lei que, no campo da sua formalidade, não foi desrespeitada. Entretanto, numa sociedade em que a cidadania é artigo de luxo, ou seja, é pertence a pequenas e seletos grupos, fica complicado ao indivíduo formar uma opinião sobre determinados assuntos, pois a verborragia e o vilipêndio àqueles que ousam, a exemplo da alegoria da caverna platônica, tendem a ser corrosivas.

Sobre esse aspecto há uma passagem no romance Eu vos abraços, milhões, do escritor gaúcho Moacyr Scliar (1937-2011) em que um funcionário duma determinada fazenda, ousou levantar os olhos para fazer uma queixa ao proprietário, foi açoitado por este depois de ser agredido verbalmente e com tapas no rosto. Claro que a ficção retrata uma situação do Brasil longínquo, aquele das primeiras décadas do século XX, mais especificamente nos primeiros decênios após o fim do escravismo, entretanto, ela permanece de maneira diferenciada, velada, porém, tão violenta quanto o tapa desferido pelo coronel no rosto do empregado retratado no romance de Scliar. A questão fica mais complexa quando o item XIV da Constituição Federal diz que “é assegurado o todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. Aqui a coisa fica mais nevrálgica por que, de certa forma, o cidadão que busca compreender o mundo que o cerca, seja na paróquia, no Estado ou Nação, acaba não acessando a informação correta, usando as Fake News como se fossem verdades absolutas emanadas do alto do trono, interessado em manter a massa alienada e amorfa.

De qualquer forma, não é possível se construir uma cidadania tentando fazer com que o dado, o fato seja visto apenas a partir dum ponto de vista, através do que o pensador alemão Walter Benjamin (1892-1940) chama de rua de mão única. Contudo, para que essa emancipação aconteça, a educação precisa ser plural e não engessada como querem algumas pessoas que ocupam cargos importantes na cúpula federal. Faz-se necessário auxiliar a estudantada a transformar informação em conhecimento e isso exige um quantum significativo de práxis pedagógica e pouca verborragia. Ao ser capaz de fazer a passagem do mundo da informação para o universo do conhecimento, o indivíduo também pode se enveredar por outros campos do saber, como o filosófico e o sociológico, tão importantes quanto aqueles relativos aos aspectos linguísticos e matemáticos. Chegando a esse ponto, conseguirá discernir fatos de boatos e poderá fazer uma conexão de sentido entre o hoje e o ontem na busca da compreensão das reais intenções das categorias políticas quando, em épocas eleitorais, prometem mundos e os fundos, mesmo sabendo que não é possível colocar em prática aquela empreita.

Enfim, me parece que o Brasil está longe de se tornar um país democrático, quiçá sua constituição ser a mais avançada que essa Nação já teve, entretanto, mantêm uns ranços para lá de arcaicos que datam da Constituição de 1824 e isso vem emperrando o progresso da sociedade, somando-se a isso os resquícios dum liberalismo senzaleiro, conforme nos aponta o crítico literário Roberto Schwarz em seu trabalho As ideias fora do lugar.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor do ensino superior e médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

 

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