Theodor W Adorno
[* Publicado originalmente em Psychoanalysis and the Social Sciences 3 (408-433) 1951. Reproduzido em Gesammelte Schriften Vol. 8, T. I [Soziologische Schriften]
Frankfurt : Surhkamp Verlag, 1975, p. 408-433. Traduzido por Francisco Rüdiger]
Durante a década passada, a natureza e conteúdo das falas e panfletos dos agitadores fascistas norte-americanos foi submetida a intensa pesquisa por parte dos cientistas sociais. Alguns desses estudos, feitos na linha das análises de conteúdo, acabaram permitindo a feitura de uma apresentação abrangente da matéria no livro Prophets of Deceit, de Leo Lowenthal e Norbert Guterman (1). A representação bastante ampla do fenômeno obtida assim se caracteriza em dois aspectos principais. Primeiro: excetuando algumas recomendações completamente negativas e bizarras, como a de pôr os estrangeiros em campos de concentração ou expatriar os sionistas, o material de propaganda fascista deste país pouco se preocupa com tópicos políticos concretos e tangíveis. A esmagadora maioria dos procedimentos do conjunto dos agitadores é feita ad hominem. Baseiam-se claramente em especulações psicológicas, mais do que na intenção de ganhar seguidores através do procedimento racional de objetivos racionais. O termo “rabble-rouser” [sublevador da ralé], embora objetável, por causa de seu menosprezo pelas massas como tais, parece ser adequado, na medida em que consegue expressar a atmosfera de agressividade irracional e emotiva propositadamente promovida pelos nossos candidatos a Hitler. Embora seja impudico chamar o povo de ralé, a verdade é que o objetivo do agitador é nisso transformá-lo; isto é, multidões dispostas a agir de modo violento e sem qualquer objetivo político, para não falar na criação de uma atmosfera favorável ao pogrom. O propósito universal desses agitadores é instigar metodicamente o que, desde o famoso livro de Gustave Le Bon, Psychologie des Foules (1895), é geralmente conhecido como “psicologia de massas”.
Em segundo lugar, o enfoque dos agitadores é verdadeiramente sistemático e se baseia em um conjunto-padrão, rigidamente delimitado, de “expedientes”. Tal conjunto não pertence apenas à unidade última de seu propósito político: a abolição da democracia, através da mobilização de apoio popular contra seu princípio de existência. Pertence ainda mais à natureza intrínseca do conteúdo e forma de sua propaganda. A similaridade dos proferimentos dos vários agitadores é tão grande que, em princípio, basta analisar as afirmações de um para conhecer a de todos os demais (2); isso é algo vale para os pequenos e insignificantes mercadores de ódio provincianos, tanto quanto para as figura de maior publicidade, como Coughlin e Gerald Smith. Além disso as próprias falas são tão monótonas que a sua repetição sem fim é facilmente constatável, tão logo passamos a nos familiarizar com seu pequeno repertório de expedientes. Realmente, a reiteração constante e a escassez de idéias são os ingredientes indispensáveis de toda a técnica.
Embora a rigidez mecânica do modelo seja óbvia e, como tal, expressão de certos aspectos psicológicos da mentalidade fascista, pode ser de valia o sentimento de que o material de propaganda fascista forma uma unidade estrutural e, assim, possui uma concepção total e comum, consciente ou inconsciente, que se revela capaz de determinar cada palavra por ela dita. Essa unidade estrutural parece se referir tanto à concepção política implícita quanto à essência psicológica dessa propaganda. Até agora, apenas a natureza de certo modo isolada e separada de cada um de seus expedientes mereceu atenção científica. Também se sublinhou e elaborou as suas conotações psicanalíticas. Agora que os elementos individuais foram suficientemente aclarados, chegou a hora de focar nossa atenção no sistema psicológico que abrange e gera esses elementos, notando-se que o termo sistema se associa ao de paranóia de um modo que talvez não seja de todo acidental.
O procedimento parece ser o mais apropriado porque de outro modo a interpretação psicanalítica desses expedientes individuais continuaria de algum modo sujeita ao acaso ou à arbitrariedade. Agora é preciso pois recorrer a algum tipo de quadro teórico de referência. Levando em conta que os referidos expedientes praticamente exigem uma interpretação psicanalítica, é totalmente lógico postular que esse quadro deverá resultar da aplicação mais abrangente de algumas idéias básicas da teoria psicanalítica ao conjunto da maneira de agir desses agitadores.
Cremos que esse quadro de referencia foi fornecido por Freud em seu livro Psicologia de massa e análise do ego, publicado em inglês ainda em 1922. Ou seja, bem antes de o perigo do fascismo alemão ter se mostrado tão agudo (3). Embora estivesse muito pouco interessado no aspecto político do problema, acreditamos que não é exagero afirmar que Freud vislumbrou claramente a ascensão e a natureza dos movimentos de massas fascistas com suas categorias puramente psicológicas. Se é verdade que o inconsciente do analista percebe o inconsciente do paciente, pode-se presumir também que suas intuições teóricas são capazes de antecipar tendências que, embora ainda estejam latentes no plano racional, já se manifestam noutros mais profundos. Pode não ter sido acaso que, finda a I Guerra, Freud tenha virado sua atenção para o narcisismo e os problemas do ego de maneira mais específica. Os conflitos e mecanismos instintivos envolvidos aí evidentemente desempenham um crescente e importante papel na época atual. Segundo testemunhos dos analistas, também é fato porém que as neuroses “clássicas”, como as conversões de histeria, que serviam de modelo para o método, estão ocorrendo de maneira menos freqüente do que no tempo do primeiro Freud, quando Charcot lidou com a histeria clinicamente e Ibsen fez dela o assunto de algumas de suas peças. De acordo com Freud, o problema da psicologia de massa está intimamente relacionado com um novo tipo de padecimento psicológico, característico de uma era que, por motivos socio-econômicos, testemunha o declínio do indivíduo e seu subseqüente enfraquecimento. Embora Freud não tenha se preocupado com as mudanças sociais em curso, pode ser dito que, mesmo se limitando aos confins monadológicos do indivíduo, ele conseguiu elaborar os traços de sua crise profunda e de sua vontade de inquestionavelmente se entregar as agências coletivas e poderosas existentes no mundo exterior. Apesar de nunca ter se devotado ao estudo dos desenvolvimentos sociais contemporâneos, Freud registrou tendências históricas ao desenvolver seu trabalho, escolher seus objetos de estudo e modificar seu conceitos orientadores.
O método do livro consiste em uma interpretação dinâmica das descrições lebonianas da consciência de massa e em uma crítica a certos conceitos dogmáticos – espécies de palavras mágicas – empregadas como se fossem chaves de entendimento de certos fenômenos aterradores por Le Bon e outros psicólogos pré-analíticos. O principal entre eles é o conceito de sugestão que, casualmente, ainda desempenha grande papel como tapa-buraco no pensamento popular, sempre que esse se refere ao fascínio exercido sobre as massas por Hitler e outros de seu tipo. Freud não questiona a propriedade das bem conhecidas caracterizações das massas como seres amplamente desindividualizados, irracionais, facilmente influenciáveis, propensos a ação violenta e de natureza regressiva em sua totalidade feitas por Le Bon. Distingue-o de Le Bon, antes, a ausência do tradicional desdém pelas massas, que é o thema probandum da maior parte dos psicólogos mais antigos. Fugindo das descobertas descritivas costumeiras e segundo as quais as massas não só são per se inferiores como provavelmente vão continuar assim, ele pergunta no espírito do verdadeiro Iluminismo: o que converte as massas em massas ? Freud rejeita a hipótese fácil de que há um instinto social ou de rebanho, porque, para ele, isso denota o problema e não a sua solução. Em adição às razões puramente psicológicas que ele dá a essa rejeição, poder-se-ia dizer que ele também está a salvo do ponto de vista sociológico. A comparação mecânica das modernas formações de massa com os fenômenos biológicos raras vezes são válidas, porque os integrantes das massas contemporâneas, ao menos prima facie, não somente são indivíduos, os filhos da sociedade liberal, competitiva e individualista, como são condicionados a se manter como unidades independentes e auto-sustentadas: eles estão sempre sendo aconselhados a ser rudes e alertados para não se entregarem. Ainda que se assuma que os instintos arcaicos e pré-individuais sobreviveram, não se poderia meramente apontar para essa herança. É preciso explicar ainda por que o homem moderno regride a padrões de conduta que contradizem de modo flagrante seu nível racional e o presente estágio da civilização tecnológica iluminista (enlightened). Precisamente isso é o que Freud deseja fazer; ele tenta descobrir quais são as forças psicológicas que resultam na transformação do indivíduo em massa. “Se os indivíduos de um grupo combinam-se em uma unidade, precisa haver algo que os una, e esse laço precisa ser a coisa que caracteriza o grupo” (4) A pesquisa em foco equivale pois a uma exposição do problema fundamental da manipulação fascista. Afinal de contas, o demagogo fascista, que conquista o apoio de milhões de pessoas para fins amplamente incompatíveis com seus interesses racionais, só pode fazer isso se, artificialmente, criar o vínculo procurado por Freud. Se a abordagem dos demagogos é de todo realista, e isso seu sucesso popular não deixa dúvida, então poderia ser hipotetizado que o vínculo em questão é a própria coisa que o demagogo procura produzir sinteticamente; efetivamente, é ela princípio unificador por detrás de todos os seus vários expedientes.
De acordo com a teoria psicanalítica, Freud acredita que o vínculo que integra os indivíduos na massa é de natureza libidinal. Casualmente os primeiros psicólogos haviam apontado esse aspecto da psicologia de massa. “Segundo McDougall, num grupo as emoções dos homens são excitadas até um grau que elas raramente ou nunca atingem sob outras condições, e constitui experiência agradável para os interessados entregar-se tão irrestritamente ‘as suas paixões, e assim fundirem-se no grupo e perderem o senso dos limites de sua individualidade” (5) Freud vai além ao explicar a coerência de conjunto das massas em termos de princípio do prazer, isto é, das gratificações reais ou vicárias que os indivíduos obtêm de sua rendição à massa. Observe-se que Hitler mostrou possuir boa noção da fonte libidinal desse processo de formação das massa, quando atribuiu traços especificamente femininos e passivos aos participantes de suas manifestações, indicando assim o papel do homossexualismo inconsciente na psicologia de massa (6). A conseqüência mais importante dessa introdução da libido na psicologia de grupo feita por Freud é que os aspectos geralmente atribuídos às massas perdem seu caráter enganosamente primitivo e irredutível, refletido nos conceitos um tanto arbitrários de instinto de massa ou rebanho. Os últimos são muito mais efeitos do que causas. Segundo Freud o que é peculiar às massas não é tanto uma nova qualidade quanto a manifestação aberta das velhas. “Do nosso ponto de vista não é preciso atribuir muita importância ao aparecimento de novas características. Para nós bastaria dizer que, em meio a um grupo, o indivíduo é submetido a condições que lhe permitem desembaraçar das repressões impostas aos seus instintos inconscientes” (7). O entendimento não somente dispensa hipóteses auxiliares ad hoccomo faz justiça ao simples fato de que aqueles que se perdem nas massas não são homens primitivos mas, antes, homens que demonstram atitudes primitivas, opostas a seu comportamento racional normal. Entretanto as descrições mais triviais não deixam dúvida sobre a afinidade de certas peculiaridades das massas com os traços arcaicos. Especialmente deveria ser feita aqui menção à sua possibilidade de rapidamente converter a violência emocional em ações violentas, sublinhada por todos os autores que escreveram sobre psicologia de massa. Trata-se de um fenômeno que, segundo os escritos freudianos sobre a cultura primitiva, permite fazer a hipótese de que, nas hordas primitivas, o assassinato do pai não é imaginário mas algo que corresponde à realidade pré-histórica. Em termos de teoria dinâmica, o ressurgimento desses traços deve ser entendido como resultado de um conflito: esse conceito ajuda a explicar algumas manifestações da mentalidade fascista que seria muito difícil de entender, sem a postulação de um antagonismo entre as várias forças psicológicas. Nesse sentido, deve-se pensar acima de tudo na categoria psicológica da destrutividade, que Freud tratou em seu O Mal-estar na Civilização. Enquanto rebelião contra a civilização, o fascismo não é simples recorrência do arcaico, mas sua reprodução dentro e através da civilização. Não é adequado definir as forças da rebelião fascista apenas como uma ruptura da ordem social existente pelas poderosas energias do id. Acontece antes que essa rebelião toma emprestado parte de suas energias de outras agências psicológicas, forçadas a se colocar a serviço do inconsciente.
Levando em conta que o vínculo libidinal entre os membros das massas evidentemente não é de natureza sexual irrestrita, o problema que surge é saber como os mecanismos psicológicos transformam a energia sexual primária nos sentimentos que mantêm essas massas juntas. Freud lida com o problema analisando os fenômenos cobertos pelo termo sugestão e sugestionabilidade. Ele entende a sugestão como o “abrigo” ou “véu” que esconde as “relações amorosas”, pois é essencial que a “relação amorosa” que se esconde atrás da sugestão permaneça inconsciente (8 p. bras. 84-85). Freud reitera o fato de que em grupos organizados, como o exercito e as igrejas, ou não se faz menção a qualquer tipo de amor entre os membros, ou se a expressa de uma maneira indireta e sublimada, através da mediação, por exemplo, de alguma imagem religiosa, por cujo amor os membros do grupo se unem e de onde emana um amor totalmente abrangente que deve servir de modelo às suas formas de relacionamento. Parece significativo que na sociedade atual, com suas massas fascistas integradas artificialmente, a referência ao amor esteja quase totalmente excluída (9). Hitler não quis fazer o papel tradicional de pai amoroso, substituindo-o inteiramente pelo papel negativo de autoridade ameaçadora. O conceito de amor, mencionado quase sempre como “fanático”, foi restringido à noção abstrata de Alemanha. Dessa forma, porém, até o conceito de amor passou a ter um tom de hostilidade e agressividade contra aqueles não incluídos naquela noção. É um dos princípio básicos da liderança fascista manter a energia libidinal em um nível inconsciente, de modo que se possa desviar suas manifestações para o caminho da consecução de objetivos políticos. Quanto menos idéias objetivas, como a de salvação religiosa, jogam um papel na formação das massas, e mais o único fim presente se torna sua manipulação, mais inteiramente o amor espontâneo tem de ser reprimido e convertido em obediência. Existe muito pouca coisa passível de ser amada no conteúdo da ideologia fascista.
O padrão libidinal do fascismo assim como todas as técnicas usadas por seus demagogos são autoritárias: aí as técnicas do demagogo e do hipnotizador coincidem com o mecanismo psicológico pelo qual os indivíduos são levados a regredir e, assim, a se reduzir a meros membros do grupo.
“Pelas medidas que toma, o hipnotizador desperta no sujeito uma parte de sua herança arcaica que também o tornara submisso aos genitores e experimentara uma reanimação individual em sua relação com o pai; o que é assim despertado é a idéia de uma personalidade predominante e perigosa, para com quem só é possível ter uma atitude passivo-masoquista, a quem se tem de entregar a própria vontade, ao passo que estar com ele, olhá-lo no rosto, parece ser um empreendimento arriscado. Só de uma outra maneira semelhante podemos representar a relação do membro individual da horda primeva com o pai primevo. .. As características misteriosas e coercitivas das formações grupais, presentes nos fenômenos de sugestão que as acompanham, podem assim, com justiça, ser remontadas ‘a sua origem na horda primeva. O líder do grupo ainda é o temido pai primevo; o grupo ainda deseja ser governado pela força irrestrita e possui uma paixão extrema pela autoridade; na expressão de Le Bom, tem sede de obediência. O pai primevo é o ideal do grupo, que dirige o ego no lugar do ideal do ego. A hipnose bem pode reivindicar sua descrição como um grupo de dois. Aqui fica como definição para a sugestão: uma convicção que não está baseada na percepção e no raciocínio, mas em um vínculo erótico” (10)
Realmente é isso pois que define a natureza e conteúdo da propaganda fascista. Ela é psicológica por causa dos objetivos autoritários irracionais, que não podem ser alcançados por meio de convicções racionais mas só através do habilidoso despertar de “uma parcela da herança arcaica do sujeito”. A agitação fascista está centrada na idéia do líder, não importando se ele realmente lidera ou não passa do delegado de grupos de interesse, porque, psicologicamente, somente a imagem do líder está apta a reanimar a idéia de pai primitivo, ameaçador e todo-poderoso. É esta a raiz última do de outro modo enigmático personalismo da propaganda fascista, de seu incessante despejar de nomes e pretensos grandes homens, que ocupa o lugar da discussão das causas objetivas aqui envolvidas. A formação imaginária de uma figura paterna onipotente e violenta, altamente capaz de transcender o pai real e, com isso, crescer até se tornar um ego coletivo (“group ego“) é a única maneira de promulgar “a atitude passivo-masoquista … a que a vontade tem de se render”, uma atitude exigida do seguidor do fascismo à medida em que seu comportamento político é inconciliável com seus próprios interesse racionais como pessoa privada tanto quanto do grupo ou classe a que ele de fato pertence (11). O redespertar da irracionalidade do seguidor é, portanto, totalmente racional, do ponto de vista da liderança: trata-se de algo que necessariamente tem de surgir como “uma convicção que não se baseia na percepção e raciocínio mas, antes, na vida erótica”.
O mecanismo que transforma a libido em vínculo entre o líder e seus seguidores, e entre os seguidores eles mesmos, é o da identificação. Grande parte do livro de Freud se dedica à sua análise (12). É impossível discutir aqui a diferenciações teóricas muito sutis, particularmente a existente entre identificação e introjeção. Deveria ser notado , porém, que o finado Ernst Simmel, a quem devemos uma valiosa contribuição à psicologia do fascismo, desenvolveu a concepção freudiana relativa à natureza ambivalente da identificação como um derivativo da fase oral de organização da libido (13), expandindo-a até o ponto de integrá-la em uma teoria analítica do anti-semitismo.
Contentamo-nos com umas poucas observações sobre a relevância da doutrina da identificação para o entendimento da propaganda e a mentalidade fascistas. Tem sido notado por vários autores e por Erik Erikson em particular que o típico líder fascista não parece ser uma figura paternal, como por exemplo o eram os reis em tempos passados. Porém é apenas superficial a inconsistência dessa observação com a teoria freudiana do líder como espécie de pai primitivo. A discussão que nela se encontra sobre a identificação pode nos ajudar muito a entender o que realmente se deve às condições históricas objetivas [no fascismo]. Identificação é “a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa. Ela desempenha um papel na história primitiva do complexo de Édipo” (14). Bem pode ser que esse componente pré-edípico da identificação ajude a produzir a separação da imagem do líder como pai primitivo todo-poderosos da imagem do pai realmente existente. Considerando que a resposta ao complexo de Édipo através da identificação da criança com o pai é um fenômeno secundário, pode ocorrer que a regressão infantil vá bem mais além dessa imagem paterna e, através de um processo “anaclítico” (“anaclitic“), chegue a uma fase ainda mais arcaica. Além disso, o caráter narcisista e primitivo da identificação existente no ato de devorar, de fazer do objeto amado uma parte de si mesmo, pode nos servir de indícío do fato de que, freqüentemente, a imagem do líder moderno assume a aparência de uma ampliação da própria personalidade do sujeito, assume a forma de uma projeção coletiva de si mesmo, mais do que a imagem do pai. Talvez o papel que essa última joga nas fases finais da infância tenha declinado na sociedade contemporânea (15). [Seja como for] Todas essas facetas pedem esclarecimentos adicionais.
O papel essencial do narcisismo em relação às identificações que estão em jogo na formação dos grupos fascistas é reconhecida na teoria freudiana da idealização. “Vemos agora que o objeto está sendo tratado da mesma maneira que nosso próprio ego, de modo que, quando estamos amando, uma quantidade considerável de libido narcisista transborda para o objeto. Em muitas formas de escolha amorosa, é fato evidente que o objeto serve de sucedâneo para algum ideal do ego inatingível de nós mesmos. Nós amamos por causa da perfeição que nos esforçamos por conseguir para nosso próprio ego e a que agora gostaríamos de adquirir, dessa maneira indireta, a fim de satisfazer nosso narcisismo” (16). É precisamente essa idealização de si mesmo que o chefe fascista tenta promover em seus seguidores, no que é ajudado pela ideologia do Füherer. As pessoas com que ele em geral têm de lidar vivenciam um conflito moderno característico; isto é, o conflito o ego, essa agência de autopreservação fortemente desenvolvida em sentido racional (17), e o constante fracasso em satisfazer suas demandas. O resultado desse conflito é o fortalecimento dos impulsos narcisistas, que só pode ser absorvido e satisfeito através da transferência parcial da libido narcisística para o objeto, ou seja, através da idealização. Observe-se que isso de resto se ajusta à tendência da imagem do líder se parecer com a de uma ampliação do sujeito: fazendo do líder seu ideal, é como se ele amasse a si mesmo, mas livre das manchas da frustração e de descontentamento que estragam o retrato de seu eu empírico. Caricaturas da verdadeira solidariedade consciente, padrões de identificação fundados na idealização, como o é este, todavia são coletivos. Funcionam em um vasto número de pessoas, na medida em que elas são portadoras das mesmas inclinações libidinais e disposições caracteriológicas. A comunidade popular fascista corresponde de fato exatamente àquela definição freudiana do grupo como ” um número de indivíduos que substituíram um único e mesmo objeto pelo seu ego ideal e por causa disso conseguiram identificar seu ego com o de outros” (18). Por sua vez, é desse poderio coletivo que a imagem do líder parece tomar emprestado sua onipotência, muito semelhante a do pai primitivo.
A construção psicológica da imagem do líder feita pelo freudismo é corroborada ao percebermos sua surpreendente coincidência com o protótipo do líder fascista, ao menos até onde sua formatação pública está envolvida. Suas descrições comportam o retrato de Hitler não menos do que a das idealizações através das quais os demagogos americanos procuram estilizar a si mesmos. Visando a permitir a identificação narcisistica, o líder tem de parecer que é totalmente narcisista. Freud deriva deste discernimento o retrato do “pai primitivo da horda”, que bem poderia ser o de Hitler.
“Ele, no próprio início da história da humanidade, era o super-homem (19) que Nietzsche somente esperava do futuro. Ainda hoje os membros de um grupo permanecem na necessidade da ilusão de serem igual e justamente amados por seu líder; ele próprio, porém, na necessita amar ninguém mais, por ser de uma natureza dominadora, absolutamente narcisista, autoconfiante e independente. Sabemos que o amor impõe um freio ao narcisismo, e seria possível demonstrar como, agindo dessa maneira, ele se tornou um fator de civilização.”(20)
Desse modo pode-se dar conta de um dos aspectos mais conspícuos das falas do agitador, ou seja, a ausência de um programa positivo e de qualquer coisa que ele possam “dar” mas, também, da paradoxal prevalência da negação e da ameaça que nele se encontra. O líder só pode ser amado se ele mesmo não ama. Apesar disso Freud está atento para um outro aspecto da imagem do líder, que, aparentemente, contradiz dessa primeira. Embora apareça como um super-homem, o líder também precisa fazer o milagre de parecer uma pessoa comum, fazer como Hitler, que posava como um misto de barbeiro suburbano e King Kong. Também isso Freud explica com sua teoria do narcisismo. De acordo com ele:
“o indivíduo abandona seu ideal do ego e o substitui pelo ideal do ego, tal como é corporificado no líder. E temos de acrescentar, a título de correção, que o prodígio não é igualmente grande em todos os casos. [Todavia] em muitos indivíduos, a separação entre o ego e o ideal do ego não se acha muito avançada e os dois ainda coincidem facilmente; o ego amiúde preservou sua primitiva autoconsciência narcisista. A seleção do líder é muitíssimo facilitado por essa circunstância. Com freqüência precisa apenas possuir as qualidades típicas dos indivíduos interessados sob uma forma pura, clara e particularmente acentuada, necessitando somente fornecer uma impressão de maior força e de mais liberdade da libido. Nesse caso, a necessidade de um chefe forte freqüentemente o encontrará a meio caminho, e o investirá de uma predominância que de outro modo talvez não pudesse reivindicar. Os outros membros do grupo, cujo ideal do ego, salvo isso, não se haveria corporificado em sua pessoa sem alguma correção, são então arrastados com os demais por sugestão, isto é, por meio da identificação. (21)
Inclusive os assustadores sintomas de inferioridade presentes nos líderes fascistas, sua semelhança com os atores amadores e psicopatas sociais, é pois antecipada na teoria de Freud. O super-homem precisa lembrar o seguidor e aparecer como sua “ampliação”, por causa daquelas parcelas da libido narcisista do seguidor que, continuando ligadas ao seu ego, não são projetadas na imagem do líder. Em conformidade com isso, acontece que um dos expedientes básicos da propaganda personalizada fascista é o conceito de “pequeno grande homem”, da pessoa que sugere ao mesmo tempo onipotência e a idéia de que ele é apenas mais um na multidão, um americano simples e de sangue vermelho, imaculado pela riqueza material ou espiritual. Assim, porém, a ambivalência psicológica ajuda a fazer o milagre social. A imagem do líder gratifica o duplo desejo do seguidor em se submeter à autoridade e ser ele mesmo essa autoridade. De resto isso se encaixa bem em um mundo no qual ainda existe controle irracional, apesar dele não ter mais convicção interior, perdida graças ao esclarecimento universal. As pessoas que obedecem aos ditadores sentem que eles são supérfluos, resolvendo essa contradição assumindo que são elas mesmas os cruéis opressores.
Todos os expedientes-padrão dos agitadores fascistas são desenhados em sintonia com a exposição freudiana do que mais tarde se tornou a estrutura básica de sua demagogia, a técnica da personalização (22) e a idéia do pequeno grande homem. Vamos nos limitar no que segue a uns poucos exemplos, tomados ao acaso.
Freud nos dá um relato exaustivo do elemento hierárquico envolvido nos grupos irracionais. “é óbvio que um soldado toma o seu superior, que é, na realidade, o líder do exército, como seu ideal, enquanto se identifica com os seus iguais e deriva dessa comunidade de seus egos as obrigações de prestar ajuda mútua e partilhar das pessoas que o companheirismo implica. Mas, se tenta identificar-se com o general, torna-se ridículo” (23) , isto é, de modo direto e consciente. Os fascistas, sem exceção dos demagogos mais insignificantes, estão sempre enfatizando as cerimônias rituais e diferenciações hierárquicas. Quanto menos a hierarquia é assegurada no cenário de uma sociedade altamente racionalizada e quantificada, mais hierarquias artificiais desprovidas de uma razão de ser objetiva são construídas e rigidamente impostas pelos fascistas por razões puramente psicotécnicas. Devemos acrescentar porém que essa não é a única fonte libidinal presente. As estruturas hierárquicas estão em sintonia com os desejos do caráter sado-masoquista. Verantwortung nach oben,, Autorität nach unten (responsabilidade para com que está em cima, autoridade para com o que está embaixo): essa famosa fórmula hitleriana racionaliza muito bem essa ambivalência de caráter (24)
A tendência a esmagar os que estão por baixo, que tão desastrosamente se manifestou na perseguição das minorias fracas e desassistidas, é tão franca como ódio dirigido àqueles que estão de fora [da estrutura]. Na prática, porém, o mais comum é ambas as tendências atuarem juntas. A teoria freudiana lança luz sobre a distinção rígida e profunda existente entre os que são amados dentro do grupo e os que, por estarem fora, são rejeitados. Em nossa cultura, este modo de pensar e se conduzir passou a ser visto como evidente em tal grau que a questão de saber por que as pessoas amam os que se lhes assemelham e odeiam o que é diferente raramente é posta com seriedade. Aqui como em muitas outras vezes, a produtividade do enfoque freudiano repousa em sua capacidade de questionar o que é geralmente aceito. Le Bon havia percebido que a multidão irracional “vai direto aos extremos” (25). Freud expandiu essa observação, assinalando que a dicotomia entre dentro e fora do grupo possui uma natureza tão enraizada que afeta até mesmo os círculos cujas “idéias” aparentemente excluem tais tipos de reação. Em 1921, ele estava apto a se desvencilhar da ilusão liberal de que o progresso da civilização automaticamente nos traria um aumento da tolerância e um afrouxamento da violência contra os círculos externos.
“Mesmo durante o reino de cristo, aqueles que não pertencem à comunidade de crentes, que não o amam e a quem ele não ama, permanecem fora de tal laço. Desse modo, uma religião, mas que se chame a si mesma de religião do amor, tem de ser dura e inclemente para com aqueles que a ela não pertencem. Fundamentalmente, na verdade, toda religião, é, dessa mesma maneira, uma religião do amor para todos aqueles a quem abrange, ao passo que a crueldade e a intolerância para com os que não lhes pertencem, são naturais a todas as religiões. Por mais difícil que possamos achá-lo pessoalmente, não devemos censurar os crentes severamente demais por causa disso; as pessoas que são descrentes ou indiferentes estão psicologicamente em situação muito melhor nessa questão [da crueldade e da intolerância]. Se hoje a intolerância não mais se apresenta tão violenta e cruel como em séculos anteriores, dificilmente podemos concluir que ocorreu uma suavização nos costumes humanos. A causa deve ser antes achada no inegável enfraquecimento dos sentimentos religiosos e dos laços libidinais que deles dependem. Se outro laço grupal tomar o lugar do religiosa – e o socialista perece estar obtendo sucesso em conseguir isso -, haverá então a mesma intolerância para com os profanos que ocorreu na época das Guerras de Religião”(26)
O equívoco do prognóstico político freudiano, a culpa que pôs nos “socialistas” pelo que em realidade seus arqui-inimigos alemães fizeram, é tão surpreendente quanto sua profecia da destrutividade fascista, do impulso para eliminar o grupo externo (27). Na realidade, a neutralização da religião parece ter levado ao exato oposto do que o iluminismo do pensador supunha: a divisão entre os crentes e os não crentes foi mantida e reificada. A partilha se tornou uma estrutura em si mesma, independente de qualquer conteúdo ideacional e que, embora tenha perdido sua motivação interna, é defendida ainda mais firmemente. Pior ainda, aconteceu ao mesmo tempo que o impacto atenuante da doutrina religiosa do amor desvaneceu. A essência do expediente “ovelha e cabra” (“sheep and goat“) empregado por todos os demagogos fascistas reside aí. Como eles não reconhecem qualquer critério espiritual em relação ao que é escolhido e ao que é rejeitado, o substituem por um critério pseudo-natural, como o de raça (28), que, por parecer inescapável, pode ser aplicado com uma piedade ainda menor do que o foi conceito de heresia na Idade Média. Freud teve êxito em identificar a função libidinal desse expediente, notando que ele age como uma força integradora negativa. Considerando que a libido positiva é totalmente investida na figura do pai primitivo, o líder; e que são poucos os conteúdos positivos disponíveis, é preciso descobrir uma negativa. “O líder ou a idéia dominante poderiam também, por assim dizer, ser negativos; o ódio contra uma determinada pessoa ou instituição poderia funcionar exatamente da mesma maneira unificadora e evocar o mesmo tipo de laços emocionais que a ligação positiva” (29). Parece desnecessário dizer que essa integração negativa se alimenta do instinto de destrutividade, uma figura que o pensador não refere explicitamente em Psicologia de massa, mas cujo papel decisivo ele todavia reconheceu em O Mal-estar na civilização. No presente contexto, Freud explica a hostilidade contra o grupo externo com o conceito de narcisismo:
“Nas antipatias e aversões indisfarçadas que as pessoas sentem por estranhos com quem têm de tratar, podemos identificar a expressão do amor a si mesmo, do narcisismo. Esse amor a si mesmo trabalha para a preservação do indivíduo e comporta-se como se a ocorrência de qualquer divergência de suas próprias linhas específicas de desenvolvimento envolvesse sua crítica e a exigência de sua alteração” (30)
A vantagem ou ganho narcísico fornecido pela propaganda fascista é óbvia, ao sugerir de maneira contínua e às vezes de modo tortuoso que, apenas por pertencer ao grupo, o seguidor é mais puro, melhor e superior do que aqueles que estão de fora. Além disso, acontece assim que qualquer espécie de crítica ou tomada de consciência acaba sendo sentida como uma perda e, como tal, algo que desperta raiva. A propósito, é isso que dá conta da violenta reação dos fascistas contra o que eles julgam zersetzend, aquilo que desmascara os valores que eles obstinadamente sustentam mas, também, da sua hostilidade, típica das pessoas preconceituosas, contra qualquer tipo de introspecção.
Concomitantemente, a concentração da hostilidade sobre o círculo externo carrega consigo a intolerância interna que poderia tornar altamente ambivalente os relacionamentos dentro do próprio grupo.
“Mas, quando um grupo se forma, a totalidade dessa intolerância se desvanece, temporária ou permanentemente, dentro do grupo. Enquanto uma formação de grupo persiste ou até onde ela se estende, os indivíduos do grupo comportam-se como se fossem uniformes, toleram as peculiaridades de seus outros membros, igualam-se a eles e não sentem aversão por eles. Uma tal limitação do narcisismo, de acordo com nossas conceituações teóricas, só pode ser produzida por um determinado fator, um laço libidinal com outras pessoas” (31)
Os agitadores seguem essa linha ao usar o conhecido “truque da unidade”. Eles salientam suas diferenças em relação aos de fora e as minimizam dentro de seu próprio grupo, tendendo a nivelar suas qualidades distintivas, com a exceção daquelas hierárquicas. “Estamos todos no mesmo barco”; “ninguém deve ser melhor”: o esnobe, o intelectual, o hedonista sempre são atacados. A corrente subterrânea do igualitarismo malévolo, da fraternidade do comprometidos com todo o tipo de humilhação, é um componente da propaganda fascista e do próprio fascismo. O Eintopfgericht, o famoso comando de Hiltler, é seu símbolo. Quanto menos os fascistas querem mudar a estrutura social que lhes é inerente, mais eles tagarelam sobre a justiça social, querendo dizer com isso que nenhum membro da “comunidade popular” deve se entregar aos prazeres individuais. Ao invés de, suprimindo a repressão, realizar a verdadeira igualdade, o igualitarismo repressivo faz parte da mentalidade fascista e, como tal, ele se reflete no expediente do “se vocês soubessem”, que, sob forma vingativa, promete a revelação de todos os tipos de prazeres proibidos que os outros desfrutam. Freud interpreta psicologicamente esse fenômeno como caso de transformação dos indivíduos em membros de uma “horda fraternal”, cuja coerência se encontra em sua condição de formação reativa à inveja primária de seus integrantes, desse modo posta a serviço da coerência do agrupamento.
“O que posteriormente apareceu na sociedade sob a forma de Gemeingeist, esprit de corps, ‘espírito de grupo’, etc. não desmente a sua derivação do que foi originalmente inveja. Ninguém deve querer salientar-se, todos devem ser o mesmo e Ter o mesmo. A justiça social significa que nos negamos muitas coisas a fim de que os outros tenham de passar sem elas, também, ou, o que dá no mesmo, não possam pedi-las.” (32)
Poderia ser acrescentado que, surpreendentemente, a ambivalência para com o irmão encontrou uma expressão permanente na técnica dos agitadores. Freud e Rank observaram que, nos contos de fada, os animais inferiores, formigas e abelhas, por exemplo, “seriam os irmãos da horda primeva, da mesma maneira que no simbolismo onírico animais nocivos significam irmãos e irmãs (considerados desprezivelmente como bebês” (33). Como os membros do círculo interno supostamente são bem sucedidos em se identificar uns com os outros por meio do amor a um mesmo objeto”(34), não se pode admitir que alguém seja desdenhado. O resultado é a expressão do menosprezo sob a forma da catexe totalmente negativa dos animais inferiores, sua fusão com o ódio e posterior projeção conjunta contra o grupo externo. Examinado com grande detalhe por Leo Lowehthal (35) esse ato de comparar os círculos externos, os estrangeiros e, particularmente, os refugiados e judeus com os vermes e animais inferiores é um dos expedientes favoritos dos agitadores fascistas.
Na hipótese de possuirmos os títulos para assumir a existência de uma correspondência entre os estímulos da propaganda fascista com os mecanismos elaborados pela psicologia de massas de Freud, precisamos agora fazer nós mesmos a pergunta quase inevitável sobre como os agitadores fascistas, toscos e semi-educados como o são, obtêm conhecimento desses mecanismos. Referências à influência exercida por Mein Kampf sobre os demagogos americanos não levariam muito longe, já que parece impossível que o conhecimento teórico da psicologia de grupo hitlerista tenha ido além das observações absolutamente triviais que se originaram de Le Bon. Também não pode ser sustentado que Goebbels foi um gênio da propaganda e tinha total noção das descobertas mais avançadas da moderna psicologia profunda. O exame cuidadoso de suas falas e dos extratos recém-publicados de seus diários dão a impressão de que se trata de uma pessoa esperta o bastante para fazer o jogo do poder político, mas totalmente ingênua e superficial com relação às questões sociais e psicológicas subjacentes à superfície de seus próprios lemas e editoriais jornalísticos. A idéia de que Goebbels foi um intelectual “radical” e sofisticado faz parte da lenda demoníaca que se associou a seu nome e acabou alimentada pelo avidez jornalística. Noutra ocasião seria o caso de explicar essa lenda psicanaliticamente. Goebbels pensava através de estereótipos e vivia totalmente ofuscado pelo feitiço da personalização. Destarte precisamos buscar outras fontes que não as da erudição para entender o propagandeado domínio das técnicas psicológicas de manipulação de massa por parte do fascismo. A primeira e mais importante fonte parece ser a já mencionada identidade básica entre líder e seguidor, que circunscreve um dos principais aspectos da identificação. O líder pode adivinhar as necessidades e desejos psicológicos daqueles suscetíveis a sua propaganda porque se assemelha a eles psicologicamente. A distinção entre eles reside mais na capacidade de o primeiro expressar sem inibições o que neles está latente do que em algum tipo de superioridade intrínseca. Os chefes fascistas são em geral tipos orais, com uma compulsão a falar sem parar e a ludibriar os outros. O famoso fascínio que eles exercem sobre seus seguidores depende em muito de sua oralidade. Destarte a linguagem mesma, desprovida de seu significado racional, funciona de uma maneira mágica, favorecendo as regressões arcaicas que reduzem os indivíduos a membros da multidão. Como essa desinibição oratória é sobretudo associativa, pressupõe um relaxamento temporário dos controles do ego, o que pode indicar mais fraqueza do que força. O elogio da força feito pelo agitador fascista é muitas vezes acompanhado de sinais dessa fraqueza, particularmente quando suplica por contribuições financeiras, ainda que, como fraqueza, seja habilmente ligada a idéia de força. Objetivando bem sintonizar com as disposições inconscientes de sua audiência, o agitador por assim dizer vira para fora seu inconsciente. A peculiar síndrome de caráter existente nele torna isso perfeitamente possível, e a experiência lhe ensinou a explorar essa faculdade de maneira consciente. A experiência ensinou-lhe a fazer uso racional de sua irracionalidade, de modo similar a dos atores ou de certos tipos de jornalistas, que sabem como vender suas inervações e sensibilidade. Embora sem saber ele, está apto a falar e agir de acordo com a teoria psicológica, pela simples razão de que a teoria psicológica é verdadeira. Tudo o que ele tem de fazer para acionar a psicologia de sua audiência é explorar astuciosamente a sua.
O ajustamento dos expedientes dos agitadores ao fundamento psicológico de seus objetivos [políticos] é reforçada ainda mais por um outro fator. Como se sabe, a agitação fascista acabou se tornando quase uma profissão, um meio de subsistência. Possui fartura de tempo para testar a eficiência de seus vários apelos. Devido ao que se pode chamar de seleção natural, somente os mais atraentes têm sobrevivido, na medida em que sua eficiência é em si mesma uma função da psicologia dos consumidores. Através de um processo de “congelamento”, que pode ser observado em todas as técnicas empregadas pela cultura de massa moderna, os apelos que sobrevivem à referida seleção são padronizados, da mesma forma que os slogans publicitários que provaram ser os mais valiosos o são na promoção dos negócios. Trata-se de uma padronização que por sua vez se ajusta à maneira de pensar estereotipada; isto é, com a “estereopatia” daqueles que, marcados pelo desejo infantil de repetição inalterada e sem fim, são suscetíveis a essa propaganda. É difícil predizer se essa tendência psicológica impedirá os expedientes padrão dos agitadores de se tornaram ineficazes, devido ao excesso de aplicação. Na Alemanha nazista, todo o mundo costumava fazer piada de certas frases propagandisticas, como “sangue e solo” (Blut und Boden), humoristicamente chamada de Blubo (o conceito da raça nórdica do qual o verbo aufnorden [“nortear”] foi derivado). Apesar disso parece que esse apelos não perderam seu atrativo. Ao contrário, sua “falsidade” pode ter sido saboreada cínica e sadicamente como um indicador do fato de que era apenas o poder, desvencilhado de toda objetividade racional, que decidia os destinos no Terceiro Reich.
Adicionalmente poder-se-ia perguntar: por que a psicologia aplicada de grupo discutida aqui é mais peculiar ao fascismo do que à maioria de outros movimentos que buscam apoios de massa ? Qualquer comparação da propaganda fascista com a dos partidos liberais e progressistas mostrará que é assim. Porém nem Freud nem Le Bon se ocuparam com essa distinção. Eles falaram das multidões como tais, de modo muito semelhante à sociologia formal, sem diferenciar entre os objetivos políticos dos grupos envolvidos. De fato, ambos pensavam nos movimentos socialistas tradicionais, antes do que em seu oposto, embora deva ser notado que o exército e a Igreja, escolhidos por Freud para servir de exemplo de sua teoria, são essencialmente conservadores e hierarquizados. Já Le Bon está interessado principalmente nas multidões espontâneas, efêmeras e não-organizadas. A pergunta levantada aqui só pode ser respondida totalmente pois com uma teoria da sociedade. Contentamo-nos em fazer umas poucas sugestões. Primeiro, as metas objetivas do fascismo são amplamente irracionais, na medida em que elas contradizem os interesses materiais de um grande número das pessoas que tenta alistar, não obstante o crescimento acelerado econômico pré-guerra ocorrido nos primeiros anos do regimes hitlerista. A permanente ameaça de guerra que representa o fascismo irradia uma destrutividade que as massas, ao menos pré-conscientemente percebem. Por isso, o fascismo não mente totalmente ao se referir a seus poderes irracionais, por mais falsa que possa ser a mitologia com que racionalize o irracional. Como não seria possível ao fascismo conquistar as massas através de argumentos racionais, sua propaganda tem de necessariamente se desviar do pensamento discursivo: ela precisa ser orientada psicologicamente e mobilizar os processos regressivos irracionais e inconscientes. Tal tarefa é facilitada pelo quadro mental daqueles estratos da população que sofrem com frustrações sem sentido e, por essa via, terminam desenvolvendo uma mentalidade atrofiada e irracional. Talvez o segredo da propaganda fascista seja simplesmente que ela trata os homens pelo o que eles são: verdadeiros filhos da cultura de massa padronizada, amplamente privados de autonomia e espontaneidade, ao invés de propor metas cuja realização poderia transcender o status quo psicológico não menos do que o da sociedade. A propaganda só tem de reproduzir a mentalidade existente para seus próprios propósitos; não precisa induzir à mudança. A repetição compulsiva que a caracteriza forma uma só coisa com a necessidade fixa dessa reprodução. Ela repousa inteiramente na estrutura de conjunto tanto quanto em cada traço particular do caráter autoritário engendrado pela internalização dos aspectos irracionais da sociedade moderna. Dentro das condições dominantes, a irracionalidade da propaganda fascista possui um sentido racional relativamente à economia instintiva. Tendo em vista que o status quo é aceito como algo dado e petrificado, o esforço para ver através dele é muito maior do que o necessário para a ele se ajustar e, via identificação com o existente, obter um mínimo de gratificação psicológica: é esse o ponto focal da propaganda fascista. De resto isso pode explicar porque os movimentos de massa ultra-reacionários usam a “psicologia de massa” em muito maior extensão do que os movimentos que mostram mais fé nas massas. Entretanto, não resta dúvida de que mesmo os movimento políticos mais progressistas podem cair ao nível da “psicologia das multidões” e de sua manipulação, se, com sua eventual conversão em poder cego, for frustado seu conteúdo racional.
A chamada psicologia do fascismo é em sua maior parte produto de manipulação: o que é visto ingenuamente como irracionalidade “natural” das massas é produzido por técnicas calculadas racionalmente. Esse discernimento pode nos ajudar a resolver o problema de saber se o fenômeno de massa que é o fascismo pode ser totalmente explicado em bases psicológicas. Embora seja certo que há uma suscetibilidade potencial ao fascismo entre as massas, é igualmente certo que a manipulação do inconsciente, a espécie de sugestão explicada geneticamente por Freud, é indispensável para a efetivação desse potencial. Justamente essa manipulação corrobora a hipótese de que os fascismo como tal não é um problema psicológico, e que qualquer tentativa de entender suas raízes e seu papel histórico em termo psicológicos não vai além daquelas ideologias a respeito das “forças irracionais” que o próprio fascismo promove. Embora o agitador fascista sem dúvida se aproprie de certas tendências existentes dentro daqueles a quem ele se dirige, fá-lo como delegado dos poderosos interesses políticos e econômicos. As predisposições psicológicas não são a causa real do fascismo; acontece antes de o fascismo definir uma área psicológica que pode ser explorada com sucesso pelas forças que o promovem por razões de interesse próprio totalmente não-psicológicas. O que acontece quando as massas são apanhadas pela propaganda fascista não é a expressão primária dos instintos e necessidades espontâneas mas sim a revitalização quase-científica de sua psicologia. O fundamento é a regressão artificial descrita por Freud em sua discussão dos grupos organizados. A psicologia de massas tem sido apropriada por seus líderes e transformada em seus meios de domínio. Os movimentos de massa não são sua expressão direta, nem são um fenômeno inteiramente novo, pois é algo que se encontra prenunciado em todos os movimentos contra-revolucionários da história. Longe de ser a fonte do fascismo, a psicologia acabou se tornando um entre outros elementos de um sistema altamente impositivo, cuja totalidade se faz necessária para fazer frente ao único potencial de resistência das massas: a racionalidade. O conteúdo da teoria freudiana, a substituição do narcisismo individual pela identificação com as imagens do líder, aponta na direção de o que poderia ser chamado de apropriação da psicologia de massas pelos opressores. Para ser exato, esse processo possui uma dimensão psicológica, mas como tal também sinaliza a crescente tendência no sentido da abolição da motivação psicológica de tipo liberal. Agora essa motivação é sistematicamente controlada e absorvida pelos mecanismos sociais dirigidos desde cima. Quando os líderes se tornam conscientes da psicologia de massas e a tomam em suas mãos, ela virtualmente deixa de existir, como revela a construção de seu conceito psicanalítico, já que o conceito de psicologia é essencialmente negativo para Freud. Freud define o campo da psicologia a partir da supremacia do inconsciente e postula que o id deve se tornar o ego. A emancipação humana em relação ao governo heterônomo de seu inconsciente seria, para ele, equivalente à abolição de sua “psicologia”. O fascismo promove essa abolição em sentido oposto: primeiro, perpetuando a dependência, ao invés da realização da potencial de liberdade; depois, permitindo a expropriação do inconsciente pelo controle social, ao invés de fazer os sujeitos conscientes de seu inconsciente. Embora a psicologia sempre denote uma certa escravidão individual, ela também pressupõe a liberdade, no sentido de uma certa autonomia e auto-suficiência do indivíduo. Não é por caso que o século dezenove foi a época e auge do pensamento psicológico. Numa sociedade inteiramente reificada, na qual virtualmente não há relações diretas entre os homens e na qual cada pessoa vem sendo reduzida à um átomo social, à mera função da coletividade, os processos psicológicos, embora ainda persistam em cada indivíduo, já não representam mais forças determinantes dos processos sociais. A psicologia individual perdeu o que teria sido chamado de substância por Hegel. Embora Freud tenha se restringido ao campo da psicologia individual e sabiamente se omitido de introduzir fatores sociológicos externos, o principal mérito de seu livro talvez seja o ter alcançado o ponto de mutação da psicologia. O “empobrecimento” psicológico do sujeito que se “rendeu ao objeto” e assim tornou esse último seu “mais importante constituinte” (36), isto é, o super-ego, antecipa com quase clarividência os átomos sociais pós-psicológicos e desindividualizados que formam as coletividades fascistas. Nestes átomos sociais, a dinâmica psicológica da formação do grupo se estende além da conta e já não tem mais efetividade. “Fingimento” [“phoniness“] é uma categoria que se aplica aos líderes tanto quanto ao frenesi, à histeria e aos atos de identificação das massas. As pessoas não crêem inteiramente em seu líder, assim como, no fundo do coração, crêem muito pouco que os judeus sejam o diabo: elas representam sua identificação com ele, ao invés de realmente se identificarem; encenam seu próprio entusiasmo, de modo a participar da performance de seu líder. É através dessa performance que conseguem estabelecer um equilíbrio entre suas necessidades instintivas, permanentemente mobilizadas, e o estágio histórico de esclarecimento que eles alcançaram e que não pode ser revogado arbitrariamente. Provavelmente é a suspeita do caráter ficcional de sua “psicologia de grupo” que torna as multidões fascistas tão implacáveis e difíceis de serem abordadas. Se elas parassem para pensar por um segundo, o conjunto da performance se partiria em pedaços e elas poderiam entrar em pânico. Freud chegou até esse elemento de elemento de “fingimento” em um contexto inesperado; a saber, quando discutiu a hipnose como uma forma de regressão individual à relação entre a horda e o pai primitivos.
“Como sabemos de outras reações, os indivíduos preservaram um grau variável de aptidão pessoal para reviver velhas situações desse tipo. Um certo conhecimento de que, apesar de tudo, a hipnose é apenas um jogo, uma renovação enganadora dessas antigas impressões, pode contudo remanescer e cuidar para que haja uma resistência contra quaisquer conseqüências demasiado sérias da suspensão da vontade na hipnose”(37)
Neste meio tempo, ocorreu porém que esse jogo foi socializado, e as conseqüências provaram ser muito sérias. Freud fez uma distinção entre hipnose e psicologia de grupo, definindo a primeira como algo que tem lugar entre apenas duas pessoas. A apropriação da psicologia de massa por seus líderes, a formatação de sua técnica, permitiu-lhes coletivizar o feitiço hipnótico. “Acorda Alemanha”, o grito de guerra nazista, esconde o seu oposto. Em compensação, porém, a coletivização e institucionalização do feitiço foram tornando a transferência cada vez mais indireta e precária, a ponto de atualmente o caráter de performance, de “fingimento” da identificação entusiástica [com os chefes] e de toda a dinâmica tradicional da psicologia ter aumentado enormemente. Esse aumento pode bem terminar na súbita percepção da inverdade desse feitiço, senão no seu colapso. A hipnose socializada fomenta as forças com que se vai liquidar o fantasma da regressão por controle remoto e, por fim, despertar aqueles que conservam seus olhos fechados embora não mais estejam dormindo.
Notas
(1) Nova York : Harper Brothers, 1949. Confira também Leo Lowenthal e Norbert Guterman, “Portrait of the American Agitador” Public Opinion Quarterly, (outono), a partir da p. 417.
(2) A afirmação requer alguma qualificação. Existe uma certa diferença entre aqueles que, especulando certo ou errado com antecedentes econômicos de grande escala, tentam manter um ar de respeitabilidade e negam que são anti-semitas, até descerem ao negócio com a figura do judeu-engodo; e os nazistas abertos, que querem agir por si mesmos, ou pelo menos fazem crer que agem, entregando-se à linguagem mais violenta e obscena. Além disso, pode-se distinguir entre os agitadores que fazem o papel de conservadores cristãos familiares e antiquados e que podem ser facilmente reconhecidos pela sua hostilidade contra a “esmola”; e esses que, encenando uma versão elaborada de modo mais moderno, apelam sobretudo à juventude e, às vezes, pretendem ser revolucionários. De qualquer jeito, essas diferenças não devem ser superestimadas. A estrutura básica de suas falas assim como seu suprimento de expedientes é idêntico, a despeito das diferenças cuidadosamente alimentadas nos acentos. Estamos diante de uma divisão do trabalho mais do que de genuínas divergências. Pode ser notado que o Partido Nacional Socialista astuciosamente mantinha diferenciações de tipo similar, mas que elas jamais levaram a nada, nem a qualquer choque de idéias políticas mais sério dentro do partido. A crença de que as vítimas do 30 de junho de 1934 [“Noite das facas longas”] eram revolucionários é mitológica. O sangrento expurgo foi produto das rivalidades entre os vários bandos de saqueadores, e não teve nenhum ponto de apoio nos conflitos sociais.
(3) Massenpsychologie und Ichanalyse é o título em alemão com o qual o livro foi publicado em 1921. O tradutor da versão inglesa [na qual se baseia a tradução brasileira], James Strachey, sublinha acertadamente que o termo grupo significa aqui o mesmo que foule, para Le Bon, e o termo alemão Masse. Pode-se acrescentar que, neste livro, o termo ego não designa a agência psicológica específica que se contrapõe ao id e ao super-ego, conforme descritos nos últimos escritos de Freud. Significa simplesmente o indivíduo. Uma das mais importantes implicações da Psicologia de massa, de Freud, é o fato de que ele não reconhece uma mentalidade de massa independente e hipostasiada mas, sim, reduz o fenômeno observado e descrito por escritores como Le Bon e McDougall a regressões que tem lugar em cada um dos indivíduos que formam a multidão e caem em seu feitiço.
(4) Sigmund Freud, Psicologia de grupo e análise do ego. 2ª ed.: Rio de Janeiro, Imago, 1987, p. 82.
(5) Ibid., p. 95.
(6) O livro de Freud não chega até essa fase do problema mas uma passagem no adendo indica que ele estava bem ciente dela. “Da mesma maneira, o amor pelas mulheres rompe os vínculos grupais de raça, divisões nacionais e sistemas de classes sociais, produzindo importantes efeitos como fator de civilização. Parece certo que o amor homossexual é muito mais compatível com os laços grupais, mesmo quando toma o aspecto de impulsos sexuais desinibidos, fato notável cuja explicação poderia levar-nos longe” (p. 152) É certo que isso foi posto para fora durante o fascismo alemão, quando a fronteira entre a homossexualidade aberta e reprimida, assim como aquela entre o sadismo aberto e reprimido, tornou-se muito mais fluente do que na sociedade liberal de classe média.
(7) Idem, ibidem, p. 85.
(8) “… as relações amorosas … constituem também a essência da mente grupal. Recordemos que as autoridades não fazem menção a nenhuma dessas relações” (p. 102)
(9) Talvez uma das razões para esse surpreendente fenômeno seja o fato de que as massas a quem o agitador fascista, antes de tomar o poder, tem de fazer face não sejam as massas organizadas mas as multidões ocasionais da cidade grande. O caráter frouxamente ligado dessas multidões variegadas exige que a disciplina e coerência sejam sublinhadas, à expensa da necessidade centrífuga e não-canalizada de amor. Parte da tarefa do agitador consiste em fazer a multidão acreditar que é organizada como o exército ou a Igreja. Daí a tendência à superorganização. A organização como tal se torna fetiche, vira um fim ao invés de um meio. É uma tendência que prevalece em toda a fala dos agitadores.
(10) Ibid., p. 137-138. Casualmente, a principal afirmação da teoria freudiana da psicologia de grupo dá conta de uma das mais decisivas observações sobre a personalidade fascista: o extermínio do super-ego. Freud usou no início o termo ego ideal, mais tarde trocado pelo que chamou de super-ego. O que ocorre nas personalidades fascistas é sua substituição pelo ego grupal. Elas não conseguem desenvolver uma consciência independente autônoma e por isso a substituem pela identificação com a autoridade coletiva, que, como descrita por Freud, é irracional, heterônoma, opressiva e facilmente intercambiável, à despeito de sua rigidez estrutural. O fenômeno é expresso adequadamente na fórmula nazista segundo a qual é bom o que serve o povo alemão. O padrão reaparece nas falas dos demagogos fascistas americanos, que jamais apelam à própria consciência do seus potenciais seguidores mas, ao invés, invocam sem parar valores externos, convencionais e estereotipados, aceitos como dados e autorizados, sem submetê-los a nenhum processo de experiência ou exame discursivo. Como apontado em detalhe no livro A Personalidade Autoritária, de Theodor Adorno, Else Frankel-Brunswik, Daniel Levinson e Robert Nevitt Sanford (Nova York, Harper Brothers, 1950), as pessoas preconceituosas geralmente exibem uma crença nos valores convencionais, ao invés de tomarem decisões morais próprias, e vêem como certo “o que está sendo feito”. Através da identificação, eles também tendem a se submeter ao ego do grupo, à expensa de seu próprio ego ideal, que virtualmente se funde com os valores externos.
(11) O fato de que o masoquismo das massas fascista seja inevitavelmente acompanhado de impulsos sádicos está em harmonia com a teoria geral da ambivalência, que Freud desenvolveu originalmente em conexão com o complexo de Édipo. Como o processo de integração do indivíduo às massas, promovido pelo fascismo, o satisfaz de maneira meramente vicária, subsiste no indivíduo um ressentimento contra as frustrações da civilização, que tem de ser canalizado de modo a se tornar compatível com os objetivos da liderança. Em síntese, ocorre que ele é psicologicamente fundido à subserviência autoritária. Embora Freud não coloque o problema do que mais tarde foi chamado de sado-masoquismo, ele estava bem ciente do mesmo, como evidencia sua aceitação da idéia de Le Bon segundo a qual “desde que não se acha haja em dúvida quanto ao que constitui verdade ou erro e, além disso, tem consciência de sua própria grande força, um grupo é tão intolerante quanto obediente à autoridade. Respeita a força e só ligeiramente pode ser influenciado pela bondade, que encara simplesmente como uma forma de fraqueza. O que exige de seu seus heróis, é força ou mesmo violência” (p. 89).
(12) Ibid., a partir da p. 114.
(13) Ibid., p. 115
(14) Ibid., p. 115.
(15) Confira Max Horkheimer, “Authoritarianism and the Family Today”, in R. N. Anshen (ed.) The Family: Its Function and Destiny, Nova York , Harper, 1949.
(16) Freud (1922) p. 122.
(17) A tradução [para o inglês] do livro de Freud verte o termo “instantz” por “faculdade”, uma palavra que todavia não revela a conotação hierárquica do termo original alemão. “Agência” parece ser mais apropriado.
(18) Ibid., p 126.
(19) Talvez não seja supérfluo sublinhar que o conceito nietzscheano de super-homem tem tão pouco a ver com esse imaginário arcaico quanto o tem sua visão do futuro com o fascismo. A alusão feita por Freud só vale para o super-homem tal como ele foi popularizado em slogans baratos.
(20) Ibid., p. 134.
(21) Ibid., p. 139.
(22) Detalhes adicionais sobre a personalização podem ser consultados na nota da p. 106-107, onde Freud discute a relação entre as idéias e as personalidades do líder; e na página 53, onde ele define como “líderes secundários” essas idéias essencialmente irracionais que mantêm os grupos unidos. Na civilização tecnológica, não é possível nenhuma transferência imediata ao líder, dado que ele realmente está à distância e é desconhecido. O que ocorre é antes a repersonalização regressiva dos poderes sociais autônomos e impessoais. Essa possibilidade foi claramente vislumbrada por Freud: “tendência comum, um desejo, em que certo número de pessoas tenha uma parte, não poderá, de mesma maneira, servir de sucedâneo. Essa abstração, ainda, poderá achar-se mais ou menos completamente corporificada na figura do que poderíamos chamar de líder secundário” (p. 111).
(23) Ibid., p. 145.
(24) O folclore alemão possui um símbolo forte para esse traço. Ele fala em Radfahrernaturen, personalidade de ciclistas: Quanto mais alto eles curvam, mais eles batem no que está embaixo.
(25) Freud, ibid., p 89.
(26) Ibid, p. 110.
(27) Em relação ao papel da religião, neutralizada e diluída, na construção da mentalidade fascista, veja A Personalidade Autoritária. Importantes contribuições psicanalíticas a todo esse campo de problemas encontram-se em Der eigene und der fremde Gott, de Theodor Reik, e Die vaterlose Gesellschaft, de Paul Federn.
(28) Vale notar que a ideologia racial de certa forma reflete a idéia de ressurreição da irmandade primitiva que, segundo Freud, ocorre através da regressão envolvida na formação das massas. A noção de raça compartilha com a de fraternidade duas propriedades: ela é supostamente “natural, um vínculo de “sangue”; e é dessexualizada. No fascismo essa similaridade se conserva inconsciente, pois as menções à fraternidade são relativamente raras e se aplicam apenas aos alemães vivendo fora das fronteiras do Reich (“Nossos irmãos dos Sudetos”). Certamente isso se deve em parte às associações do termo com um tabu nazista, o ideal de fraternité da Revolução Francesa.
(29) Ibid., p. 111.
(30) Ibid., p. 113.
(31) Ibid., ibidem.
(32) Ibid., p. 130.
(33) Ibid., p. 147.
(34) Ibid., p. 130.
(35) Cf. Prophets of Deceit.
(36) Freud, ibid., p. 123
(37) Ibid., p. 138.
Disponível no site https://nupese.fe.ufg.br/up/208/o/Theodor_Adorno_-_A_Teoria_freudiana_e_o_modelo_fascista_de_propaganda__1951__.htm?1349568035 (acessado no dia 27/05/2017 às 21h17)