Gilberto Barbosa dos Santos
Um dia desses, iguais aos outros que consomem o cotidiano de qualquer indivíduo social, estava percorrendo as páginas de um dos mais significativos livros sobre Antropologia, escrito pelo cientista social norte-americano Clifford Geertz, cujo título é sugestivo – em inglês fora grafado como The Interpretation of Cultures – em Língua Portuguesa é A interpretação das culturas e, algo que o autor apontou me chamou a atenção. Segundo ele, o Kula – ritual realizado por determinadas comunidades na região da Polinésia – na Oceania – até o século XIX – registros que chegaram até o momento através de um método etnográfico e etnológico, transcrito pelo antropólogo Bronislaw Malinowski em sua obra Os argonautas do pacífico ocidental [excelente trabalho da linha Funcionalista] – não existe mais, todavia, o seu legado e suas análises permanecem até o presente.
Mas, e dai, será que as etnografias produzidas no passado podem dizer muito sobre o hoje? Aquele leitor apressado dirá que não e nem sequer continuará lendo as linhas que se seguem, entretanto, se eu pegar um gancho no que Geertz diz, é possível vislumbrar uma miríade de possibilidades quando a questão se voltar para o ambiente literário e quem sabe das autoetnografias. Porém, como dar significado a isso, buscando apresentar ao leitor apressado do Brasil destas primeiras décadas do século XIX que o país Oitocentista tem contido muita coisa no aqui e agora? Não é preciso um árduo exercício, principalmente levando em conta a vastidão que é o passado nacional, marcado, sobretudo, pelo trabalho de escravos, cujas marcas indeléveis permanecem nas entranhas deste país, ao ponto de serem encontrados lampejos de pré-conceitos acentuados de forma pré-concebida ao longo dos primeiros passos dados durante a socialização primária.
Não é nenhuma novidade dizer que, na media, o Brasil tem uma visão preconceituosa sobre o outro, principalmente se este for originário de um sistema que aviltou por mais de três décadas os seres humanos trasladados forçosamente do continente africano para as terras recém-descobertas naquele período. E que dizer dos sem dinheiro? Muitos discordarão e poderão rechear suas opiniões com quantidades infindáveis de exemplos, contudo, diante da magnitude do problema, os casos não passam de gato pingado, como se diz no jargão popular. Claro que a situação já esteve pior, como atesta o filme Adivinha quem vem para jantar, película norte-americana da década de 60 do século XX, que, quiçá o país retratado ser bem diferente da Terra que tem no escritor Castro Alves – um dos maiores defensores dos africanos e por isso conhecido como “poeta dos escravos” e para isso basta percorrerem as páginas de seu Navio negreiro. Legal! Buscar lá nas letras oitocentistas subsídios para uma pequena reflexão sobre a Nação que emergiu do fim do cativeiro e, por conseguinte, a queda da Monarquia, no entanto, esse passado um tanto quanto distante recheia a atualidade brasileira.
Para tentar melhorar meus argumentos, ou seja, de que fenômenos semelhantes ao Kula polinésio, não existem mais, todavia, deixou seu legado a partir de uma estrutura que possibilita ao cientista social entender como aquela sociedade funcionava e qual foi a herança deixada para as gerações futuras, recorro a um escritor mais próximo da realidade de muitos de nós: Jorge Amado (1912-2001), proseador baiano com uma vasta bibliografia romanesca que apresenta uma parte significativa do Brasil e suas relações políticas, que o diga a enunciação presente em Gabriela, cravo e canela: crônica de uma cidade do interior. Nessa mesma chave, há outro enredo singular em Seara Vermelha e a saga de retirantes nordestinos como a registrada por Graciliano Ramos (1892-1953) em Vidas Secas; ou ainda a narração presente em O Quinze, de Rachel de Queiroz (1910-2003) e por que não o emblemático auto de Natal Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto – obras que tem como cenário a miséria que campeia o Nordeste brasileiro. Reservada as devidas proporções temporais, todas, em uníssono enfoca o ontem que, mesmo no âmbito ficcional desapareceu, contudo, aqueles sertões e secas permanecem até o momento.
Sendo assim, pulo para a novela Clara dos Anjos, do escritor carioca Lima Barreto (1881-1922). O fictício ali não engana o leitor mais detalhista e concatenado com o universo concreto, mesmo porque o romancista era homem do seu tempo e retratava em suas linhas e entrelinhas aquilo que via e sentia. Portanto, os fatos retratados através da representação literária ficaram lá no Brasil pós-República, mas as consequências ou até mesmo os acontecimentos, frutos de uma sociedade que respirava ares fornecidos pela ideologia liberal – desde que fossem mantidos o trabalho escravo e as sevícias sofridas pelo cativo – perduram até este século XXI. A escravidão foi eliminada naquela manhã do sábado, 13 de maio de 1888 quando o decreto imperial estampou as páginas dos jornais da Corte, no entanto, as mazelas perpetradas e petrificadas pelos escravagistas e seus descendentes continuam. Desta forma, uma frase dita naquele período ainda é atual: não é possível libertar apenas o elemento africano, é preciso que a alforria chegue também aos empedernidos escravocratas. Parece-me que o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (1900-1980) e os seus clássicos Casa-grande e Senzala e Sobrados e mocambos pode explicar muito bem o intercâmbio étnico entre as três matrizes forjadoras do que ai está em termos de comportamento étnico.
Percorrer essa bibliografia, atrelada a outros trabalhos mais recentes pode dar uma dimensão mais aproximada do que foi o Brasil, cujo legado é o que temos no momento: uma sociedade que nega de pé junto não ser etnocêntrica, xenófoba e preconceituosa, mas que ainda é adepta do famigerado “você sabe com quem está falando!”, conforme retrata o antropólogo carioca Roberto DaMatta na obra Carnavais, malandros e heróis: para uma Sociologia do dilema brasileiro. Se a sociedade guarda grandes lampejos da época colonial e, posteriormente, monárquico, vieses que contaminaram a jovem República, levando muitos dos idealistas Oitocentistas a descrerem no que estavam assistindo, o que fazer para se viver numa República de fato? Eliminar a categoria política que sitiou o Congresso Nacional através de uma prática que, na aparência diz ser democrática, mas que é, em sua essência, patrimonialista, plutocrática e sustentada por um atroz nepotismo. Quanto à ideia de extinguir o séquito político, todos são cônscios, entretanto, ao ser chamado a opinar e a escolher o postulante que quer ver no principal assento, por exemplo, duma cidade, o ser despolitizado lhe tasca mais do mesmo, ou seja, vota no mesmo ou naquele que tem um discurso mais próximo dos sofistas do que propriamente socrático. Desta forma, enquanto a grita dura mais ou menos 48 meses, bastam alguns segundos para calar o clamor desenfreado de outrora através do equívoco opinativo. Vejam vocês, meus caros leitores, os casos que pululam na Capital Federal, no Estado e por que não no município, mas ai já não comigo e sim com quem escolheu e continuará a escolher de qualquer jeito o seu representante e porque não dizer por promessas ocas.
Gilberto Barbosa dos Santos, sociólogo, professor no ensino superior e médio em Penápolis. Pesquisador do Grupo Pensamento Conservador – UNESP e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS-UNESP. Escreve às quintas-feiras neste espaço: www.criticapontual.com.br. E-mail: gilbertobarsantos@bol.com.br, gilcriticapontual@gmail.com, e social@criticapontual.com.br.