Um robótico domingo qualquer

Gilberto Barbosa dos Santos

 

O domingo caminhava para ser como mais um daqueles em que passo a vista pelos jornais, como dizia Raul Seixas em determinada canção. Depois de percorrer as páginas desses periódicos dominicais, me aventuraria pelos escritos dumas revistas semanais e depois, quem sabe, umas enunciações romanescas. Seria excelente o começo da semana, todavia, ao me recordar do ideário lockeano [John Locke – 1632-1794], segundo o qual é convicção de que o pensamento reflexivo estruturado e racional, na condição de fruto do agir filosófico, deve desempenhar uma função decisiva no modo como os seres humanos entendem o seu lugar no mundo e no tipo de vida que corresponde à sua dignidade. Essa observação me fez ocupar do conteúdo do artigo Seu emprego vai para um robô (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/07/era-dos-robos-esta-chegando-e-vai-eliminar-milhoes-de-empregos.shtml), escrito pelo professor da USP, Paulo Feldmann.

Enquanto percorria as linhas que compõem aquelas narrativas, fiquei tentado a recuperar algumas observações feitas pelo professor do IFCH (UNICAMP) Ricardo Antunes, sociólogo que pesquisa as transformações no mundo do trabalho. Entre sua vasta bibliografia, destaco o significativo livro Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho (2003). Os cursos que ministrava na Universidade Estadual de Campinas eram sempre concorridos, justamente por conta de suas colocações sobre os rumos do trabalho num mundo cada vez mais globalizado e em constantes mudanças por conta dos avanços tecnológicos proporcionando as transnacionalizações dos capitais – é interessante notar que o retorno de um viés nacionalista e populista no mundo pode ser consequência do esgotamento de um modelo de capitalismo [voltarei a essa temática em outro momento].

Antes de ingressar nas propriedades presentes nas enunciações do professor Feldmann e algumas considerações feitas pelo sociólogo Antunes, me parece ser salutar, mesmo que de forma lacônica, externar como compreendo o processo global da vida em sociedade. De acordo com o também sociólogo Octávio Ianni (1926-2004), “a globalização do mundo expressa um novo ciclo de expansão do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório de alcance mundial. Um processo de amplas proporções envolvendo nações e nacionalidades, regimes políticos e projetos nacionais, grupos e classes sociais, economias e sociedades, culturas e civilizações. Assinala a emergência da sociedade global, como uma totalidade abrangente, desafiando práticas e ideais, situações consolidadas e interpretações sedimentadas, formas de pensamento e voos da imaginação” (Era do globalismo: Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, p. 11).

Se a globalização da vida transforma constantemente a vida das pessoas, para o bem ou para o mal, é preciso observar que também o fenômeno leva o homem a se tornar uma mercadoria transatlântica que tem sua precificação na medida em que gera valor para quem a adquire. Neste sentido, Ianni vai dizer que “o que caracteriza o trabalho no fim do século XX, quando se anuncia o século XXI, é que ele se tornou realmente global. Na mesma escala em que se dá a globalização do capitalismo, verifica-se a globalização do mundo do trabalho. No âmbito da fábrica global criada com a nova divisão internacional do trabalho e da produção, a transição do fordismo ao toyotismo e a dinamização do mercado mundial, tudo isso amplamente favorecido pelas tecnologias eletrônicas, nesse âmbito colocam-se novas formas e novos significados do trabalho” (IANNI, 2001, p. 123). A partir dessa observação e de uma fala do economista e professor de Economia do IE (Instituto de Economia) da UNICAMP, Marcio Pochmann, surge uma interpelação: será que a globalização do mundo do trabalho e a constante robotização no mundo fabril, chamada revolução 4.0, eliminou as classes sociais – pelo menos aquelas ossificadas por Karl Marx (1818-1883): burguesia e proletariado?

Se se é possível afirmar que, se a luta de classes foi exterminada pelo enorme braço capitalista em sua fase financista, então para que existir socialmente? Se a dicotomia entre capital e trabalho já não determina o grau de relação e alienação entre as pessoas, a preocupação deve ser pautada no campo do bem-estar da humanidade que assiste boquiaberta a extinção de milhares de empregos, em sua maioria provocada pelas constantes transformações no campo tecnológico. Aqui não é possível deixar de evidenciar que, enquanto as máquinas desempregam numa velocidade cada vez maior, o mundo industrial, não é mais aquele do chão da fábrica – para lembrar Pochmann durante a sua passagem por Penápolis – cria um Exército Industrial de Reservas, como afirmava Marx. Entretanto, os integrantes dessa categoria definida como lumpenproletariado se deslocam em quantidade assustadora para as bases da pirâmide social – daí o medo de muitos daqueles sujeitos pertencentes às chamadas classes médias, justificando uma significativa adesão à projetos ou propostas de governos totalitários, já que o temor da pauperização, cada vez mais próximo, se torna fantasmagórico.

Esse processo de robotização da vida não é novidade para ninguém, entretanto, como resolver os problemas advindos da modernização da existência social? Olha que os algoritmos estão cada vez mais “inteligentes” e capazes de indicar para o cidadão o que ele deve comprar para ler, ouvir, sonhar, inclusive as ações que precisa adotar para ser feliz. Tudo isso através das escolhas feitas, muitas das vezes, de forma aleatória, mas que, ao serem armazenadas num dispositivo móvel e eletrônico, ditam padrões e maneiras de agir dos seres humanos. Acrescente-se a essas observações os dados da OIT (Organização Internacional do Trabalho) apresentados pelo professor Feldmann. Pelos números da OIT “existem 194 milhões de pessoas desempregadas no mundo, quase um Brasil inteiro”. Esses números demonstram que a implantação maciça da automação industrial é irreversível, no entanto, ao que a bibliografia sobre o assunto se apresenta, os países mais desenvolvidos, especificamente os escandinavos estão agindo para assistir a massa de trabalhadores que ficarão, ou já estão, sem empregos por conta dos processos de robotizações da vida na polis.

Só para recordar um pouco, Machado de Assis tem uma crônica em forma de apólogo, em que dois burros discutem sobre seus destinos depois que as companhias de bondes adotarem os veículos conduzidos por energia elétrica. O texto foi publicado nas décadas finais do século XIX e diz respeito ao universo escravagista. Entretanto, é importante observar que os africanos escravizados foram “alforriados” sem ter condições de ingressarem no mercado de trabalho e, até hoje seus descendentes têm dificuldades para se inserem no mundo das mercadorias capacitadas de gerarem valor, se se pensar na dinâmica do sistema capitalista. Posto isto, é possível vislumbrar que, enquanto a sociedade brasileira ficar debatendo temáticas ultrapassadas no mundo da empregabilidade, não se avançará em nada, conforme sentencia o professor da USP: “apesar de todos esses aspectos assustadores, o que há de pior para um país é não discutir o assunto. E é justamente isso que acontece no Brasil, mesmo neste ano eleitoral”.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor do ensino superior e médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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