Entre nuvens e pandemia, uma reflexão

Gilberto Barbosa dos Santos

 

De acordo com um notório poeta “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”, eis a grande assertiva para uma reflexão hoje e nos dias, semanas, meses, todos vindouros, pois ainda há esperança num amanhã sem tantas dores e rangeres de dentes. Será que o texto que se seguirá cairá nas graças dos meus leitores semanais, ou não passarão dessas linhas que findarão o primeiro parágrafo? Assim como eles, também estou curioso com a sequência textual. A diferença é que quando terminá-la saberei certamente o que pretendia com tal reflexão e aquele que ousar gastar alguns minutos do seu precioso tempo lendo-o poderá dizer se gostou ou não, ou até mesmo bradar que não entendeu nada do que eu pretendia vos dizer nesta manhã, tarde, noite – não sei ao certo o momento em que as futuras linhas traçadas aqui serão devoradas por aqueles que têm interesse em analisar o que penso em escrever nesse mais um dia pandêmico. Não vou tratar desse assunto aqui: ele é deveras preocupante, principalmente para aqueles que buscam uma distração nas enunciações que teimo em escrever, buscando me comunicar com o mundo que existe para além dos muros de minha residência.

Posto isto e para não perder tempo com amenidades, então coloco-me a enunciar algo que seja pertinente com o meu, o teu e o nosso existir, meu caro leitor, mesmo que, conforme diz o cantor Nando Reis: “O mundo está ao contrário e ninguém reparou!” Sim! Enquanto escrevo estas linhas, sou um, mas quando elas serão consumidas pelo seu hábito leitor, poderemos ser dois, mesmo que estejamos em total discordância, já que na Enciclopédia francesa, nós dois encontramos a frase segundo a qual, quem a escreveu não concorda nem comigo e nem contigo, meu caro interlocutor, todavia, defende eternamente o direito que temos de dizer, vociferar o que quisermos, só não podemos ser antidemocráticos, pedirmos o fechamento de instituições como STF e o Congresso Nacional e acharmos que somos os donos da verdade, mas, o que é a verdade mesmo? Será que tudo depende do ponto de vista de quem a observa e a propala? Ou é algo imutável como as leis da termodinâmica, as Leis de Newton, a mecânica celestial, ou o giro que a Terra dá em torno do Sol ininterruptamente, independentemente do que esteja acontecendo no interior do corpo celeste, como essa pandemia que deixará severas sequelas em todos nós, cujas marcas serão indeléveis, mesmo que as gerações futuras digam: no ano de 2020 houve uma pandemia que devastou o planeta, a exemplo da peste negra – que deixou muitas mortes e a ode “para quem os sinos dobram”. Os integrantes das gerações do amanhã, assim como quem está aqui hoje percorrendo essas linhas que confecciono num dia qualquer da semana enquanto o vírus continua fazendo vítimas lá fora, olharão para o amanhã como presente, quando damos uma passadinha lá pelo ano de 1918, no final de uma sangrenta guerra, a famosa gripe espanhola deixava muitos corajosos soldados prostrados na cama amedrontados, não pelas saraivadas de balas e tanques inimigos, mas por um minúsculo vírus que viajava de corpo em corpo, usando a expressão material como transporte para alçar e ceifar novas vítimas, estejam elas na América ou além-mar na Europa.

Fico cá de minha janela olhando as nuvens passearem num céu azul, indicando que uma chuva está longe de chegar até essas paragens, sonorizando e dando ritmo aos meus sonos e anseios por dias melhores. Enquanto elas continuam diariamente o seu bailado celestial, interpelo-me sobre os motivos que levam a vida, o mundo, o globo a repetir tragédias. Poderia aqui elencá-las, mas são tantas que o meu leitor ficaria aí pelo menos umas três ou quatro semanas lendo os nomes, mas acho que para fins reflexivos, devo nomear algumas, como a já citada gripe espanhola, as vidas ceifadas pela AIDS, as duas guerras mundiais que quase aniquilaram o mundo por desejos atrozes de seres inescrupulosos que contaram com a anuência vingativa de seus povos em virtude das tais questões financeiras. Por exemplo, por que a Alemanha produziu o sanguinário nazismo? Por que a Itália deu vida política a Benito Mussolini (1883-1945), seu fascismo e seus apoiadores, os famosos camisas-preta? E a Rússia feudal que, nem bem chegou a ser capitalista passou a viver sob o auspicio da ditadura dos sovietes numa clara tentativa de personificação de um capitalismo estatal, cujas consequências são sentidas até hoje na Rússia oligárquica de Vladimir Putin? Todas as perguntas eu me fazia enquanto o Sol se firmava no céu tingindo de anil e de olho na noite que já estava ali beliscando o ponto de fuga no horizonte.

Olhem só meus caros leitores, eu ainda nem fiz perguntas alusivas ao universo econômico, que pode muito bem ser um dos responsáveis pelas investidas de personagens, até então folclóricas no mundo da política de seus países e o Brasil não ficou atrás na busca pela sua tragédia democrática particular. Há aqueles que creem que uma sociedade autocrática pode fazer seus cidadãos mais felizes, como a fictícia sociedade ilustrada no romance Os tambores silenciosos [Josué Guimarães: 1921-1986] enchendo-os, como aquelas crianças que ganham um monte de presentes do papai-noel e não querem nem saber se o velhinho, vestido de vermelho, existe ou não, ou se os país tem dinheiro ou não para pagar aqueles amontoados de penduricalhos colocados ao sopé da árvore de Natal. Ai daquele casal que presentear o filho com um pandeiro e uma cuíca, como relatado naquela música dos anos 70 do século XX? O melhor mesmo é dar ao rebento algo que lhe possibilite, fora de casa, bater no peito e dizer-se melhor do que o colega por conta do valor do bem, sempre pela sua robustez material e nunca pela subjetividade expressa em suas formas e seus conteúdos. Mas quem lá está ligando para isso, não é mesmo, meu caro leitor? O mais importante é existir no aqui e agora, pois conforme escreve Zygmunt Bauman (1925-2017), o amanhã é o eterno presente na fluidez do agora. Sendo assim, o que se pode fazer é ser o melhor agora, nem que para isso precise zoar o colega, dar-lhe pecha a partir de determinados marcadores sociais, étnicos e físicos. Só se existe uma vez na vida, então, o importante é fazer como aquele empresário que humilhou o policial militar que foi chamado para atender uma ocorrência de violência doméstica.

Mas o que são as leis mesmo, como disse aquele cidadão, quando se tem renda mensal de R$ 300 mil? A letra fria da lei pode ser congelada ou ideologizada com um salário desses? Existem aqueles que acreditam, pois como eu disse no início deste texto, “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Portanto, se trata aqui de tentar entender essa alma e qual é o valor dela. Penso a alma aqui a partir do que define Platão, ou seja, aquilo que anima o homem, isto é, o seu ser em si. Desta forma, quando a boca de um cidadão, que precifica a sua conduta e a do seu semelhante a partir de determinados marcadores sociais, reclamar dos políticos, basta observar qual é o foco do seu ponto de vista e o que lhe dá sentido nesta existência corporal, repleta de mercadorias, sendo que a mais valiosa e que se deprecia mais rápida é a vida humana. Em virtude disso, é que me parece que a sociedade está numa cruzada pela sua própria eliminação, justamente porque, como disse Marshall Berman (1940-2013) em seu excelente ensaio Tudo se desmancha no ar, para que se preocupar com o futuro se o hoje se dissolve em seu próprio consumo, todavia, não se pode perder de vista que o Sol amanhã, depois de deixar a Lua e as estrelas brilharem, voltará a reinar por doze horas.

Enfim, enquanto o orbe rodopia diariamente em torno do seu próprio eixo e 365 dias e seis horas ao redor do Sol, cabe a cada um de nós habitantes da nave Terra decidirmos como queremos viver e qual sociedade vamos construir. Contudo, enquanto o vírus grassa lá fora, que tal aqui dentro de nossos íntimos dialogarmos com o que vem nos animando até o momento e tentar saber o que a alma quer e como quer, afinal onde estará o coração do homem, ali será encontrado o seu tesouro e seus valores, sejam eles éticos e morais. Que todos nós, meus caros leitores, usemos esses momentos pandêmicos para profundas reflexões.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *