Gilberto de Assis Barbosa dos Santos
“- O que o senhor vai consumir hoje”, me perguntou a garçonete esboçando uma tentativa de diálogo, tendo em vista que sou frequentador assíduo daquele café, inclusive o ambiente já figurou outras vezes nos textos que vos trago semanalmente aqui, meus caros leitores.
“- O de sempre”, respondi, mas, pasmem, a funcionária fez aquela cara de quem não sabia direito a minha solicitação, mesmo sendo eu um frequentador assíduo quase que pedindo o cardápio dos dias anteriores, mas vamos lá, talvez ela seja obrigada a perguntar sempre, ainda que sabendo que vou pedir um café grande, água em temperatura ambiente, um suco de maracujá e um croissant.
– Por que está me perguntando se me atende quase todos os dias e consumo a mesma coisa?
“- Praxe da casa! Não podemos demonstrar em hipótese alguma, qualquer tipo de intimidade com os nossos clientes. Coisas do sistema capitalista ou coisa parecida. Sabe como é: quem precisa trabalhar deve entender que as ordens são para serem cumpridas e não questionadas, e além do mais há ouvidos e olhos para todos os lados. Sendo assim qualquer falha de comunicação pode ser letal para quem precisa do salário no final do mês”, segredou-me Solange.
Queria lhe perguntar o nome, mas resolvi não o fazer até porque estava estampado no crachá que ela portava. Então repeti o mantra dos dias anteriores e enquanto ela se afastava abri um livro que sempre carregava comigo, indicando que não tinha interesse de conversar com ninguém, exceto se alguém viesse com algum assunto interessante ou até mais instigante do que a história que me atraia para dentro da enunciação.
O meu pedido chegou tão rápido quanto foi feito e assim que sorvi uma quantidade considerável do café e dei uma dentada gigantesca no croissant, entre olhar para o que ia ingerir e a página aberta do livro, adentra ao estabelecimento o infinito. Sim, vocês não leram errado não, meus caros leitores, o etéreo ingressou naquela tarde, entre a minha rotina diária e as linhas que estou confeccionando agora diante do meu terminal aqui na redação.
“Mas por que infinito, eterno”, deve estar se perguntando o meu mais arguto leitor. Deixe-me pensar aqui como te responder a essa singela e sublime interpelação. Bem a moda filosófica, como fazia um antigo professor dos tempos de faculdade, direi fazendo outro questionamento. “- Qual é a distância entre o céu e a terra? Ou melhor, entre o Sol e a Lua”. Naquela tarde de segunda-feira, quando a semana se principia para todos nós, eu diria que 1.60, eu acho. Pelo menos é o que me parecia, levando em conta tudo e mais alguma coisa, entretanto, não vou me deter nessas coisas, pois mensurar a distância entre o céu e a terra em pouco mais de um metro e meio, significa entender o tal do infinito.
Quero que saibam que não dá para definir corretamente a altura da diva que passou pela minha mesa porque ela usava um salto, tipo Luiz XV que a deixava mais estonteante ainda, indicando ser mais alta que eu. Não podia olhar, pois a dona daqueles sapatos podia desconfiar. Existem mulheres que tem olhos nas costas e percebem qualquer movimento de desejo que possa advir de seus admiradores. Pelo menos foi isso que li num romance dia desses que agora não me recordo o nome. Mas voltemos aqui ao ambiente interno da cafeteria.
Mesmo observando de maneira bem rápida e sutil, foi possível vislumbrar a roupa que a senhorita usava, enquanto desfilava a sua beleza entre a minha mesa e o balcão onde pediu apenas uma água. Enquanto sua solicitação era providenciada, aguardava sentada numa das banquetas que havia ali. Tirou o celular da bolsa e passou a conversar com alguém do outro lado. Não botei reparo no que dizia, pois não tinha nada a ver comigo, se bem que é sempre bom, no mundo do jornalismo estar atento a tudo e a todos os movimentos, por mais insignificantes que pareçam, sempre tem algo a nos dizer e foi justamente isso que me chamou a atenção naquela pessoa.
Primeiro, a mulher trajava um macacão verde musgo, que deixava seus traços físicos bem definidos, sem cair na vulgaridade, sem calcinha marcando. Há homens que gostam de exibir suas esposas, namoradas, noivas aos outros como quem está delimita território. Existem aqueles que adoram mulheres discretas que sabem entrar e sair dum estabelecimento como aquele em que eu estava naquela tarde de segunda. As roupas são sempre muito bem cortadas, decotes maravilhosos em que não se mostram quase nada, mas deixa o observador imaginando tudo e mais alguma coisa. E quando elas passam, fazem questão de olho no olho para dizer ao abelhudo que prestou atenção no desejo dele e gostou do silêncio com que lhe apresentou isso.
A água dela chegou e foi consumida numa rapidez como aquela quando passou pela minha mesa. Achei que ela deixaria o ambiente, mas foi se sentar em uma mesa bem próxima do balcão, contudo, antes, falou baixinho, na famosa conversa de pé de orelha, com a garçonete. Quanta leveza havia naquele caminhar e novamente percebi que existia um desenho no braço direito dela. De onde eu estava pude notar que formava um oito que mudava de posição conforme o corpo se posicionava na cadeira e o braço ficava pousado sobre a mesa.
Ela havia pedido um vinho branco que chegou geladíssimo e numa velocidade que faria inveja aqueles carros de corrida. Estranhei aquela solicitação por ser uma tarde de segunda-feira, mas vá lá meus caros leitores, quem precisa de algum motivo para celebrar a vida e aquela moça-senhora, que aparentava estar na casa dos trinta não passando dos quarenta, deveria ter tudo para ser celebrado. Mas não falemos dela e sim do símbolo estampado no braço. A primeira vez que o vi, o oito estava na vertical e quando ela se sentou, o mesmo desenho ficou na horizontal, indicando infinito, ou seja, que o etéreo era infinitamente infinito e eu desejaria que a eternidade durasse o tempo em que ela gastou para levar a taça de vinho à boca.
Se fosse narrar aqui tudo o que senti naqueles microssegundos, ficaria a eternidade a escrever, dizer, enunciar, sem ter dito tudo, mas mesmo assim, ainda fiquei com toda aquela cena na cabeça e procurando algo no meu croissant que foi consumido no automático. Passei para o suco de laranja, me esquecendo de adoçá-lo. Enquanto sorvia o líquido, foquei o pensamento no saber de mel daqueles lábios e recordei o romance Iracema, de José de Alencar, cuja personagem era conhecida como “a virgem dos lábios de mel”.
Naquela tarde de segundona quem estaria pensando no romance alencariano quando se tinha à frente uma escultura formatada pelos deuses gregos? Fiquei imaginando a sereia que atraia os marinheiros que cismavam em navegar por águas desconhecidas e Ulisses a desafiou. Pensei em me levantar e conversar com ela, mas logo a ideia estampada em Odisseia me fez ficar estático no meu espaço. Apertei o botão que estava em cima da mesa, chamando a garçonete e, enquanto ela anotava o meu novo pedido: uma omelete com queijo, perguntei quem era a distinta dama que degustava o vinho.
“- Acho melhor o moço ficar distante. Ela é casada e o marido tem ciúmes até das calcinhas que ela usa”, me informou Solange.
– Cruzes! Quero distância, mas…
“- Fique tranquilo. Ela já notou o senhor”, paradoxalmente, revelou a garçonete.
– Como sabe disso?
“- Me mandou uma mensagem querendo saber mais do moço do jornal”, relatou Solange.
– E o que você disse?
“- Disse a verdade: que tu tens um pé na lua e outro a caminho”, cravou a atendente.
– Nossa senhora dos jornalistas aluarados! Você não é amiga da onça! É a onça mesmo!
Solange saiu para encaminhar o meu pedido e eu fiquei ali lendo uns trechos do livro que portava: o romance Eu, Jacques o fatalista e seu amo, do escritor e filósofo francês Denis Diderot. Ao tirar os olhos da página e dirigi-los à senhora que degustava o vinho, percebi que ela já tinha uma companhia e pelo jeito que ele olhava para ela, só podia ser o marido que indicava estar infinitamente feliz por ter ao seu lado aquela bela ode à beleza dos deuses, provocando inveja em Afrodite, aquela que o pessoal diz ser a deusa do amor.
A omelete chegou e me concentrei na degustação, enquanto minha mente ficava era bombardeada por imagens sobre uma suposta noite de amor entre eu e a mulher do infinito, pensando como dizia aquele poeta, como é mesmo o nome dele: Vinícius de Morais: “que seja etéreo enquanto dure”. Assim que terminei minha refeição, acionei a garçonete novamente para pagar a conta e trocar as últimas palavras sobre aquela dama, que tanto encanto me deu naquela tarde de segunda-feira.
“- Ela se chama Ana e pediu para eu lhe passar o valor da conta”, relatou Solange me entregando um pedaço de papel em que constava um pequeno texto: “adorei a sua discrição”. Em seguida havia uma série de números que se pareciam com o de um telefone. Não acreditando no que lia, coloquei o fragmento de papel no bolso e deixei o estabelecimento, enquanto a degustadora de vinho permanecia no local com seu ciumento marido. Chegando à redação do jornal, me coloquei em pensamento e ao ato da escrita.
Gilberto de Barbosa dos Santos, licenciado, bacharel e mestre em Ciências Sociais, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis. E-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com. www.criticapontual.com.br.