Utopia possível

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Eu poderia escrever sobre a greve dos caminhoneiros ou outro assunto qualquer, entretanto me parece ser um tema batido, portanto, devo passar a outras enunciações, por exemplo, inspiradas na leitura das crônicas do escritor brasileiro Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1920). Dentre tantas, destaco uma publicada no dia 21 de novembro de 1921, dentro da série Marginália e intitulada 15 de novembro, cujo objetivo era comentar o aniversário da Proclamação da República ocorrida na madrugada do sábado, 15 de novembro de 1889, não por vontade popular, mas por intermédio duma quartelada que baniu o Império Brasileiro, sendo que o Imperador D. Pedro II morre no exílio – mas ai é outro enredo.

Em determinado trecho de sua crônica, Lima Barreto faz a seguinte interpelação: “Não será, pensei de mim para mim, que a República é o regime da fachada, da ostentação, do falso brilho e luxo parvenu [novo-rico], tendo como repoussoir [contraste, contraposição] a miséria geral?” A interrogação é significativa para o presente, mesmo tendo sido elaborada por um dos mais polêmicos cronistas brasileiros há quase um século. Ela tem sua evidência por estarmos ainda num regime republicano presidencialista, com uma Constituição Federal que tem um verniz parlamentarista num país em que a cidadania plena é um desejo muito distante, tendo em vista o caráter ibérico que paira no etos brasileiro, conforme aponta o pensador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) em seu clássico Raízes do Brasil. Essa vertente republicana nacional faz com que o presidente da República tenha que governar assombrado pelo Congresso Nacional formado pelas velhas figuras e famílias da política nacional – inclusive com alguns sendo descendentes de políticos que figuraram na corte imperial – a partir duma coalisão de interesses pessoas e de determinadas camarilhas.

Até aqui nada de mais no front de meus escritos, talvez nenhum fator que leve os meus leitores a continuar, a partir daqui, seguindo as enunciações e demais enredos semanais, porém, me parece ser interessante enfrentar o enredo que se segue, já que a República que ai está, conforme aponta as linhas confeccionadas por Lima Barreto há quase cem anos, não é a que os brasileiros esperam de fato, pois a que foi fundada em 1889 não mudou em nada o quadro político da época, sendo o presente uma mera consequência de algo que não foi banido com o advento da res publica. Desta forma, a Monarquia pode parecer ao cidadão com cidadania um cadáver insepulto. Se a República não substituiu os vícios e manias políticas presentes durante a vigência dos dois Reinados no Brasil, qual poderia ser então a utopia do brasileiro? Em seu último livro Crise e reinvenção da política (2018), o cientista social que foi presidente do Brasil por dois mandatos (1995-2003), Fernando Henrique Cardoso, diz que “a utopia, por definição um ‘não lugar’, é sempre um exercício de imaginação e de esperança” (São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 207).

Antes de prosseguir em minhas observações, é preciso registrar que há o livro Utopia, escrito pelo religioso Thomas Morus (1478-1535). Existe ainda Ideologia e Utopia, obra sociológica de significativa envergadura do pensador alemão Karl Mannheim (1893-1947), na qual ele faz uma distinção entre essas duas categorias, indicando que aquela ideia apontada como sendo utópica pode, num segundo momento e, em outras circunstâncias, se transformar em ideologia. Deixando essas duas explicações para serem exploradas em outro momento, voltando à a Fernando Henrique Cardoso é preciso que se diga que para ele, “sem uma visão inspirada por valores que motivem e mobilizem, não se vai a lugar nenhum. O polo democrático e popular de que precisamos para imprimir um novo rumo ao Brasil, como todo movimento de transformação, requer utopia” (CARDOSO, Fernando H.: 2018, p. 207). Até ai, creio que o ex-presidente está no caminho, entretanto, é preciso expor qual seria essa utopia que levaria o brasileiro a acreditar novamente na categoria de político existente no país. Parece-me que a mais importante e salutar seria aquela em que os representantes do povo envolvidos em atos delituosos, principalmente aqueles que dizem respeito aos desvios e desmandos com recursos oriundos dos cofres públicos fossem punidos pelas práticas de crimes hediondos, já que tais ações corruptíveis surrupiam o desejo de muitos brasileiros que almejam um futuro diferente do presente.

Nessa chave punitiva, não somente os políticos seriam apenados severamente, mas também os burocratas que recheiam os departamentos, autarquias, secretarias e outros órgãos públicos e os respectivos plutocratas que, de acordo com José de Alencar (1829-1877) em seu livro Cartas de Erasmo ao Imperador, vem sangrando as finanças públicas objetivando se enriquecerem com o dinheiro que o trabalhador deixa com o governo para que as despesas com educação de qualidade, saúde e saneamento básico sejam cobertas pelo Estado arrecadador. É interessante emendar que, se por um lado temos uma normatização que encarcera os corruptos, por outro, faz-se necessário ter brasileiros que sabem escolher seus representantes e façam as devidas cobranças no momento em que o delito é descoberto, entretanto, para que isso seja possível é preciso que o indivíduo participe da vida ativa da sociedade e não fique apenas esperando que o Estado faça alguma coisa que o beneficie.

O bom eleitor não é aquele que acerta sempre, mas sim o sujeito que é cônscio da importância de seu voto e busca sempre a melhor opção, não para si, mas para o seu país e a paróquia que reside. Sendo assim, não basta ter informações sobre determinadas mercadorias políticas, é preciso saber transformá-las em conhecimento, buscando sempre a conexão de sentido entre as propostas que estes defendem e os interesses do cidadão comum. Desta forma, me parece que não basta o berro nas ruas e movimentos, faz-se necessário mais ousadias. Há alguns anos, tenho observado manifestações aqui e ali, contudo, elas não surtem efeito prático na vida política brasileira, já que os mesmos políticos da velha politicagem continuam ditando as regras nos partidos políticos que mais parecem feudos do que agremiações ideológicas. Muitos dirão que, deixar as ruas e suas vociferações e ingressarem num dos mais de cinco mil parlamentos espalhados pelo Brasil, é uma tarefa árdua, pois não basta apenas vontade, é preciso que o indivíduo queira, de fato, renovações e não apenas aquelas em que ele não precise fazer nada, já que tudo vem pronto do alto trono, de acordo com a narrativa machadiana presente num dos capítulos do Memórias póstumas de Brás Cubas. Enfim, qual seria a utopia de cada um de nós, quando o assunto é construir uma Nação bem diferente desta que o individuo está acostuma a ver cotidianamente? Do eu para o nós, pensemos com serenidade para que as respostas surjam sem a necessidade de se digladiar em prol de legendas e feudos partidários.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor do ensino superior e médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

 

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