Sobras de um amor … parte II

1

 

Assim que Tarsila sumiu na noite ao deixar o bar em que estava com Amadeu, Márcio e o surpreendente aparecimento de Angélica, deixando tudo bem esclarecido, a arquiteta ficou com o irmão chorando em seu ombro. A amada apareceu e sumiu novamente e sabe-se lá até quando. Contudo, desta vez, todos sabiam onde ela estava e em companhia de quem: Rosângela, a cunhada do enxadrista amalucado pelo desaparecimento da Rainha Preta deixando o Rei Branco nem vestido, nem nu, mas apenas desnorteado.

Quanto a Márcio, entre seguir o que havia programado para si, ou seja, cair de braços abertos no oceano chamado vida e ajudar o amigo a voltar ao mundo real, apesar de ter assentido com a cabeça às suplicas feitas por Amadeu, ficou na dúvida se era realmente uma boa ideia permanecer no meio daquela família conflituosa, cheia de dinheiro, mas também de racismo e sem um mínimo de amor. Tirou os olhos do enxadrista e passou aos de Angélica que estavam mais esverdeados do que das outras vezes.

– Tudo bem Amadeu! Eu vou com vocês, mas somente se me prometer parar com aquelas charadas dos infernos que só me atormentavam. Agora está tudo resolvido.

– Obrigado amigo, mas apenas um pequeno fragmento foi solucionado, há mais coisas entre o seu cérebro e o seu coração do que a quantidade de estrelas no céu. Vai por mim.

Os três se levantaram de seus assentos e foram em direção ao automóvel da arquiteta. Ela estava entre apreensiva e feliz, pois havia conseguido resgatar o irmão, mas por outro lado, como os pais reagiriam? Será que deixariam Amadeu livre para fazer as escolhas que pretendia? E teria que falar a verdade com o pai sobre os motivos que levaram o irmão a sair do ar durante muito tempo. Foi com esse pensamento que a arquiteta, conduzindo o irmão pela mão, fez o trajeto até o seu carro.

Quando chegaram, Márcio foi taxativo: “- Fico por aqui, dona Angélica. Amadeu, amanhã eu passo lá para falar contigo. Irei ao jornal para definir a saída e acertar os últimos detalhes de minha partida”.

– Que mané ficar por aqui! Quem disse que o senhor vai a algum lugar? Eu ainda não disse que o trabalho havia terminado! Lembre-se contratei seus serviços e paguei por eles. Então, venha conosco.

Amadeu já havia entrado no carro e estava no banco de trás, olhando a cena. Os olhos pareciam voltados para as estrelas. Ao virar a face para Márcio lhe disse:  “- Vai ter que jogar muito xadrez e ter colhão para ficar ao lado dessa Rainha mandona. Acho melhor tu entrar. Em casa eu tenho um jogo de xadrez maravilhoso. As peças conversam contigo”.

Angélica tirou a chave do carro da bolsa e a passou para Márcio que fez aquela cara de interrogação, como quem dizia “não vou dirigir esse carro”. “- Toma dirija o carro, enquanto eu vou no banco de trás com Amadeu”, ordenou Angélica.

O repórter nem pensou duas vezes e soltou a resposta: “- Em primeiro lugar não sou seu motorista, chover e o raio que o parta. Em segundo lugar, eu não sei dirigir e mesmo que soubesse não sentaria no banco do motorista nem que todos os seus seguranças me dessem uma surra”, falou de chofre.

Não acreditando no que acabara de ouvir, Angélica já havia perdido a cor esverdeada dos olhos indo desta para o castanho, indicando que Márcio levaria outra pancada bem no meio da canela. “- Que porra de homem é o senhor que não sabe dirigir? Puta que pariu! Que ser de bosta você é, hein Márcio? Agora eu entendo porque a Márcia te colocou chifre na véspera de seu casamento. Deve ter descoberto o saco de estrume que tu és!”

Márcio não disse nada. Apenas olhou e saiu andando em direção à sua casa. Não tinha mais o que fazer ali. “Essa verminose bípede que se vire com seu irmão alucinado. Chega de ser humilhado, ofendido por conta deste trabalho. Já cumpri com a minha parte”, pensando assim, Márcio seguiu em frente.

Ao passar defronte ao bar, Rodolfo percebeu que havia alguma coisa de errado, pois Márcio andava apressado pela calçada, enquanto Angélica o seguia de carro falando com ele. O garçom saiu do estabelecimento, olhou para a arquiteta que lhe devolveu o olhar em forma de ordem. Não deu outra. O até então atendente do Bar da Net pulou na frente de Márcio e dizendo baixinho para ele. “- Quer por favor atender a madame?”. Quando o repórter pensou em responder alguma coisa, percebeu que Rodolfo estava com a mão na cintura.

– O que é isso Rodolfo? Somos amigos! Para que toda essa violência? Bom. Pelo menos agora eu sei que de garçom você não tem nada. É leão de chácara desses ricaços, que compram tudo, até a nossa amizade.

– Deixa de ser idiota. Faça apenas o que ela está pedindo.

– Porra! Essa doida acabou de me ofender, só porque eu não sei dirigir.

– E daí? Foda-se. Ninguém é obrigado a saber tudo. Agora entra no carro e deixe de ser moleque. Vire homem pelo menos uma vez na sua vida e conduza o seu destino.

– E o que eu faço? Não sei dirigir.

– Deixa que eu resolvo isso. Mas é um bunda mole mesmo.

Ambos chegaram ao carro que estava parado próximo a guia distante uns 20 metros.

– Dona Angélica, o Márcio aqui não aprendeu a dirigir, mas se a senhora quiser eu posso guia-lo para vocês? Pode ser?

– Claro que pode Rodolfo, desde que esse senhor aí esteja aqui dentro com a gente.

Não restou outra alternativa ao jornalista. Depois de ser ofendido, humilhado e ainda ameaçado com o que parecia ser uma arma, entrou no carro e fechou a cara. Angélica foi para o banco de trás e abraçou seu irmão que virava a garrafa de uísque na boca, não podendo dizer nada do espetáculo que acabara de assistir. Era como se estivesse desaparecido por completo. Estando ali apenas o corpo inerte.

Rodolfo tentou puxar conversa com Márcio. Ao mesmo tempo em que fazia isso, prestava atenção às ruas: conhecia bem o caminho do bar até o apartamento de Angélica. Tentava sintonizar uma emissora de rádio, mas não havia nada de interessante. Lembrou-se que naquele momento era destinado ao programa “A voz do Brasil”. Desistiu.

O repórter olhou enraivecido para ele e disse, entre os dentes: “-Não converso com “amigo” que ameaça o outro com uma arma de fogo”.

– Deixa de ser tonto, negão! Está com medo da madame? Eu apenas trabalho para a família. Faço segurança e sempre estou por perto. Montei uma equipe de garçons que só atuam onde os bacanas estão. Esse pessoal não confia em ninguém. Então descobri que poderia criar esse serviço. Todos os lugares que a família de dona Angélica frequenta tem funcionário da minha empresa.

Enquanto os dois conversavam em forma de cochicho, Amadeu no banco de trás voltou a vida dizendo coisas que pareciam não ter nada a ver com o mundo concreto: “- Quando te conheci, me embriagava de medo do mundo. Você chegou e o medo foi embora. Agora que se foi, novamente o medo me assombra, desejando retomar o seu lugar no meu coração. Mas eu já não posso mais me embriagar de álcool, mas apenas de poesia. De hoje em diante, minhas garrafas serão os verbos, meus copos os versos e minha alma será sempre a sua rima”. Ao terminar de dizer isso, virou novamente a garrafa na boca e olhando para Angélica com os olhos esgazeados, lhe disse:

– Por que, oh Rainha Branca queres me aprisionar em seu castelo sem vida? Eu não tenho nada e minha Rainha Preta partiu rachando o tabuleiro amoroso que eu montei nós dois vivermos uma eterna partida de xadrez. Por isso, nem adianta, não vou viver como pássaro dentro dessa gaiola de ouro que enferruja na medida em que o amor vai se distanciando. Por favor, rainha dos sapatos de cristal, me leve para casa. Minha analista está me chamando.

Após dizer isso, Amadeu virou na boca o restante do líquido que havia na garrafa e desabou no colo de Angélica, soluçando dormiu, enquanto pequenas gotículas do uísque espalharam pela roupa da arquiteta. Ela ficou olhando para o irmão e cutucou o ombro de Márcio, perguntando-lhe: – “Você entendeu o que ele disse?”

O repórter respondeu jocosamente entre os dentes. O jeito de falar foi em virtude de não ter esquecido das ofensas e da ameaça que Rodolfo lhe fez.

– É claro que entendo, madame, embora eu não tenha um dicionário para decifrar as alucinações do seu irmão e seja um homem de bosta, um nada, ainda sou capaz de compreender muito bem o que ele está dizendo. O Amadeu está…

– Não precisa falar nada. Já disse o suficiente e era o que eu precisava saber.

Márcio ficou possesso. Mas compreendeu que não podia dizer nada naquele momento. O “amigo”, misto de segurança com garçom e pistoleiro estava com uma arma na cintura. Qualquer coisa que falasse, sabia que as consequências mais tarde poderiam ser graves. Mas, tinha certeza, que não dormiria sem devolver os gracejos violentos que recebeu da arquiteta naquela noite. “Que noite dos infernos. E ela está apenas começando”, pensou Márcio soltando todo ar dos pulmões.

Quando chegaram defronte ao prédio em Angélica mora, o repórter desceu, dizendo que voltaria a pé para casa. Rodolfo desceu, entrou num outro carro que vinha logo atrás. Amadeu dormia no banco perto de Angélica que desceu apressada e já segurando no braço do jornalista: “- O senhor fica!”

– Como assim fica? Eu tenho um apartamento que preciso ver como está. Em nosso contrato verbal não tem nada especificando que a senhora detém o meu direito de ir e vir. Se bem que os racistas têm lá o seu gostinho de mando. Adoram uns chicotes e ainda querem colocar nas mãos dos pretos dizendo que eles é que são culpados por serem açoitados sem dó nem piedade.

– Quer calar a boca e entrar aqui nesse carro. Estou cansada deste seu discurso vitimizador. Já disse mil vezes que não sou racista e não ligo para porra de cor de pele e sim pelo caráter das pessoas. Isso eu valorizo e muito.

Enquanto Angélica, ao dizer isso para Márcio, parecia ter mais de dois metros de altura, Rodolfo pedia para o pessoal do carro aguardar o desfecho daquela discussão. Queria ver quem venceria a peleja: Márcio ou a arquiteta. Chegaram a fazer uma aposta dentro do carro.

– Vamos! Entre, preciso de você com meu irmão. Não sei lidar com ele, caso acorde e com certeza acordará. Tenho certeza que não saberei o que fazer. Por favor, entre!

O jornalista não teve outro remédio. Entrou dentro do carro, enquanto no outro veículo os ocupantes davam risadas, chamando Márcio de capacho de grã-fina: “- Mais um bastardo para a coleção dela! Coitado desse mosquito. Caiu na teia de aranha da madame. Só sairá se tiver inteligência para cortar as garras dela. Mas o sentido dele está no meio das pernas dele e dela. Pobre rapaz”, sentenciou Rodolfo dando uma gargalhada enquanto o carro seguia o seu caminho.

Desta vez, Angélica estava ao volante e Márcio no carona que não desfez o mau humor e já foi soltando os verbos: “- Escuta aqui. Até agora fui humilhando, ofendido não sei quantas vezes pela senhora e pela merda do seu dinheiro. Então que fique uma coisa bem clara. Vou ajudá-la a colocar Amadeu dentro do seu apartamento e adeus. Não quero nem ouvir a sua voz que já começa a me dar nos nervos”.

– Senhor Márcio. Depois que meu irmão estiver acomodado, quero que vá tomar no cu. Nunca vi tanta ignorância num homem só. Nem parece que tem cultura, que pode esperar para conversarmos.

O carro parou numa das vagas destinadas ao apartamento da arquiteta. Márcio desceu, acordou Amadeu, dizendo que já estavam em casa. O irmão de Angélica, meio sonolento e bêbado, disse ao jornalista: “- Obrigado amigo por você vir passar a noite comigo. Não aguento mais aquela terapeuta me analisando enquanto devora os insetos. Tenho a sensação de que ela vai devorar meu cérebro também”.

A acompanhante de Márcio olhou para o repórter querendo lhe dizer, em silêncio, que não seria tão fácil ele ir embora aquela noite. “- Acho melhor o senhor baixar esse topete e esse discurso de que vou embora. Meu irmão e eu precisamos muito do seu auxílio”.

Sem dizer uma palavra, o jornalista se dirigiu com o casal de irmãos para o elevador. A arquiteta conduzia Amadeu pela mão, enquanto Márcio fica ao lado, sem lhe tocar, mas dando a segurança emocional que Angélica precisava. Entraram no compartimento e chegaram ao apartamento dela.

– Espere-me aqui. Vou colocar o meu irmão para dormir e depois quero ter uma conversa muito séria com o senhor.

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