Sutilezas de uma sociedade agonizante

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Começo minhas abordagens a partir de dois referenciais: o primeiro é um pequeno fragmento da entrevista que o escritor brasileiro Raduan Nassar – autor dos romances Lavoura Arcaica; Um copo de cólera e Menina a caminho – concedeu à Folha de S. Paulo e publicada no último domingo, 21 de fevereiro. O segundo marco consta no livro do escritor checo Milan Kundera: O livro do riso e do esquecimento. Do primeiro destaco a seguinte narrativa: “Talvez a maior lição [da pandemia] seja reafirmar que precisamos viver, e conviver, de modo comunitário e solidário, e que o papel do Estado fica fortalecido como fator de proteção, sobretudo para os marginalizados”. O interessante a ser notado neste trecho é que, de uma certa forma, o entrevistado propõe que a sociedade, de alguma maneira, desenvolva uma certa ética racional de solidariedade. Mas como isso deve acontecer? A partir do Estado ou das próprias pessoas? Tendo essas interpelações como premissas é que indico o segundo fragmento advindo do autor de A insustentável leveza do ser. “A constituição, é verdade, garante a liberdade de palavra, mas as leis punem tudo que pode ser qualificado de atentado à segurança do Estado. Nunca se sabe quando o Estado vai começar a gritar que essa palavra ou aquela atentam contra a sua segurança” [Cia das Letras, 2017, p. 10].

Posto isto, acrescento uma nova questão: será mesmo que o Estado – esse grande ente invisível que ganha vida na medida em que regulamenta a vida em sociedade, por intermédio das leis construídas pelos legislativos – tem condição de normatizar entre os indivíduos sociais uma prática racional de solidariedade? Creio que se faz necessário, antes de mais nada, compreender como cada um, e posteriormente grupos de pessoas, pensa o Estado. Podemos, eu e você, meu caro leitor, pensá-lo a partir dos filósofos chamados jusnaturalistas: John Locke (1632-1704); Thomas Hobbes (1588-1679) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), bem como acrescentar algumas reflexões propostas por Thomas Morus (1478-1535); Tommaso Campanella (1568-1639) e Erasmo de Roterdã (1466-1536). Morus é autor do clássico Utopia; Campanella escreveu A cidade do Sol e o terceiro nos legou o brilhante ensaio O elogio da loucura. Parece-me que antes de adentrarmos, mesmo que de forma sucinta em cada um desses autores, é preciso tratar, primeiro, como cada um dos sujeitos sociais do presente pensa o papel do Estado na sociedade e em suas vidas e de como ele funcionaria no Brasil.

Claro que não se pode pensar o hoje sem desconsiderar o ontem, portanto, vislumbrar o amanhã significa equacionar as mazelas que o pretérito construiu desde a gênese brasileira, provocando o atual quadro social. Neste sentido, quando vos pergunto, meus caros leitores, qual Estado vocês idealizam, penso que o primeiro passo é entender o que existe, principalmente no Brasil. Todos sabem, pois se propala aqui e ali, discursam em tempos eleitorais que é preciso reduzir o tamanho do Leviatã, entretanto, depois que se ajustou ao poder, tudo é motivo para postergar implantações que objetivam a concretização de determinadas propostas e promessas, a exemplo do que acontecia com o titã Prometeu que tinha o fígado devorado durante 12 horas para na outra parte do dia, o órgão ser regenerado. Há exemplos claros aqui e alhures do que estou indicando a vocês, entretanto, se eles existem, por que o eleitorado não aprende? Por que, quiçá a verborragia e todo palavrório de que a categoria política é corrupta, o cidadão continua a elegê-la aos borbotões? Entendo que cabe aqui uma outra pergunta extremamente importante para tentar entender o que o brasileiro enseja para si enquanto Estado: em nosso país, Ele surge como vontade da população, de um povo ou de uma corte falida que saiu às pressas pelas portas dos fundos da Europa, acossada pelas tropas napoleônicas? Responder essa interpelação é vital para se pensar como construir a tal ética racional de solidariedade que citei no início desta reflexão. Daí a nomeação das linhas que se seguem, escudadas na tentativa de entender as sutilezas do poder e dos governos e seus governados.

Não é de hoje que aponto a problemática por trás de a democracia brasileira ser delegativa e não participativa. Por estar na primeira condição, o eleitor não delega ao seu representante os interesses de sua coletividade, mas os seus particulares e privados. Daí a questão do “favor” em detrimento da lei; da nomeada e por assim dizer, o eleito saber exatamente quem o escolheu e o que deve fazer durante o seu mandato de quatro anos, seja à frente dos Executivos ou legislativos espalhados pelos mais de cinco mil municípios brasileiros. Sendo assim, quando um sujeito social outorga para si a pecha de liberal, de conservador, de ser de esquerda, de direita, ser socialdemocrata ou até mesmo liberal-socialista, cabe a ele explicar o que significa a ideologia que professa e a levar às urnas a cada quatro anos. Desta forma, é fácil encontrar liberais que detestam concorrência; conservadores que adoram se locupletar com práticas escusas às suas visões de mundo. Também é possível, meus caros leitores, tropeçarmos em transeuntes que se dizem pais exemplares, mas costumam ter um pezinho fora da união conjugal e quando surpreendido, afirmam ter sido um deslize ou que estava alcoolizado. Posso ficar aqui elencando uma série de exemplos cotidiano que não condizem com a roupagem que muitos brasileiros querem apresentar no desfile, ou melhor baile, de uma sociedade hipócrita que não tem brilho, mas apenas a ferrugem carcomida de uma corte incompetente que se faz presente na República desde os primórdios desta.

É! Aquele leitor que me acompanhou até aqui, pode ter compreendido como a tarefa de mudarmos os rumos de uma sociedade não é tão simples assim. Não se pode esperar apenas dos governantes e dos políticos e demais representantes de uma coletividade egoísta que proponham e construam projetos que permitam às pessoas serem mais solidárias. Essa postura não parte das leis, por exemplo, que colocam todos em igualdade, conforme reza a Constituição Federal, mas sim dos sujeitos sociais que aprenderam que a cor da pele, o saldo da conta bancária, o nome, podem dizer muito mais sobre um indivíduo do que seu caráter, seus valores éticos e morais, o que é lamentável. Entendo que neste ponto, é uníssono entre todos os brasileiros que têm consciência, portanto, são cidadãos emancipados, principalmente no que diz respeito às ideias religiosas, políticas e porque não futebolísticas, que não é o Estado e suas instituições que podem alterar o quadro social nacional, mas sim atitudes e não reações, mas ações. Parece-me que enquanto o sujeito-político encarar as urnas como revanche, ressentimento, não haverá soluções para os principais problemas brasileiros e a pandemia provocada pelo Covid-19 evidencia claramente esse meu olhar social sobre o país.

Bom! Acho que tendo isso como premissa, seja possível iniciarmos o nosso percurso pelo campo da Filosofia Política, ou seja, de pensar o Estado em seu nascedouro, isto é, sua gênese. Dito de outra forma, para que ele foi constituído, não a partir de um determinado segmento social, como a Monarquia lisboeta para ser mais objetivo quando a temática for a nação que nos legou significativas personalidades como Machado de Assis (1839-1908) e Lima Barreto (1881-1922). Compreender a presença monárquica na República que surge na madrugada de 15 de novembro de 1889, significa entender porque não se é possível aguardar que esse Estado, carcomido pela plutocracia e regado pelo egoísmo de uma burocracia aristocratizada, propale entre os seus cidadãos o ideal de solidariedade a partir de uma ética de conduta objetivando o bem coletivo e não o particular, o privado, mas o todo expressado na ideia de Nação.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

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