Tempo, utopia e um pouco de arte

Gilberto Barbosa dos Santos

 

“Na era moderna, uma das mais ativas metáforas para o projeto espiritual é a Arte. As atividades do pintor, do músico, do poeta, do bailarino, uma vez reunidas sob essa designação genérica (um gesto relativamente recente), mostraram-se um lugar particularmente propício à representação dos dramas formais que assediam a consciência, tornando-se cada obra de arte individual um paradigma mais ou menos perspicaz para a regulamentação ou a reconciliação de tais contradições” [Susan Sontag. A estética do silêncio. In. A vontade radical. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 10]. Partindo dessa premissa apresentada pela escritora e, escudado pelo quadro do pintor surrealista espanhol, Salvador Dalí (1904-1989), conhecido como “As horas moles”, pretendo analisar não só o tempo, mas também as construções utópicas de um período crítico da vida humana em sociedade. Para quem não conhece, nessa obra de arte, o espanhol apresenta ao seu público um retrato em que os relógios aparecem derretendo, enfatizando que o homem, por mais que tente, não consegue se apropriar do tempo e talvez daí o desejo atroz de consumir tudo ao mesmo tempo, ou, quem sabe, sonhando em ser como Midas, transformar em ouro tudo o que toca.

Se o meu escopo é entender a construção social a partir de uma unidade inexistente, como é o tempo, me parece salutar enveredar por esse universo. Como um ente invisível, ele só se torna possível através da matemática e sua perfeição filosófica. Um exemplo claro do que externo aqui é a unidade que os homens chamam de ano: 365 dias e seis horas em construção terrena para entender o movimento da Terra em torno do Sol, corpo celeste de maior massa que atrai as unidades menores através de uma órbita exata. Interessante notar que o nosso planeta gasta 24 horas para dar uma volta em torno do seu próprio eixo. É preciso esclarecer que essas grandezas são invenções humanas para medir o viver e, por assim dizer, dar sentido à própria existência construindo unidades como passado, presente e futuro, sendo que apenas o segundo existe, ou seja, o aqui e o agora e os outros dois são referenciais que podem nos ser apresentados de diversas formas, como fez o pintor surrealista espanhol.

Se não existe o tempo, então o que há, pode estar-se perguntando o meu leitor. De chofre responderia que uma coesão perfeita elaborada no mundo das ideias, conforme nos diz Platão, portanto, perfeita, já que nos assegura vivências e a possibilidade de outras construções. Resta saber quais edificações o indivíduo – que quer dizer uno, portanto, indivisível que se torna duplo quando se coletiviza para dar sentido aos signos que constrói diariamente para dar objetividade a vida corpórea – utiliza para ser. Neste sentido, me parece que um passeio através das pessoas gramaticais pode ser interessante, seguindo o exemplo dado pelo semiólogo italiano Umberto Eco (1932-2016) em seu livro Seis passeios pelos bosques da ficção [São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 9], segundo o qual “qualquer narrativa de ficção é necessária e fatalmente rápida porque, ao construir um mundo que incluiu uma multiplicidade de acontecimentos e de personagens não pode dizer tudo sobre esse mundo”. Neste sentido, qual pessoa gramatical se existem seis delas? Parece-me interessante começar pela primeira, portanto, um singular “eu” que pode ser subsumido num plural “nós”. Entretanto, antes de passarmos da primeira instância do uno e buscar apoio no coletivo, creio que seja interessante chamar a atenção para este “eu” e a construção do mundo que se pensa ser possível, mesmo que seja no campo da utopia, conforme diz Thomas Morus (1478-1535) no clássico Utopia.

Se a matemática pode expressar, por intermédio dos números e da Filosofia, a perfeição tão sonhada pelo homem, inclusive elaborando a dimensão temporal sem que esta, de fato, exista fora do orbe, acredito que o homem, a partir de sua unidade microssociológica, também tenha condições de, em sua interação com os demais pares, edificar um universo que, se não prefeito, mas que se pode chegar bem próximo disso, digamos 95% e a partir deste ponto soerguer, por intermédio de uma ética racional, um mundo mais solidário. Se não faz, resta saber, por quê? Veja bem, meus caros leitores, o ponto de vista adotado aqui não é o da sociedade, ou melhor, do indivíduo coletivizado, mas do ser individualizado e não individualista – esse sim responsável pelas piores tragédias que a humanidade vem construindo nos últimos séculos, somando-se a isso o escravismo. Entendo que seja significativo perguntar a partir de que momento o homem pode iniciar uma nova jornada no orbe, objetivando uma transformação radical no meio que o forma e o ressignifica diariamente?

Assim como o tempo, o signo também é uma elaboração humana por intermédio da linguagem e objetiva responder à pergunta sobre os motivos do ser que se quer humano estar aqui no mundo.  Nesta chave, os símbolos podem ser interpretados como unidades arbitrarias por ser externas ao homem, como dizia Emile Durkheim (1858-1917) em vários de seus escritos sociológicos. Mas para que tudo isso, perguntar-se-ão meus leitores, caso eu ainda os tenha. Para tentar entender não o passado, já dado e registrado na História, mas como este pretérito inexistente pode servir para pensarmos um amanhã diferente do presente caótico, violento, virulento e individualista. Neste sentido, me parece ser significativo olhar para os desenhos que o homem pré-histórico fazia nas paredes das cavernas objetivando, não dominar o devir, mas sabendo que no dia seguinte, caso ele existisse, a fome visitaria o seu estômago. Naquele momento o sujeito começa a estudar o movimento do animal a ser abatido para aplacar o vácuo estomacal de um vir a ser que poderia ocorrer ou não, mas na dúvida, melhor garantir a alimentação. Todavia, aquele homem primitivo não existe mais, então, creio que seja desnecessário comportamentos semelhantes àqueles do ontem.

Desta forma, concordo com Susan Sontag (1933-2004) quando ela afirma que “toda época deve reinventar seu próprio projeto de ‘espiritualidade’. (Espiritualidade = planos, terminologias, noções de conduta voltados para a resolução das penosas contradições estruturais inerentes à situação do homem, para a perfeição da consciência humana e a transcendência)” [A estética do silêncio. In. A vontade radical. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 10]. Posto isto, há uma interpelação que considero significativa: seria esse tempo o de pensamentos medievais que tanto dissabores trouxeram à humanidade? Na minha concepção, como não existem mais espaços para o homem pré-histórico, também não tem como atitudes medievalistas quererem construir moradias neste Terceiro Milênio. Neste sentido, me parece que, assim como o tempo é unidade inexistente, porém, nos dá sentido, é possível construirmos uma utopia, não a partir de um “nós”, mas de um “eu” que reflete no colegiado, permitindo sonhar com um devir diferente do presente e de um pretérito de muita dor e retrocesso, como por exemplo, foi a chamada Idade Média. A tecnologia precisa ser utilizada como ferramenta que possibilita a construção de um amanhã mais igualitário e não um agora de guerras, ganâncias movidas por orgulhos caquéticos. Na ausência de indivíduos que queiram de fato um mundo assim, a arte nos possibilita essas edificações por meio das mais diversas poéticas.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

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