Universalizando condutas

Gilberto Barbosa dos Santos

 

O filósofo alemão, da escola de pensamento racionalista – Esclarecimento – Immanuel Kant (1724-1804) tem três obras principais em que discute a possibilidade de junção entre o inatismo platônico com o empirismo aristotélico através do conhecimento racional. Os três livros: Crítica da razão pura, Crítica da razão prática e Crítica do juízo são precedidos por uma pequena introdução, designada como Fundamentação para a metafísica dos costumes. Entre tantas observações, Kant aborda os imperativos categóricos e os hipotéticos e faz uma significativa afirmação, segundo a qual, o homem precisa agir levando sempre em conta a universalização de sua ação, de tal forma que o que faz no campo singular sirva de referência para os demais pares na esfera coletiva do existir.

Tendo esse singelo destaque kantiano e recuperando um fato ocorrido há algum tempo, inclusive com a inserção do mesmo no material pedagógico da disciplina de Filosofia, ministrada aos alunos do ensino médio da rede pública de ensino até o ano passado, é que tentarei entender o Brasil, a partir dos resultados das urnas de 2018. O episódio em si diz respeito a um grupo de jovens que, por volta das 5h da manhã quando voltavam de seus cerimoniais festivos, encontra uma senhora num ponto de ônibus. Os “pimpolhos” – com significativos adjetivos familiares, isto é, bem nascidos  como se diz no jargão popular – acreditando se tratar de uma prostituta – como se isso lhes desse o direito de vilipendiá-la – resolvem agredi-la e, de quebra, lhe surripiam o aparelho celular. Um transeunte, que presenciou o cenário dantesco, conseguiu anotar a placa do veículo dos “pitboys” e acionou a polícia. Os cinco foram presos quando começam a dormir. Recordo-me que na época, o quinteto foi indiciado por tentativa de latrocínio, ou seja, queria matar a vítima para lhe surrupiar o celular.

O que me marcou nesse fato foi, num primeiro momento, a reação do pai de um dos violentadores. Em entrevista para várias emissoras de televisão, este disse não ser justo manter preso jovens que estudavam e trabalhavam. Em seguida a essa fala, uma das emissoras que retransmitiram a entrevista, repercutiu aquelas observações com um catedrático da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo). A análise dele foi pertinente e sempre recorro a ela quando tento entender os rumos que a sociedade está tomando, sem valor algum, sem princípios morais e éticos e aí muitos culpam a coletividade, os amigos, mas se esquecem de olhar como os pais são exemplos para os próprios filhos. Pois bem, o professor universitário explicou que naquele caso – que pode ser apenas um quantum de algo bem maior, pois a problemática estava sendo espalhada pelo país -, configurava-se como família disfuncional, isto é, havia a presença do pai e da mãe no mesmo ambiente, ou seja, em uma casa que deveria se tornar um “lar”, contudo, o que se via era a distorção dos valores, personificada na fala do pai.

Pois bem! Se isso é fato, o entrevistado me forneceu alguns elementos para pensar os problemas sociais, principalmente aqueles que são originários dos desvios de verbas e corrupção. Como me afirmou certo dia um amigo de profissão, a questão é mais emblemática, pois não se resume em culpar a sociedade, mas sim compreender porque o ser humano age desta forma: querer sempre levar vantagem em tudo e aí pode ser uma das questões mais emblemáticas do capitalismo que se transforma conforme a situação onde é utilizado, como no caso do Brasil senzaleiro. Desta forma, é possível, usando o raciocínio de Kant para sistematizar a estrutura de seu pensamento e de seu corpus filosófico, apontar que quando um eleitor, mesmo tendo provas cabais, robustas e concretas, escolhe um postulante a cargo de prefeito, governador, presidente da República envolvido em falcatruas, mas conseguiu efeito suspensivo na ação que já havia sentença em segunda instância, concorda com as suas estripulias, sejam para se apropriar de merreca dos recursos públicos ou desviar bilhões, conforme as investigações da Lava Jato vem indicando.

Neste ponto de minha narrativa, creio que cabe uma reflexão a partir do livro O critério, do padre Jaime Luciano Antonio Balmes y Urpiá (1810-1848), segundo o qual é preciso haver um critério racional para se agir desta ou daquela maneira. Portanto, é necessário interpelar o cidadão-eleitor quais foram os motivos que o levaram a escolher determinada mercadoria-política, bem como os critérios utilizados para fazer tal opção. Interessante notar que é possível observar um desconhecimento da existência da vida política nacional, cujas consequências podem ser uma democracia delegativa, isto é, aquela em que o sujeito social transfere a outra pessoa algumas ações que cabe a ele adotar. Numa democracia participativa, os indicados são fiscalizados diariamente pelos cidadãos através de dispositivos presentes nas leis do país. Se isso é fato, por que aqui no Brasil não existe esse tipo de postura e, quando há, os envolvidos são defenestrados, violentados em seus direitos de expressões, de livre pensamento, em que a teocracia se confunde com a democracia e indivíduos, imbuídos de mandatos eletivos querem imiscuir-se num campo que não lhes apetece? Essas ações seriam frutos duma sociedade que flerta com o autoritarismo? A resposta pode ser dada a partir da análise de nossa história republicana. Numa pesquisa, com um pouco de seriedade em documentos disponíveis na internet, é possível chegar uma singela conclusão: nos mais de 100 de República, um terço deles o país passou sob o manto de ditaduras, ditadores e seus títeres e outras vertentes totalitárias, entretanto quando os presidentes foram escolhidos democraticamente, principalmente depois de 1988, o desastre é grande, pois a maioria deles ou está presa ou sofreu impeachment.

Então recorrendo às observações que Kant faz no livrinho Fundamentação para a metafísica dos costumes, como é possível mudar o quadro político sucessório no país, se aqueles que escolhem continuam a fazer suas preferências como outrora se comportavam, apenas observando o que este ou aquele pode fazer em sua vida privada, delegando para o Estado a manutenção de sua existência. A questão é emblemática, por vários fatores, a começar pelo nascimento do Brasil enquanto Nação e posteriormente como República, cujas instituições estatais foram criadas para servir uma elite em torno da Coroa e não ao povo – este então nem existia, pois em 1808, quando a família real aqui aportou, o Brasil nada mais era do que uma colônia escravagista com mentalidade tacanha e atrasada, querendo ser moderna professando o liberalismo, coadunado com o escravismo e uma teoria totalmente descabida conhecida como craniológica, conforme a antropóloga da USP, Lilia Moritz Schwarcz apresenta em seu livro O espetáculo das raças.

Sendo assim, aquela atitude do pai no afã de livrar seu pimpolho das grades, por uma ação descabida e impensada motivada pelo espírito de pertencimento a um bando de truculentos rapazes que pensam resolver tudo através da violência, pode ser externada por vários recônditos brasileiros. Observem bem, meus caros leitores, não classifico a atitude daquele quinteto formado por “pitbopys” como algo impensado, uma brincadeira, mas sim como uma ação pensada por sujeitos que se creem acima da lei e donos da verdade, estimulado por práticas observadas em suas casas, cujas ações são universalizadas no convívio social, nos dizeres do pensador alemão. Desta forma, fica-me a seguinte interpelação: como é possível se pensar em dias melhores, se os seres humanos continuam agindo da mesma forma: as eleições de 2018 e as vindouras têm fortes evidências desse comportamento truculento escudado em mentiras e verborragias toscas.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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