Tempos sombrios ou quase isso

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Tenho escutado, e venho lendo muito mais, contudo, me expressado menos, que a sociedade globalizada passa por momentos estranhos e sombrios. Peço licença aos meus leitores – se eu ainda estiver alguns – para discordar, principalmente na condição de cientista social. O meu desfavor à essa tese reside no fato das observações que se pode tirar da leitura das obras de Karl Marx (1818-1883) e não de correntes interpretativas da obra do pensador alemão oitocentista, as chamadas teorias marxistas. Desta forma, começo a minha reflexão a partir do primeiro capítulo da obra muito dita, contudo, pouco analisada O Capital: A mercadoria. Para não ser muito longevo, portanto, cansativo e enfadonho, vou direito ao ponto: para o autor, tudo o que existe na sociedade burguesa é mercadoria, ou será transformada em algo a ser comercializado nesta condição, de tal maneira que o capitalismo está se imiscuindo em todos os poros do existir humano. De forma que, nada, absolutamente nada escapa às garras desse sistema, cuja lógica é escudada no dinheiro sendo transformado em mercadoria e posteriormente em dinheiro acumulado e ampliado pela sua circulação.

Está-se numa fase em que o capital está deixando de existir em sua forma material, justamente para reduzir o seu custo de produção. Neste sentido, se o dinheiro em espécie é uma mercadoria que tem custo, precisa passar por mudanças para se tornar mais atrativo para quem o compra. Todos sabem quem são os detentores dessas mercadorias voláteis que consomem tudo, desde a moral, os princípios éticos e relacionamentos que, até então, pareceriam fortalecidos na união de duas pessoas que se acreditavam indivisíveis a partir da assinatura do contrato nupcial. Se o dinheiro compra tudo, o que resta para aqueles que se recusam a entrar nessa ciranda maléfica de compra e venda de mercadorias, inclusive a humana, de acordo com seus valores de uso e valores de troca, ou seja, a utilidade que ele tem no cotidiano de quem o adquiriu e as trocas simbólicas personificadas no consumo conspícuo, conforme explica o economista Thorstein Veblen (1857-1929). Ao se recusarem a ingressar na roda da fortuna, ou pelo menos, no jogo que visa se apoderar da mesma ou de pessoas e objetos fantasmagóricos, esses sujeitos sociais acabam ficando à margem da sociedade capitalista e mercadológica.

Essa seria a situação deste presente? A sociedade dividida entre aqueles que se intercambiam como mercadorias e os que se recusam a se transformarem em mero objeto de consumo, seja como valor de uso ou de troca ou em bens conspícuos de alguém? Parece-me que é preciso uma análise com muita acuidade para se entender o momento pelo qual passa o orbe terrestre. A primeira tentativa deve ser respaldada pela tese desenvolvida por Marx a partir da ideia, segundo a qual, a história se repete: uma vez como farsa e a outra como tragédia. Acrescenta-se a essa observação uma outra, tão pertinente quanto à primeira: o homem faz a sua história, mas não como quer e sim pelas condições materiais determinadas pelo meio. Posto isso, seria interessante um cientista social fazer o seguinte exercício: quais fatores levam o homem da pós-modernidade a adotar posturas e ações que faz com que seja considerado farsa ou tragédia e, se estes são coisas [Emile Durkheim (1857-1920)] externas e coercitivas aos sujeitos sociais? Se se o cientista social se detiver no quesito histórico, seria importante tentar entender dois momentos singulares na sociedade contemporânea: o surgimento do nazismo [Alemanha] e fascismo [Itália]. Não se pode desconsiderar o totalitarismo soviético instalado em 1917 numa Rússia ainda feudal e com fortes resquícios czaristas [aqui Karl Marx a partir duma obra intitula Formações econômicas pré-capitalistas pode dar ao interpelador uma significativa resposta].

Convém ao meu leitor recordar que a Europa da primeira metade do século XX estava mergulhada num oceano de sangue: Primeira e Segunda Guerra, Revolução Russa e a caça às bruxas – não existe períodos pós-revolucionários em que os inimigos não sejam tratados à brasa [a Inquisição, a Revolução Francesa e o Terror estão aí para confirmar o que escrevo]. O historiador Eric Hobsbawm (1917-2012) chama esse período encerrado em 1989 após a Queda do Muro de Berlim, de “Breve século XX”. Outra afirmação significativa para aqueles que pretendem compreender o presente, sem se alamar com a ideia de que o mundo passa por um momento tenebroso. Se for possível fechar questão em torno de tempo e datas, é possível dizer que entre 1914 (início da Primeira Guerra) e 1945 (término da Segunda Guerra e criação da ONU – Organização das Nações Unidades), o planeta estava mergulhado em ditaduras e totalitarismos aqui e ali e o Brasil não ficaria para trás, tendo em Getúlio Vargas (1882-1954) e o Estado Novo seu totalitarismo abrasileirado. Portanto, a democracia passava longe dessas cercanias. Havia algumas coisas esparsas, começando pelos Estados Unidos e Canadá, entretanto, o restante do continente americano, ou estava sob o julgo dos coturnos e ditadores ou flertava com regimes totalitários, principalmente aqueles que emergiam na Europa, como por exemplo, o fascismo italiano; o nazismo alemão e a ditadura stalinista [disfarçado de comunismo] russo/soviético.

Encerrada a Segunda Guerra Mundial ou a Grande Guerra – muitos cientistas sociais acreditam que não houve dois conflitos, mas apenas um, com um pequeno interregno que serviu para a Alemanha se reerguer a partir do governo nacional-socialista de Adolf Hitler (1889-1945) e os italianos elevarem Benito Mussolini (1883-1945) a condição de conduttore, isto é, a comandante geral dum país que abraça o fascismo como regime de governo contando com a sua guarda pretoriana, os chamados camisas pretas mussolinianos – era preciso reconstruir a Europa. Diante desse empasse entra em cena os Estados Unidos da América e sua forma de se solidificar enquanto Nação soberana e superpotência. Criou-se o Plano Marshall seguido do programa chamado Estado do bem-estar social Keynesiano [John Maynard Keynes (1883-1946)] que balizou por 50 anos a democracia ocidental, mais especificamente um modelo econômico-político que contemplava a classe média num oásis mercadológico que estimulava diariamente o mundo da tecnológica. Os integrantes dessa categoria social não tinham o que reclamar, já que planejavam suas existências a partir dos ganhos e dividendos conquistados com seus trabalhos. É essa mesma classe média que pode explicar o silêncio diante de algumas atrocidades que a imprensa vem noticiando a partir do solo russo. Durante esse período, os países centrais da Europa mantinham suas colônias na África explorando toda a riqueza mineral que esses países possuíam. Para conseguir a anuência desses povos, sinalizaram com a dupla cidadania, de modo que um argelino nascido na Argélia durante a ocupação francesa passaria ser considerado um franco-argelino, o ex-jogador de futebol Zinedine Zidane, é um exemplo desse fenômeno. Mas, como diz o velho jargão, “você pode manter um povo alienado por um tempo, mas não para sempre”, vieram as guerras e sedições em prol da independência dessas paragens. Com a vitória dos nativos, os ocupantes tiveram que sair, entretanto, não retiraram a dupla-cidadania dos moradores de suas ex-colônias. Esses mesmos cidadãos, diante do problema da mão-de-obra e trabalho em suas cercanias, portadores dessas duplas nacionalidades, começam a transitar pela Europa em busca dos minguados postos de trabalhos que ainda não foram tragados pelo avanço do capitalismo através das constantes transformações no setor fabril em virtude das mudanças provocadas pelo avanço tecnológico.  Transnacionalização dos capitais e de pessoas estão na origem do caos que muitos dizem estarmos vivenciando nessas primeiras décadas do século XXI. Lógico que a explicação acima é uma forma bem sintética que encontrei para dar encaminhamento a algumas questões que pretendo dividir com os meus leitores semanais aqui das páginas do INTERIOR e em meu site www.criticapontual.com.br.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gildassociais@bol.com.br ;gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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