Sobras de um amor – Capítulo 1

1

 

– E aí, meu caro repórter, como foi seu dia na redação?

– Um dos piores! Já tive dias horríveis, mas como o de hoje, acho que não haverá outro! Tudo que tentava dava errado e ainda tinha o editor pedindo matéria para “ontem” fechar tal página, esquentar matéria aqui e ali ou checar fontes e fatos. Enfim, estou farto, preciso de algo não para afogar as mágoas, mas para tirar “o gato” da goela.

É! Pelo visto, o dia daquele velho cão de caça de notícias, tinha sido o pior, desde que teve que cobrir tragédias radioativas em que homens ensandecidos entram em lugares abarrotados de gente e começam a atirar para todos os lados, tentando demonstrar para o mundo a sua ira contra o sistema. Matam, assassinam e depois são assassinados e a vida segue, com a estrutura moendo todos aqueles que não conseguem lidar com o cavalo de troia da tecnologia.

O barman, amigo de outrora, já sabia o que Márcio queria para beber e começar aquela noite que prometia ser longa, já que não conseguia se desligar facilmente da redação do jornal em que prestava serviço pejotizado. Porém, Rodolfo, o garçom lhe informou que a mesa de sempre estava ocupada e o único lugar que existia era com um sujeito que frequentava o bar já há algum tempo e era cativo daquela mesa há anos. Chegava na mesma hora de sempre, pedia a mesma coisa, consumia no mesmo tempo e do mesmo jeito, parecendo um autômato. Não falava com ninguém, só pedia o de sempre, usava a mesma roupa de sempre, parecia que estava vivendo o mesmo dia.

Márcio olhou para todos os lados do estabelecimento, esperando que Rodolfo estivesse errado. Não queria a companhia daquele sujeito esquisito que fazia tudo igual, todos os dias. Aliás, ele já tinha reparado no tal indivíduo, mas acreditava que seria mais uma maluquice desse pessoal que mora em cidade grande. Bom. Não teve jeito, o negócio era sentar ao lado do mentecapto e quem sabe conversar sobre alucinações. “Todo esquisito tem uma história estranha, meio esquizoide, ou uma vida pra lá do avesso. Também se não tiver, vale alguma coisa, quem sabe não aprendo algo”, pensou o jornalista, enfadado com as cobranças da redação.

– Boa noite! Posso me sentar?, pergunta Márcio

O sujeito esquisito só o olha de soslaio e emite um som inaudível e volta-se para o seu copo e a garrafa de uísque, mas fez menção com a cabeça que sim.

– O senhor vem sempre aqui?, indaga o recém-chegado.

– Não! A tua mãe é que está sentada aqui dias a fio pensando em como vai ficar grávida de um filho da puta como tu.

– Credo! O senhor está amargo! Que mau humor!

– É! Hoje não estou pra prosa, quero ver se esse uísque pelo menos agora esteja mais amargo que minhas lembranças, disse Amadeu.

– Se quiser conversar sobre elas, sou todo ouvido. Mas também se não quiser, respeitarei o seu silêncio.

– Obrigado moço do jornal.

Márcio ingeriu sua bebida e viu que a coisa não andava e nem desatava e o sujeito só que virava um copo atrás do outro. Para quebrar o gelo, perguntou o nome de seu parceiro de mesa.

– Qual é o seu nome?

– Pra que quer saber? Vai publicar alguma coisa naquele jornaleco que você trabalha?

– Se a sua história for boa, quem sabe?

– Amadeu … só isso já tá bom… não precisa saber de mais nada… Afinal, para que perder tempo dizendo o resto, não vai mudar nada mesmo!

– Meu nome é Márcio!

– Eu sei! Teve um dia de bosta e pensa que uns tragos vão transformá-lo num príncipe dentro duma noite maravilhosa. Mas vou te contar uma coisa, quanto mais você bebe, mais a coisa te assombra. Por exemplo, toda vez que eu encho o copo, vejo no fundo dele um lingerie azul que me persegue há anos. Ás vezes, ele muda de cor, mas o corpo que ele cobre continua o mesmo. Porra! Não dá!!! Fico ensandecido, pois a mulher não é fantasia de minha cabeça ou fruto do entorpecimento provocado pelo álcool.

– Quer falar sobre isso, seu Amadeu?

– Se o moço da escrita tiver tempo, até posso, quem sabe a dona dos lingeries desaparece.

O repórter fez um gesto de assentimento, talvez pudesse tirar daquela narrativa uma matéria, mesmo que fria para publicar naqueles dias modorrentos da redação, em que nada acontece e o fato mais inusitado é a polícia prender menores acusados de tráfico de drogas. Márcio ficou atento ao que iria ouvir e observando as transformações que ocorriam no rosto do parceiro de copo que não parecia ter mais de 40 anos.

– Tudo começou quando essa dona entrou em minha vida. Eu tinha uma vida tranquila. Trabalhava, voltava para o meu quartinho, lia algumas coisas, via televisão, tomava minhas cervejas em dias de jogo. Um belo dia, estou sentado num caixote repondo mercadorias na prateleira do supermercado. O emprego era bom, via gente diferente todos os dias, ganhava o suficiente para me manter, ir ao campo ver uma partida de futebol, parar aqui beber um uísque, mesmo do mais vagabundo, mas era muito bom, destratava a língua, mesmo vendo gente todo dia, pouco falava com essas pessoas.

Márcio ficou atento: as reações do rosto e o movimento das mãos quando a pessoa está falando são mais importantes do que o conteúdo da conversa, pois o mesmo pode ser uma história para esconder outra coisa. O jornalista olhou para as mãos do seu interlocutor e viu que ele não tinha calos, então o trabalho era uma invenção. Provavelmente ele fazia outra coisa e queria esconder sua verdadeira ocupação. Também falava com desenvoltura, evidenciando que tinha certo conhecimento. Mas como o faro de repórter é importante, resolveu não cortar a fala do novo “amigo”.

– Estava lá viajando entre uma mercadoria e outra quando ela, a Y, chegou e me perguntou se não havia determinado produto. Eu disse que tinha sim, mas estava na lista para eu colocar na prateleira, porém não havia dado tempo. Então me dispus a buscá-la no depósito. Perguntei quantos ela queria. Trouxe o produto e quando o entreguei, de leve, sem querer acabei tocando em um dos seus seios. Foi como se eu tivesse recebido uma descarga elétrica. Eu firmei bem as minhas vistas dentro dos olhos dela para lhe pedir as minhas profundas desculpas, mas algo naquele olhar me deixou com a sensação que ela tinha gostado daquele leve toque naquela parte protegida pelo sutiã.

– E aí, você não a viu mais?

Amadeu tomou um gole grande, pediu outra garrafa e disse: “- pior que vi e muitas outras vezes e cheguei a surpreendê-la dentro do supermercado me olhando de soslaio. Não foi nenhuma, nem duas, mas várias. Parecia que ela sempre tinha alguma mercadoria para pegar no corredor em que eu estava fazendo reposição”.

– E você, o que fazia?

– No começo fiquei envergonhado. Nunca qualquer mulher tinha me olhado daquele jeito. Então, eu tinha que saber mais sobre ela. Comecei a reparar que a moça passava no mesmo caixa e conversava descontraidamente com aquela funcionária. O único jeito era me aproximar e saber mais sobre a dama misteriosa dos olhares de soslaios que me encantaram tanto. Eles tinham cores indecifráveis, por isso enigmáticos!

Márcio pediu licença para ir ao banheiro. Quando voltou Amadeu já tinha ido embora. O repórter, depois de uma procurada pelo ambiente, perguntou ao amigo garçom onde estava o parceiro de copo. Rodolfo respondeu que havia dado a hora dele. Era sempre assim, dava o horário, ele parava o que estava fazendo e ia embora. Se estivesse no meio duma garrafa, coisa corriqueira, pegava o litro e partia. No dia seguinte voltava no mesmo horário e devolvia a garrafa.

– Volte amanhã. Ele vem no mesmo horário, afirmou o barman.

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