Vir a ser do ser

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos

O que tem de atraente numa escrita para ti, oh meu caro leitor? A resposta pode ser longa, curta ou média, a exemplo do horóscopo árabe. Será que você é chegado nas previsões zodiacais? No presente desta leitura, quando emerge a minha enunciação, o mais importante não é detectar o texto grafado, primeiramente numa narrativa cursiva e, num segundo, usando sinais gráficos que me saltam da tela do computador. Feitas essas observações preambulares, penso ser interessante me enveredar pelo que de fato interessa numa crônica: o seu enredo. Para que serve um relato que tem no máximo cinco parágrafos? Para muitos, pode ser tudo ou nada ao mesmo tempo, já que o escopo é apenas um singelo entretenimento.

Se o objetivo é entender, então é possível tratar de uma narrativa do corriqueiro cotidiano que não tem sentido algum para quem quer que seja, exceto aos protagonistas. Não sou muito de ficar com essas conjecturas no meu dia a dia, contudo, às vezes é significativo observar meticulosamente os transeuntes ou aqueles que estão estacionados no ponto de ônibus a espera do seu transporte após um dia estafante ou enfadonho de trabalho. E foi num desses dias que coloquei ouvido na conversa de duas mulheres que estavam aguardando a sua condução. A temática parecia ser a mesma de outros encontros, já que falavam de suas vidas sentimentais e sexuais. Para não entrar nas intimidades delas, isto é, revelar suas identidades, vou designá-las, como numa equação algébrica ou coisa parecida, por x e y. A primeira parece uma coordenada na horizontal, pois sempre esperava, segundo o seu relato, o marido, deitada na cama aguardando uma noite torrencial de amor. Pelo menos foi o que narrou à sua interlocutora, definida aqui por y já que adorava partir para o ataque, objetivando sentir a reação do corpo do amante quando este era tomado pelo ímpeto de sua parceira de cama.

Não interessa aqui saber se eram casadas, amantes ou mulheres independentes. Eu apenas me ocupei em ouvir a narrativa da dupla sobre a noite anterior ou o que as duas esperavam para as horas vindouras. Bem ao estilo de Walter Benjamin e o seu “anjo da história”, quero saber apenas se as enunciações eram verídicas ou, a exemplo dos homens, tudo não passava de conversa para preencher o tempo enquanto se aguarda a chegada do transporte coletivo. Pensei se tratar de aleivosias para provocar impactos em que escutava tais relatos. Os homens gostam de contar fatos pretéritos numa espécie de massagem do ego. E as mulheres quando abordam, entre elas, o sexo ou esse é mero detalhe, pois o que mais importa é a sexualidade expressada antes e depois do ato. O que, tu achas, meu caro leitor? Eu, cá, do outro lado da escrita, acho significativo que elas sejam independentes em tudo: no trato e no fino, como se diz no jargão popular. Neste sentido, recorro aqui a um pensador alemão, mais conhecido pelos hábitos espartanos, do que pelo conhecimento de suas enunciações filosóficas. O homem viveu lá no século dezoito, mas seus escritos nos impactam até hoje. Immanuel Kant disse muitas coisas, entre elas, o de que o homem nunca é, isto é, não vive no presente. Este indivíduo existe sempre num amanhã que nunca chegará. Desta forma, uma noite de amor ou de sexo, como preferir o meu caro leitor, só é grande se for vivenciada no presente pelos amantes. No dia seguinte passa a ser apenas memória que pode aprisionar o ser no pretérito evitando que ele viva no presente que passa a ser visto como um futuro que nunca será atingido.

Sendo assim, a conversa das duas mulheres me interessou muito não pelos detalhes que uma revelava a outra, já que poderia ter acontecido ou não, pouco importa, pois o meu interesse era compreender aquilo que chamava mais a minha atenção para a dupla quando a questão era a relação sexual. O ato em si é em si mesmo, mas o que deslinda o “ser” do amante é como ele registra em seu palimpsesto aqueles momentos em que há muito mais do que suspiros, gritos e trocas de fluidos. O mundo lá fora pode estar desabando, se as duas pessoas que estão num ato, dito por muito, de relação sagrada, estiverem conscientes do que estão fazendo, não haverá infortúnio algum. Agora, se a ação for no campo da competição, é preciso saber se existe a equivalência entre os iguais em que o prazer deverá ser compartilhado. Por outro lado, se for uma transa apenas, que os envolvidos saibam bem o que significa a troca de fluídos amorosos.

Desejaria escrever mais, mas o transporte das duas chegou e elas entram no ônibus e lá se foram felizes com os seus relatos das noites anteriores ou futuras, enquanto eu fiquei ali no ponto aguardando a minha condução. Olhei para o céu e as nuvens prometiam um fim de dia chuvoso e eu, com certeza, teria uma noite solitária, não que a solidão me amedrontasse, pois cheguei a esse mundo sozinho e vou deixá-lo da mesma maneira: só. Todavia, o espaço que existe entre o nascer e o morrer precisa ter alguma emoção de vez em quando. Por isso invejei as duas mulheres: se era verdade ou não, pouco importa, pois o principal objetivo de existir é ter o que narrar e elas, com certeza, tinham muitas coisas para contar uma para outra. As peripécias sexuais, por menor que sejam reproduzidas nos diálogos das duas, diziam respeito a um ontem que se expressa no presente que busca sua personificação num amanhã e assim caminha a humanidade.

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos, licenciado, bacharel e mestre em Ciências Sociais, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis. e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com. www.criticapontual.com.br.

 

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