Gilberto de Assis Barbosa dos Santos
Outro dia, num sábado, para ser mais específico, estava percorrendo as páginas dum jornal de circulação nacional quando numa matéria sobre um poeta maranhense me deparei com uma expressão cunhada pela escritora e membro da Academia Mineira de Letras, a professora aposentada Conceição Evaristo. O termo, literalmente é “escrevivência” e diz respeito ao ato da escrita que tem como escopo o cotidiano e a memória de pessoas. Fiquei tentado a vislumbrar quem seriam os indivíduos sociais do presente que teriam condições de registrar seus pretéritos e perspectivas futuras numa enunciação. Se puxarmos pela história brasileira, saberemos que a batalha é árdua, não só para se fazer ouvido mediante a escrita, mas sobretudo a partir de quem vai ler e entender o sentido dessas narrativas.
Não vou, meu caro leitor, entrar no mérito aqui desse ontem do Brasil, pois todos nós sabemos, inclusive aqueles que tentam negar um passado racista que se faz presente em nossa atualidade, como ele é. Claro que não poderia deixar de indicar nesta crônica que, nos últimos cento e trinta anos, isto é, de vigência republicana, a Nação teve mais governos ditatoriais, autocráticos, sendo que na maioria deles a baioneta, o coturno e o verde-oliva assombravam a sociedade e sobretudo os brasileiros que pensavam e continuam refletindo diferentemente daqueles que acreditam que um país se constroem com autocratas e tiranetes no poder. Só para não perder o foco de minhas narrativas, faço, como das outras vezes, uma pergunta: qual era e continua sendo o escopo das enunciações que se seguirão, meus caros leitores? Observem que sempre enfatizo o plural, porque, eu e tu, não somos mais singulares na medida em que compartilhamos o narrado, seja para questionar ou concordar em partes ou até mesmo em sua totalidade. Todavia, é preciso registrar que não existe unanimidade em nada, inclusive entre casais que vivem fazendo juras de amor, enquanto durarem os idílios e desejos de ambas as partes da querela sentimental. Mas aí é uma outra historíola que deixo para contar numa outra ocasião.
Quem gosta de contar histórias, principalmente quando o conteúdo são os seus feitos? Creio que todos nós, mas a diferença é como fazê-lo e qual é o motivo por trás dos enredos. Claro que em tempos de desejos dum Estado da Providência Pessoal, os sujeitos que compõem à sociedade, almejam narrativas que exaltem seus feitos quando se tem uma plateia que corrobora com a ideia de força, potência, virilidade, bem típicas do patriarcalismo. Agora imagina tu, meu caro leitor, ajustar esse patriarcalismo ao patrimonialismo e o plutocracismo bem peculiar na sociedade brasileira? De acordo com o escritor e político brasileiro, José Martiniano de Alencar, o desejo de se enriquecer a partir de tratativas escusas com o trono, lembrando que ele escrevia a partir do Brasil monárquico, sempre esteve no cerne das relações entre as esferas públicas e privadas em nosso país.
Poderíamos, você e eu, ficarmos dias a fio conversando sobre essas coisas de nossos pretéritos, mas a questão que fica é: chegaremos a algum lugar, principalmente nesses momentos em que tudo é muito apressado e para ontem, como se diz no jargão popular? Cada um de nós teremos uma resposta a essa pergunta a partir de suas vivências, que poderão ser ou não grafadas em linhas como as que se seguem ou em narrativas orais, seguindo as tradições que se encontram entre os povos originários dessa imensa área geográfica que ganhou alcunha de ter dimensões continentais. Desta forma, não tem como deixar de fazer uma perguntinha básica: tratar da ancestralidade branca brasileira é a mesma coisa que abordar os pretéritos das outras duas matrizes étnicas que formataram esse país? Claro que posso aqui, mediante o uso da palavra escrita, dizer que é na enunciação que se torna possível não deixar morrer as memórias, mesmo que sofridas de povos, como as etnias africanas que foram trasladas para cá, de forma violenta.
Poderia grafar muito sobre isso e aquilo, contudo, o meu escopo neste espaço é tão somente dizer que se pode falar de tudo, sobretudo, sobre o nada, tudo dependendo do que se propõe a dizer usando como mecanismo a palavra soprada pelas bocas ancestrais e escrita pelos descendentes que ousaram a questionar as imagens fantasmagóricas que uma elite nacional tenta afixar nas mentes dos mais desavisados. Mas vamos lá, deixemos essas querelas passadistas para outro expediente, ficando, para o momento, nessa nossa tentativa de entender como o “outro” se manifesta a partir de nossos valores éticos e morais. Gosto sempre de perguntar, imaginando que um dia, mesmo que longínquo, escutarei a resposta soprada lá dum passado que é forjado pelo presente desta escrita. Quando desejamos contar nossos feitos, o fazemos da maneira como eles aconteceram ou acrescentamos coisas que gostaríamos que tivessem acontecido? Aqui me reporto ao pensador grego, Aristóteles e seu texto Poéticas. Naquela obra, o filósofo faz uma comparação entre o historiador e o poeta. Segundo ele, o primeiro conta aquilo que foi, de acordo com os registros documentais e o segundo aponta em sua enunciação como gostaria que as coisas tivessem acontecido.
Já, bem mais tarde na era moderna, outro filósofo, Nietzsche afirmou que o poeta escreve com base no material que tem à sua disposição. Desta forma, a ficção tem grandes chances de ter semelhança com o real, então o escritor seria um criador de tipos-ideais, pensando aqui como Max Weber, economista e sociólogo alemão. Mas deixemos essas coisas de Sociologia, Filosofia para circunstâncias mais alvissareiras e voltemos para o termo grafado pela imortal da AML, Conceição Evaristo, segundo ela, o enunciador só o faz a partir das memórias individuais e coletivas. Parece simples, mas não é, justamente porque o desafio é juntar as histórias de muitos dos escritores que têm suas vozes silenciadas pelas estruturas capitalistas e neoliberais com os dizeres de Evaristo, Nietzsche e Aristóteles. Aqui fica-nos uma interpelação: o sujeito dado a “escrevivêcia” o faz por quê? Há um arrazoado de enunciações que foram relegadas aos depósitos das bibliotecas e porões da história porque alguns autocratas diziam que aquilo não era leitura para o seu povo, que deveria ser mantido alienado e o endeusando. Todos sabem para onde os totalitarismos levam a humanidade. Daí a necessidade de não se silenciar a oralidade que faz letra, palavra por intermédio do verbo tornado verso que resistirá as barreiras do tempo e das autocracias espalhadas pelo orbe. Podemos divergir, pois não é possível haver unanimidade entre as múltiplas pessoas e suas respectivas personalidades, contudo, isso precisa ser feito dentro dos preceitos democráticos.
Gilberto de Assis Barbosa dos Santos, licenciado, bacharel e mestre em Ciências Sociais, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Professor no ensino médio em Penápolis. e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com. www.criticapontual.com