Sobras de um amor … parte II

15

 

         Sem acreditar no que estava vendo, Márcio se sentou na cama e rapidamente colocou uma cueca, vestindo rapidamente a calça, ficando de pé. indo em direção à parede para acender a luz. Assim que o ambiente ficou todo iluminado, pode ver a arquiteta sentada no sofá que ele usava no período da tarde para ler e tirar suas cochiladas depois do almoço. Quando se dirigia a Angélica, antes mesmo de falar alguma coisa, já recebeu a ordem.

– Você volta comigo hoje seu fujão! Cagão! Não aceito uma resposta negativa. Como veio para cá só com a roupa do corpo, também pode voltar do mesmo jeito. Deixe essas vestimentas cafonas que adquiriu aqui, bem como essa fama de esquisitão, de ermitão que conquistou em poucos dias.

– Como você entrou aqui? Como me achou nesta cidade no fim do mundo? Já sei! Roberto! Aquele filho de uma puta, traiçoeiro. Antes de romper com ele, vou partir-lhe a cara em dois. Uma para cada face de cafajeste. Judas!

– Não foi Roberto porra nenhuma. Eu bem que tentei arrancar a informação, mas ele não falou nada. Ainda lhe é fiel, porém, ficará desempregado se o moçoilo não voltar comigo. Preciso de você lá comigo e não aqui. O seu trabalho ainda não terminou. Tive que deixar meu irmão sedado no hospital até te encontrar. Olha só fiquei sabendo que a Márcia está te procurando. Se ela te encontrar, você está fodido.

– Se não foi Roberto quem te passou número do telefone? Espere aí. Ontem ele me ligou com uma conversa esquisita, mesmo sabendo que eu não atenderia, mas cai na besteira de lhe falar. Quanto você pagou para ele? Subornou o coitado, colocou nossa amizade em jogo para satisfazer um capricho seu. Desejo de dondoca.

– Quer calar essa boca e me escutar! Seu amigo é corretíssimo contigo. Todavia, você é metódico. Saiu da cidade comprando passagem de ônibus, mas para isso precisou deixar nome e RG que ficam registrados. Acho que essa foi a tarefa mais difícil, mas como tu és previsível, vim nas pegadas que deixastes e adivinha: quem compra camisas iguais, só que de cores diferentes? Quem anda na rua desligado? Quem faz todos os dias a mesma coisa? Uma tarde nessa cidade e eu soube até o seu apelido. Você estava sentado num bar bem perto do hotel. Ficou numa mesa no fundo, bebendo em silêncio e depois se levantou, pagou a conta e passou ao lado de um carro. O que um punhado de notas não fazem é a pergunta certa, senhor Guilherme?

– Quando você e seus familiares me deixarão em paz? Eu já fiz tudo o que você me pediu. Levei seu irmão de volta, encontrei a mulher que deixou ele doidaço. Fui humilhado por todos e quase perdi meu emprego, fiquei sem casa. Era hora deu partir. Então finja que não me encontrou aqui e volte para o seu mundo. Eu não tenho espaço nele. Preciso pensar com calma sobre o que vou fazer de minha existência daqui para frente.

– Já sei! Vai aceitar aquela vagabunda na sua vida novamente. Basta ela te pedir perdão que voltará com ela feito um cachorrinho. Agora que tem R$ 10 mil todos os meses, o Márcio virou o homem da vida dela.

– Pega esse dinheiro e enfia no seu rabo. Não quero porra nenhuma e nem tenho intenção alguma com ela. Nem sabia que aquela doida estava me vigiando.

– Mas como saber querido! Você vive no mundo da lua fazendo todos os dias as mesmas coisas. Não é possível enxergar nada além das próprias roupas ensebadas que usas. Me diga uma coisa: onde você comprou sebo para passar nessas camisas?

– Angélica. Quer me deixar em paz por favor.

– Só quando você voltar comigo e terminar o trabalho que começou. Depois da morte de meu pai, assumi a presidência das empresas e agora estou atolada de trabalho. Tenho que resolver a minha situação com a Rosângela e meu irmão está sedado num hospital. E não posso contar com ninguém. Minha mãe me revelou coisas terríveis sobre o meu pai, as maldades que o meu avô fez com ele. Também lhe revelei que fui estuprada por ele quando estava entrando na puberdade.

– O quê? Aquele maluco te violentou? Por que não me falou. Levaríamos ele à Justiça.

– Para me destruir ainda mais? Por favor, volte comigo! Preciso que me auxilie. Eu te prometo que assim que tudo estiver terminado, poderá voltar à essa biboca. Até compro uma casa aqui para ti. Mas agora te quero do meu lado. Preciso entender algumas coisas.

Enquanto Angélica dizia isso, Márcio olhou dentro dos olhos dela e percebeu que mudavam de cor. “- Minha mãe me disse que você fugiu para não ter que, no futuro, se esconder de outro passado. Você entendeu o que ela me falou? Eu não compreendi nada”

O repórter entendeu certinho o que Eleanora dissera a arquiteta, mas resolveu não aprofundar o assunto, falando apenas que no momento oportuno ela, Angélica, compreenderia, dando o destino certo para as coisas.

– Eu não posso voltar e não quero. Já escolhi onde ficar. Longe de tudo e de todos, sobretudo do seu dinheiro e de seus tentáculos. Cansei de apanhar da vida. Nunca tive grandes aspirações. Não preciso de trono, de palácio. Enfim, para viver poucas coisas me bastam e já compro roupas iguais para não ter o trabalho de decidir o que vestir no dia seguinte.

– Meu querido, sei tudo isso sobre você, inclusive que odeia holofotes. Veio para cá para não ser reconhecido por ninguém. Sua única ligação é com seu amigo Roberto e este faria o contato com a sua mãe. Sabe. Quando usamos as mesmas roupas, fazendo as mesmas coisas, pode ser sinal de insegurança, medo de mudanças, mas elas virão e você terá que se adaptar a elas.

– O que, virou psicóloga agora? Deveria então cuidar da cabeça do seu irmão e da sua, principalmente desse seu espírito mandão. Quer tudo do seu jeito. E caso não ocorra, começa a comprar as pessoas. Já aviso: não estou a venda. Quanto mais não me olharem mim, melhor. Não quero ser nada. Será que você não entende. Eu não tenho preço!

Quase chorando, Angélica lhe diz: “- eu não precifico pessoas que sei que não têm preço. Jamais faria isso contigo. Agora, eu fiz sim uma coisa: te qualifiquei diante dos meus pais, briguei com eles justamente porque tudo o que lhe disse é verdade. Minha mãe achou digna a sua atitude, me falando que espera você perdoá-la um dia. Sabe porque eu atravessei o Estado para te encontrar? Por várias coisas, mas sobretudo pelo seu valor moral, que, com toda a minha fortuna não conseguirei adquirir. Você é um cagão, mas tem um coração e um caráter maravilhoso. E eu não deixo essa cidade sem você. E se isso acontecer, tenha certeza de que Roberto estará na rua amanhã cedo.

Márcio escutou em silêncio e ficou todo bolado quando a arquiteta disse: “- Não vou implorar mais. Estou indo embora e te espero mais uns 30 minutos. Se você não entrar naquele carro, terá que dividir a indenização com Roberto e com a família dele, além de perder o amigo”.

Angélica deixou o quarto, passou pelo recepcionista e pagou as diárias de Márcio. “- Não hospede mais esse homem em seu hotel. Boa noite”.

Quando Rosevaldo se preparava para subir e pedir a Márcio deixar o hotel, o repórter deixou no balcão a chave do quarto, apenas agradecendo a hospitalidade e pegou a carteira para pagar os dias que ficou hospedado, mas o funcionário lhe informou: “-A dona gostosona já pagou a conta. Boa noite. Corra porque se ela for embora, o senhor passará o resto da vida batendo punheta”.

– Eu não te perguntei nada! Então porque não pega essa sua língua de mexeriqueiro e limpe o seu rabo melecado de bosta.

Quando saiu do hotel, Márcio olhou na direção de onde tinha vindo a coisa de duas horas e viu Angélica encostada na porta do carro. “Caralho. Essa mulher não me dá folga. Maldita hora que me sentei naquela mesa com o Amadeu”, pensou o jornalista indo em direção ao automóvel em que a arquiteta estava.

Quando chegou próximo dela, já recebeu logo de cara uma pergunta: “- O que tem dentro dessa bolsa? Se for aquelas roupas ensebadas pode jogá-las fora. Afinal foram elas que me deram a certeza de que eu havia te encontrado”.

– Não patroa! Aqui dentro só tem uns livros e umas cuecas. E um par de sapatos. O resto eu deixei tudo lá no hotel, como se tivesse esquecido porque sai às pressas. Alguém disse ao recepcionista para me despejar, inclusive pagando minhas diárias. O que eu poderia fazer?

– Agora entre e vamos embora!

– Não vou viajar a noite toda com você dirigindo. Prefiro ficar por aqui mesmo. Vou procurar outro hotel e amanhã cedo podemos seguir em frente.

– Está achando que vou deixá-lo aqui sozinho? Nem pensar. Sei que está louco para dar um perdido e ligar ao seu amigo. Esquece, querido. Viajaremos até a cidade onde eu aluguei esse carro. Depois decidimos o que fazer. Podemos até pegar um voo ou não. Mas duma coisa eu tenho certeza: o senhorito não fica aqui nem que o céu vire terra e a terra torne um céu estrelado.

Não havia jeito. Teria mesmo que retornar feito um filho fujão. Ao entrar no carro e se sentar no banco do carona, Angélica lhe dá um aperto na mão em forma de agradecimento e liga o veículo, saindo lentamente. Como pegou um automóvel simples e não pretendia ficar com ele por muito tempo, o carro não tinha equipamento de som.

Márcio ficou em silêncio, sem olhar para ela. Assim que deixaram a cidade para trás, a arquiteta, para quebrar o climão ruim entre eles, disse ao repórter que aquela cara dele era a mais bela. “- Com esse bicão dá até vontade de beijá-lo, mas não dá para furá-lo e transformar a bicota num beijo de língua”, disse isso rindo. O carona tentou se manter sério, mas não conseguiu por muito tempo, dando risadas também, aproveitando a oportunidade para perguntar do irmão dela.

– E o Amadeu, como está?

– Sedado naquele hospital em que meu pai faleceu.

– Por que fizeram isso com ele? Quando acordar vai achar que fui eu quem o levou para lá.

– Não se preocupe. Assim que chegarmos lá, ele deixará o hospital. Quando acordar estará em casa. E é lógico, dirá que a Rainha diaba aqui o trancou num sanatório com a sua ajuda. Mas o meu amigo vai mudar a história. Ele é jornalista e construíra uma narrativa para que meu irmão pense que tudo não passou de um pesadelo.

– Por que você está fazendo tudo isso comigo? Foi por que te mandei tomar no rabo no primeiro dia que nos conhecemos? Você conseguiu virar a minha vida num inferno. Não tenho sossego, nem fugir para reorganizar minha existência eu consigo!

– Meu querido! Não foi só a sua vida que virou do avesso desde aquela manhã de domingo. A minha está sem pé nem cabeça. Do nada, herdei as empresas do meu pai, tenho que administrá-las. Cuidar de minha mãe que me revela coisas diabólicas que fizeram com meu pai. Queria manter o meu casamento com Rosângela em discrição, mas um jornalista abelhudo começa a revirar em tudo para publicar umas crônicas aos finais de semana enfocando a vida dum cara que faz a mesma coisa todos os dias. Não é incrível.

– Não tenho culpa de nada minha cara. Só queria realizar a contento minha profissão.

– Ah! Estava me esquecendo. Quando eu vou atrás desse repórter numa cidade no sertão do estado, descubro que ele está repetindo os atos do meu irmão que era a sua fonte para as matérias. Estranho né? Não posso me esquecer que ele tem o dom de olhar para as mulheres sem mexer um músculo do rosto. Sabe tirar a roupa delas, sem encostar as mãos nelas. E tem mais. Eu nunca vi ninguém combinar as cores laranja do céu com o verde esmeralda do olho de uma arquiteta, mas esse cara esquisitão consegue, porém usa roupas sebentas e velhas, como se tivesse ficado preso ao passado, mas veja bem, estamos em pleno Terceiro Milênio e ele vai para uma cidade que parou no tempo. Por que será, meu caro repórter?

– Está bem! Esse sou eu que olha assustado para o futuro e se sente seguro no passado, mesmo que ele não exista mais. Mas acho que não há mal algum em ser assim.

– Acho que não há, desde que tudo isso não seja uma fuga como a que você empreendeu na manhã em que meu pai faleceu.

– E o que você quer que eu faça? Que eu seja outra pessoa? Não sei ser. Eu só sei ser o que sou, nada mais.

– Aliás, eu não quero que você seja diferente do que você é, mas bem que poderia parar de usar essas roupas cafonas. Tu tens pouco mais de 30 anos e se veste como velho. Cruzes!

Márcio se manteve em silêncio após ouvir as observações de Angélica. Ficou pensando que ela disse tudo sobre ele, mas quando a ela? Como arrumaria tudo? Aproveitou a deixa para dar a sua opinião.

– Eu posso ser tudo isso, mas te confesso, não te entendo. Tem dinheiro que não acaba mais. Linda, bela, maravilhosa. Casada com a pessoa que escolheu. Mora num apartamento de uma última geração. Por que atravessou o estado para ter a companhia dum cara que se veste como velho?

– Acontece meu amigo que, esse velho com pouco mais de 30 anos quando está comigo, me deixa leve, em paz! É como se eu fosse capaz de resolver todos os problemas que me afligem. Esse jornalista de bosta, me olha de um jeito especial, me abraçando sem botar as mãos em meu corpo. Afastando de mim o medo que eu teu dos homens. Tenho um carinho enorme por ele, principalmente por ser todo atrapalhado e ainda não saber o que quer da vida.

Márcio ficou sem voz. Não dizia nada, enquanto a motorista concluía suas observações: “- No almoço que tive com a minha mãe, disse a ela que a mulher que se casar com esse meu amigo será muito feliz. Não porque ele seja perfeito, mas por que sei que se esforçará ao máximo para transmitir muita harmonia ao coração da felizarda. Ele conseguiu resgatar o meu irmão do mundo de sandice em que vivia. É um poeta nato, mas acho que não tem espaço para divulgar o seu talento. Foi só por isso que atravessei o Estado para trazê-lo de volta a um mundo em que ele faz sentido: no meu mundo! Só não sei como isso se processará. Mas se ele quiser, pode me ajudar a encontrar e, eu auxiliá-lo a encontrar a mulher que merece todo o seu carinho.

Quando o repórter pensou em dizer algo, Angélica fez sinal para não falar nada. Apenas buscasse entendê-la. Se colocasse no lugar dela. “- Márcio eu fui violentada pelo meu pai, minha mãe sabia, mas ele ameaçava fazer com ela o que o pai dele fez com a única mulher que ele amou. Você está aí todo pirado porque pegou a cadela de sua ex-noiva num bacanal na véspera do casamento. A sua saída desse inferno me parece fácil, se comparada com a minha situação. Desconfio que Rosângela tem outra na Alemanha. Eu vou lá e você vai comigo. Vamos levar Amadeu para entregar essas cartas pessoalmente para Tarsila.

– Eu não vou a lugar nenhum contigo. Preciso retomar meu trabalho no jornal. E tem mais. Não tenho passaporte e nem penso em tirar.

– Não vou te dizer nada agora, mas quando chegar em casa, vai pedir demissão do jornal e por enquanto assumirá as funções assessor de imprensa nas minhas empresas. Depois tirará o passaporte porque viajará a trabalho pela Europa implantando um sistema de comunicação centralizado aqui no Brasil. E depois vamos à Alemanha. Está definido. Aceita ou não?

Antes que Márcio pudesse responder, ela abriu a porta do carona, dizendo ao acompanhante: “- se não quiser, pode pular. Estou cansado de homem cagão que fica todo dia vendo a ex-noiva sendo enrabada pelo amante enquanto a amante lhe chupa a xereca. Vai! Pula! Não é isso que está fazendo todos os dias, recusando-se a ficar internamente vivo. Não querendo ser feliz? Pule ou siga o protocolo comigo”.

O repórter virou para Angélica com os olhos arregalados, fazendo com a arquiteta gargalhasse. “- Nem quando você me viu pelas transparências do meu camisão, seus olhos ficaram saltados assim como se fossem de lagartixa querendo abocanhar os insetos”.

– Quero meu apartamento de volta. Quero minhas roupas de volta. Exijo minha vida de volta.

– Esqueci de dizer. Nas empresas, os funcionários não podem usar camisas lavadas dentro dos vasos sanitários instalados em quartos de hotéis; sapatos que há séculos pedem graxa. Calças que param em pé por falta de limpeza.

– Mas eu não quero nada disso. Detesto essas coisas todas. Optei pelo jornalismo justamente para não seguir padrão e agora você quer me padronizar? Agora eu entendo porque Amadeu sumiu. Vocês tentaram engessá-lo, como está tentando fazer comigo.  Não quero. Será que pode parar perto da próxima árvore? Vou fazer uma Teresa para fugir da Torre que você quer me aprisionar.

– Não vou parar em lugar nenhum. Estou te oferecendo isso para depois que eu colocar minha vida em ordem e ajudar você aprumar a sua. Agora se não quiser, posso oferecer isso ao Roberto, seu amigo. Mas por favor aceite ir comigo à Alemanha. Sei que a coisa vai ser complicada lá. Diz que sim, diz! Assim que chegarmos, vamos providenciar o seu passaporte.

– Fiquemos assim: vou pensar em tudo o que me disse. Também preciso colocar um ponto final na minha história com Márcia.

– Espero que esse ponto final não seja levando-a para o seu apartamento. Se acontecer isso, eu ingresso com ordem de despejo e vai você e aquela quenga morar em baixo da ponte.

– Quem disse a você que quero ela de volta?

– Não sei. Tu tens um medo danado de mulher. Talvez se ela se rastejar para ficar contigo, acaba aceitando ser o dono dela. Detesto homens assim. Homem não tem que mandar e nem ser mandado.

– Tem apenas que obedecer as ordens da patroa.

– Já mandei você e essa “patroa” tomarem no cu hoje? Bom! Está avisado hein. Não quero lesco-lesco com aquela piranha. Se for conversar com ela que seja em lugares públicos, de preferência no Bar da Net.

– Lógico. Lá você pode controlar.

– Não meu querido. Eu não quero você se enfiando em motéis com aquela puta, só isso! Talvez ela queira apenas te enterrar vivo porque a vida dela virou do avesso. E você é amigo do meu irmão e eu não quero ela perto dele. Está me entendendo?

Quando Angélica terminou de falar. O carro já estava na área urbana da cidade e foram procurar um hotel para pernoitarem. Ao encontrarem um que parecia ser ideal apenas para uma noite, voltaram a discutir, desta vez na frente do recepcionista.

“- Por favor, um quarto para casal”, pediu Angélica.

“- Com duas camas de solteiro”, referendou Márcio.

Angélica disse ao recepcionista para não ouvir o amigo. O jornalista ressaltou que seriam camas de solteiro.

– Caralho! Vocês querem decidir logo essa porra. Se for de casal, está pronto. Se for com duas camas de solteiro tenho também, mas fica defronte ao elevador que faz um barulho danado de noite.

“- Está bem. Pode ser de casal. Se não há outro remédio”, disse Márcio.

Ao entrarem no quarto, a arquiteta olhou tudo nos mínimos detalhes, enquanto Márcio tirava uns livros da bolsa. Provavelmente não se deitaria na cama com ela. Faria dos cobertores um colchão no chão. Mas para isso, ela teria que dormir primeiro. Então os livros seriam ideais para disfarçar, fingindo que estava lendo.

“- Pronto. O quarto está ótimo. Já são quase meia-noite. Você toma banho primeiro ou eu?”, perguntou Angélica. Márcio disse que cederia a vez à amiga. “- Vou ler e antes de dormir tomaria o meu”.

A arquiteta pegou sua bolsa e entrou para o banho, enquanto o repórter ficava ali percorrendo as páginas de um romance em que a enunciação dizia respeito à violência policial contra as populações mais vulneráveis, formadas em sua maioria por descendentes de africanos. Aquela conversa toda com Rosângela naquele café da manhã, havia mexido de alguma forma com ele. Não que se tornasse um ativista. Seu espírito não fora forjado para esse tipo de batalha, mas podia sim, construir ferramentas que pudessem ajudar na mobilização das consciências e. quem sabe, ir mudando certas condições em que o preconceito racial acontece. “Com certeza, se a mãe de Angélica me pediu perdão, deve ter vindo do fundo d’alma, contudo, preciso ver até que ponto aquilo é verídico ou só aconteceu por que estava em comoção pelo problema de saúde do marido”.

Ao sair do banheiro, a arquiteta estava com uma camisola verde água combinando com a calcinha e a cor de seus olhos que pareciam mais esmeraldas do que dantes. Márcio não deixou de notar, mas assim como viu, fez que não enxergou, voltando suas atenções às páginas que estava lendo. Angélica se virou para o lado onde ele estava, o avisando que podia se higienizar. O jornalista fez menção com a cabeça, esperando que a irmã de Amadeu deitasse e se cobrisse.

Já embaixo dos cobertores, ela lhe perguntou o que estava lendo. “- É um romance que aborda a violência policial contra as populações mais carentes do país. Depois daquela conversa com sua esposa, fiquei pensando sobre o que Rosângela me disse. Não me tornarei um revolucionário nessa altura da vida, mas sei que posso contribuir de alguma forma para que a situação minimamente se modifique ao longo da jornada humana. Fiquei também pensando no pedido de perdão que sua mãe me fez. Não sei se foi real ou motivado pela situação em que ela estava. Vamos ver como a coisa se processa”.

Angélica não conseguiu ouvir tudo o que o jornalista lhe disse. Em coisa de segundos, estava dormindo. Márcio se levantou e foi se higienizar. Quando retornou, pegou um dos cobertores e fez uma cama no chão em que dormiu. Não tinha condições de ficar na mesma cama que a arquiteta depois de vê-la com aquela camisola. “Melhor evitar. Não sou de ferro. Não vou passar dos limites. Ela é casada e depois pode se ajustar com a esposa e eu como fico? Com o pau na mão e só com lembranças de uma noite? Já chega a que quero deletar em relação à Márcia”. Com esse pensamento, o jornalista adormeceu.

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