Cidade platônica

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Creio que deve ser dado como certo que todos já ouviram falar no tal do amor platônico e sua compreensão pode ser encontrada por intermédio de uma leitura atenta do livro O banquete [Platão]. Em linhas gerais, o filósofo grego, por intermédio de Sócrates, afirma que no princípio dos tempos, a terra era habitada por titãs, seres que possuíam tudo duplicado e portadores da energia feminina e masculina, portanto, entes perfeitos do ponto de vista material, já que não precisariam do outro para se completarem. Lógico que a discussão é feita no âmbito alegórico e mitológico, contudo, diz muito sobre os seres humanos que, ao transformar suas vivências em simples fenômenos estéticos, se esfalfam em busca do perfeito no semelhante, e para isso, procuram esconder as imperfeições de que são portadores. Espero que meus leitores compreendam que essa é uma pequena análise das possíveis leituras e entendimentos daquele livro platônico que podem ser completadas com a questão desenvolvida pelo pensador grego, para quem a perfeição, tão procurada pelos viventes, só pode ser encontrada no mundo das ideias, daí ele dizer que somente quem compreendesse geometria seria aceito em sua Academia.

Parece-me que no parágrafo anterior, de forma bem sintética, busquei introduzir a problemática que pretendo discorrer hoje, levando em conta que a escrita é o constante burilar do que vai n’alma – aquele ente abstrato que, no entender platônico, movimenta o mundo concreto – e na consciência daquele que se pretende dizer alguma coisa por intermédio do desenho do som e não da palavra soprada e grafada na pedra d’alma por intermédio dos signos e seus respectivos significados e significantes. Posto isso, entendo que seja interessante perguntar aos meus leitores – espero que ainda os tenha, embora não consiga precisar a quantidade, mas também essa informação é mero detalhe, levando em conta que depois que o enunciado é estampado em páginas como esta que tens em mãos e também nas redes sociais e internet perde-se a dimensão de seu alcance total, por isso creio que é preciso ter o que dizer e assim construir o enredo. O narrado deve conter imagens que possibilitem os leitores, conforme nos indica o semiólogo Umberto Eco (1932-2016), completarem o entendimento a partir de suas experiências humanas. Neste sentido, o amor platônico é aquele construído cotidianamente apenas no mundo dos que sente, sempre a espera dum vir a ser que pode não chegar, mas é alimentado pelo sonho e desejo de se tornar perfeito através do amor que nutre por alguém que se imagina ser o ideal para se tornar um só ente como aquele titã da alegoria platônica do começo desse meu enredo? Adianto-vos que objetivo é deixar o âmbito do indivíduo individualizado para se enveredar pelo campo do ser coletivizado, sem, no entanto, abandonar o seu ente atômico, isto é, o lado uno na experiência humana consubstanciada na esfera social.

Neste ponto de minha enunciação, creio que seja significativo passar para outro ponto das minhas querências nas linhas que se seguirão, principalmente no que diz respeito ao que se é justo a partir da perspectiva ético e moral. Claro que não tenho intensão alguma aqui de entrar propriamente na discussão sobre valores éticos e morais, se bem que isso é passado de geração para geração e nunca fora do ambiente familiar, seja ele de que maneira for construído, contudo, é sempre bom ter claro que, mesmo que o mundo perfeito não possa ser encontrado na esfera material, é preciso objetivá-lo através das construções diárias e nas edificações dos relacionamentos entre os sujeitos sociais nos processos de socialização primária e secundária. Sendo assim, faço-te uma inquirição, meu caro leitor – prefiro o singular: é justo viver numa sociedade em que alimentos são esbanjados, recheando as latas de lixos e muitos humanos, semelhantes a você, passa fome? O parnaso Manuel Bandeira (1886-1968) tem uns versos sobre isso. É correto deixar de comer para atender aos apelos estéticos, enquanto outros sonham com um prato de arroz com feijão? É normal pais terem que correr atrás de caminhões de lixo em busca de um mínimo para alimentar seus filhos, enquanto outros esbanjam em excesso o que têm?

Claro que em cada cabeça há uma sentença e a dosimetria é escudada a partir do pretérito dos togados – sem outorga – que se propuseram a tentar responder as interpelações que encerram o parágrafo anterior. Conforme sempre indico aqui, não tenho pretensões a ser douto em nada e nem juiz de pelejas e querelas se forjam na vivência social, até porque se faz necessário um cabedal de informações transformado em conhecimento para se dizer alguma coisa em relação as inquirições anteriores, entretanto, creio que seja possível dizer algumas coisas, até porque me relaciono com os meus pares, seja de que forma for, por exemplo, por intermédio dessas linhas, durante as minhas atividades profissionais, como consumidor e frequentador de determinados ambientes com os quais tenho afinidade e, durante as interações, sempre que possível, externo um quantum sobre minhas visões de mundo relativas a essa sociedade. Desta forma, afianço-vos meus caros leitores que não posso consubstanciar com um universo em que se perpetua a desigualdade social como se ela fosse natural entre os homens. Em minha pequena compreensão, digo-vos que elas são construídas historicamente e por determinação dos homens, portanto, por indivíduos que se relacionam diariamente uns com os outros, tomando decisões com base nos valores éticos e morais recebidos durante os primeiros passos no caminho da socialização que designo como sendo “socialização primária”.

Para não fugir do escopo desse texto, volto ao início do mesmo reiterando que a discussão é sobre o mundo ideal, segundo Platão, ou seja, o universo perfeito. No parágrafo inicial tratei do amor platônico e de como ele pode ser pura abstração no sentido da transferência para outro ser imaginário aquilo que o ente desejoso entende como sendo o necessário para lhe completar, sem, no entanto, voltar-se para si e saber o que lhe falta. Neste sentido, delega para outrem a busca daquilo que deveria ser encontrado dentro de si mesmo. Se essa querela de si para si é externada de forma alegórica pelo pensador grego objetivando exteriorizar como enxerga a questão do perfeito no semelhante lhe aparece como a metade daquele que o busca, como seria a procura pela cidade perfeita, ou melhor, o município platônico? Se no caso do amor, o sujeito almeja se completar no outro que seria seu igual, sem saber ao certo o que lhe falta, por isso imagina o semelhante o ente perfeito e capaz de lhe transmitir paz, todavia, nunca conseguirá perceber que ele não lhe é o espelho, principalmente se este objeto for semelhante ao pertencente à madrasta da Branca de Neve. Desta forma, em que lugar é possível encontrar uma cidade em que o justo é o Sol do local? Claro que se pode usar como referência o pensador inglês Thomas Morus (1478-1535) e sua Utopia – em lugar algum -, contudo, é preciso um esforço significativo, justamente porque estamos em ano eleitoral e há uma grita geral sobre isso e aquilo e outros tantos desajustes sociais provocados pela categoria política, no entanto, assim como o sujeito social busca o ser perfeito no outro não sendo ele o perfeito, também se deseja um político milagroso quando ele, eleitor, não o é. Creio meu caro leitor que o livro A República [São Paulo: MEDIAfashion: Folha de São Paulo, 2021], do pensador grego, Platão, pode ser útil para nos auxiliar na reflexão sobre qual sociedade queremos e o quanto estamos colaborando para que ela seja concretizada, porém, enquanto muitos passam fome e outras tantos esbanjam alimentos, não creio que a locomotiva social esteja nos trilhos para começarmos a nossa viagem humana pela Terra.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

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