Sobras de um amor…

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– Vamos. Eu te ajudo a subir e verificaremos esse corte com mais calma, lhe disse Angélica.

Márcio, olhando espantado para a arquiteta, fez um gesto negativo e Angélica não aceitou o não como resposta e já sentenciando, pediu a chave do prédio e do apartamento do jornalista.

– Se entrar sozinho com essa mão sangrando vai sujar toda a entrada, as portas, fechaduras, elevador e sabe-se lá mais o quê. Portanto, você não tem querer ou não. Diga-me onde estão as chaves.

Márcio tentou colocar a mão no bolso da calça onde estava a chave, mas a irmã de Amadeu foi mais rápida. Enfiando a sua mão para achar a chave, contudo, além do objeto tocou outras coisas, porém optou pelo silêncio e olhar para Márcio que estava se sentindo uma verdadeira brasa. O jornalista também sentiu quando os dedos da arquiteta tocaram o tecido de sua cueca e a reação foi automática, deixando-o apreensivo e sem graça.

Sem mais delongas, a arquiteta fechou seu carro, ativando o alarme. Ambos se dirigiram à entrada do prédio. Ela com a chave na mão e ele tentando controlar a ereção. Um sacrífico que parecia não ter fim. Ela abriu a porta, foram para o elevador. Outro martírio para o repórter. Ficar com ela sozinho dentro daquele compartimento, sentindo a fragrância que emanava do corpo dela. O elevador parou no andar em que ficava o apartamento de Amadeu. Os dois saíram. Ela fez questão de deixar o ambiente primeiro.

Márcio não sabia se estava suando frio, calor, se mudava de cor, do amarelo para o verde e deste ao vermelho, parecido com jogos de luzes das danceterias. Ele só sabe que consumiu inteiramente Angélica com um olhar de pura lasciva. Por estar há alguns passos à frente, Angélica não viu, mas quem disse que a moça não desconfiava das intenções do acompanhante. O que ela tocou quando colocou a mão no bolso dele dizia quais eram as suas reais intenções dele.

– Pronto! Chegamos! Pode deixar que daqui para frente é comigo, dona Angélica. Já fez muito me trazendo até aqui. O resto eu mesmo tomo providências.

– Nada disso! Quero ver como está esse corte. Afinal, fui eu quem o provocou. Então, só irei embora quando ver que está tudo bem mesmo. Eu tenho aqui na bolsa lenços umedecidos e antibacterianos. Ou está com vergonha de me mostrar o seu apartamento? Lembre-se que eu já estive aqui e nada me surpreende, principalmente sabendo que o senhor mora sozinho!

Márcio não sabia se recusava ou se aceitava e aquela ereção querendo mandar em suas ações, fazendo-o viajar, criando situações em que se o mundo acabasse naquele instante, estaria bem amparado nos braços de Angélica.

– Não fique preocupado. Não vou atacar o senhor. Lembre-se sou casada e não há nada no mundo que me faça separar dela, nem um pau duro que se pensa enquanto um pinto de mel.

Com aquela observação, Angélica jogou um balde de água com pedra de gelo em Márcio que voltou à realidade e concordou em que a arquiteta o ajudasse com o ferimento.

– Onde fica o banheiro, senhor Márcio? Vamos lá para eu cuidar desse corte.

Todo envergonhado, Márcio disse que ficava dentro do quarto, mas tinha um perto da sala, porém quase não usava e não tinha nada ali que pudesse ajudar a fazer curativo. Sem que ele pudesse dizer mais nada, Angélica mandou que fosse ao lavabo do corredor, enquanto ela pegava alguma coisa no banheiro do quarto. Márcio fez menção de não deixá-la entrar em seu quarto, mas dizer “não” foi a mesma coisa que dizer “sim”.

Quando voltou com algumas coisas para fazer o curativo – não havia muita coisa, mas que daria para manter o corte protegido até que cicatrizasse -, Angélica foi enfática.

– Que nojento que está aquele seu banheiro. Cheirando a vômito, misturado com perfume barato e roupa suja. O senhor não se higieniza não? Cruzes. Até parece com meu irmão. Sem mulher vocês viram porcos e ainda se acham isso e aquilo. Não conseguem se quer manter uma casa em ordem. Espero nunca mais ter que vir aqui!

– Quem se ofereceu para subir foi a senhora. Eu não pedi nada. Além do mais a casa é minha e fica do jeito que eu quero. Por isso não convido ninguém para vir aqui e a senhora fique sabendo que não é bem-vinda! A mesma porta que usou para entrar, por favor utilize-a para sair!

Dizendo isso, Márcio indicou a porta, mas o lenço que usava para proteger o ferimento caiu e os dois entenderam porque ela havia subido até ali. Ambos olharam para o chão e para o ferimento na mão de Márcio.

– Vamos lá cuidar disso. Não sei porque me preocupo com você! Deve ser por ser a minha última esperança de resgatar meu irmão daquele mundo de sandices em que vive. O senhor falou alguma coisa em jogo de xadrez. O senhor já viu ele jogando alguma vez? Ou apenas movendo as peças mentalmente?

Angélica fazia essas perguntas empurrando Márcio para o banheiro. O jornalista afirmou que certa vez enquanto bebia um uísque com ele, Amadeu chegou a dizer em forma de sussurros. “Teu peão acaba de chegar, minha adorável Rainha. Será que ele não merece um beijo? E olha que derrubar teu Rei não foi fácil”.

– Quando perguntei sobre o que falava, teu irmão me disse que estava citando à capela a peça Édipo Rei e que estava procurando a sua Jocasta, antes que lhe arrancassem os olhos por conta de um amor proibido. “Imagine o que aconteceria se um Rei branco apresentasse como futura Rainha uma peça preta”. Ao terminar de me dizer isso, encheu o copo, mandou tudo de uma vez goela abaixo. Levantou-se pegou a garrafa e saiu apressado do bar, dizendo que ia socorrer sua Rainha das garras dos peões brancos que estavam a serviço dos facínoras que gostavam de roubar corações e colocarem tijolos no lugar. Fiquei sem entender nada, mas vindo dele, achei que se tratava de mais uma alucinação. Você sabe por que ele leva a garrafa de uísque embora?

– Essa é uma longa história. Aquele uísque eu compro numa importadora e ele gosta muito. Então mando entregar no bar. Se o senhor recordar de suas idas lá, verificará que ninguém bebia daquela marca. Eu preciso controlar a quantidade que ele bebe, para não passar do limite. Amadeu pensa que o dono do bar adquire só porque ele gosta, mas meu irmão não pode nem sonhar que somos nós quem deixamos as caixas fechadas para ele.

– Que vida de merda essa a de vocês. Eu pensei que a minha era um cocô estragado, mas vejo que estou no purgatório enquanto vocês pintam um paraíso, mas vivem num inferno do caralho! Que existência lixenta! Quero distancias de vocês.

Angélica escutou tudo em silêncio, olhando Márcio sem aquela altivez toda. Talvez por entender o que ele estava dizendo. O repórter pelo menos conseguia se esconder, sem que ninguém soubesse a dor que lhe corroía a alma. Agora, ela tinha tudo, mas não podia nem sequer viver o amor que nutria pela esposa e ainda um irmão desparafusado andando pelas ruas da cidade e ela tendo que ir atrás cobrindo tudo para preservar a honra da família. A arquiteta foi despertada desses pensamentos com o som do seu celular. Foi quando se deu conta que estava segurando a mão de Márcio, mesmo já tendo terminado de fazer o curativo.

– Acho que isso vai ser o suficiente e não atrapalhará o senhor a fazer o relatório e me mandar até amanhã cedo. Preciso enviá-lo ao meu pai que está esperando por isso. Ele quer conseguir um jeito de trazer Amadeu de volta.

Ao dizer isso, Angélica soltou a mão de Márcio e viu o recado. Era Rosângela querendo a sua presença. Tinham que conversar sobre a tal viagem para Alemanha. A arquiteta já havia decidido não ir. Não deixaria o irmão naquelas condições, só porque a esposa queria. “Ela que entendesse. Se não, tudo bem também. Pode ir sozinha”, pensou a esposa da antropóloga.

– Boa noite senhor Márcio. Fico no aguardo do material e veja se arruma alguém para dar um jeito nessa casa e naquele banheiro. Parece estar tudo podre. E pare de beber, se não o álcool vai te consumir e o passado também. Não se pode mudar algo que não existe mais, por isso não podemos deixar que os fantasmas consumam o nosso futuro.

– Boa noite, dona Angélica. Vou pensar em tudo o que me disse. E pode ter certeza de que o relatório está em suas mãos amanhã logo cedinho.

Depois que a arquiteta deixou o apartamento, Márcio lembrou-se que não estava com o livro. Tinha esquecido novamente no carro. Recordou-se que, ao entrar no automóvel, o colocou sobre o painel do lado do carona. Ao dar uma olhada pelo banheiro, viu também a caixa de lenços umedecidos e antibacteriano que Angélica havia tirado da bolsa para auxiliá-lo com o ferimento. Como num raio, o pensamento do repórter correu ao encontro do ser que forma Angélica.

Nessa viagem abstrata, o jornalista viu além da mandona, da autoritária que costumava fazer e desafazer. Enxergou uma mulher frágil, a exemplo do irmão. Tinham tudo, mas ao mesmo tempo não possuíam nada, pois sempre teriam que usar a força e a violência simbólica para se fazerem notar. Seriam mais temidos do que amados. Tristeza. Ao mesmo tempo em que a via, também vislumbrou aquela noite em que flagrou Maria Helena se contorcendo no meio da amante e do amante. Tentou de todas as formas, afastar da cabeça aquelas imagens, mas foi em vão.

Para tentar fugir do passado, foi tomar uma ducha. Ao entrar no banheiro, sentiu o quanto o local estava precisando duma faxina urgente. “Realmente, a situação é crítica”, pensou ele. Havia restos de vômito grudado nas paredes atrás do vaso sanitário, no vidro do box. Enfim, um local deplorável. Decidiu que no dia seguinte, procuraria uma faxineira para colocar ordem nas coisas. Agora, quanto à sua cabeça e o passado, achava difícil eliminá-lo.

Enquanto se banhava ficou pensando em Angélica, não só a que habitava o corpo, mas também como o corpo em si e não conseguiu controlar a ereção. De fato, a arquiteta mexia com suas cabeças, com o coração, com o seu ser em si e agora mais ainda quando lhe jogou na cara um ontem que sempre tentou enterrar, feito gato quando cheira os excrementos e depois joga terra em cima. Alguém havia desenterrado a merda do seu passado.

Terminado o banho, inclusive com a tentativa de diminuir o desejo, Márcio ficou tentando definir a arquiteta para além do físico, contudo, ficou ali olhando-a como se estivesse se materializando, hora com o corpo, hora só deixando o lingerie aparecer mudando de cores a cada movimento que a arquiteta fazia com o corpo. Apostava mentalmente que ela tinha, de altura, aproximadamente 1,72, mas que parecia ser mais por conta dos saltos que usavam durante o tempo em que esteve com ele nas últimas 72h. Lábios belíssimos, mas que não deveria ser de branco, mas caso o fosse, com certeza, seria a mistura de ciganos com mouros. Os cabelos não tinham uma cor definida, pois pareciam ser louros com tons castanhos na base. Uma coisa que ele notou foi que os olhos mudavam de cor de acordo com o humor dela. Enquanto estava no banheiro cuidando do seu ferimento, tinham cores esverdeados, mas quando o agredia verbalmente ficavam acastanhados. “Estranho isso!”, falou baixinho para si mesmo.

Secou-se, se vestiu em seguida, sentou diante do computador e escreveu tudo o que sabia sobre as doideiras do Amadeu, falando de uma tal Tarsila, depois dizia sobre um tal de Abaporu e sonhos com lingeries que o assombravam, perseguiam querendo matá-lo enforcado. Nesse ponto, Márcio lembrou das próprias assombrações e entendeu por que o rosto da mulher não aparecia e às vezes surgia como homem e depois se transformava em mulher. Terminou o seu relato falando da última conversa que teve com Amadeu e a tal Rainha que havia tombado o seu Rei. Enviou o e-mail com cópia para si, mas notou algo de estranho quando digitou o endereço de Angélica. Mas deixou para lá, acreditando ser algo sem importância.

Assim que enviou o texto. Olhou para o relógio, sentindo o estômago roncar. Pediu as mesmas omeletes solicitadas dias antes e igual quantidade de cervejas. Enquanto aguardava o pedido chegar, ficou pensando na música que ouviu no carro de Angélica. Lembrou-se de outra que mexia muito com ele. Esforçou-se para se lembrar da letra e da música: Fogueira em alto mar. Usou o aplicativo de música e ficou ouvindo, pensando na irmã de Amadeu e nas mil possibilidades de relacionamento, mas todas elas paravam na aliança e na esposa da arquiteta. “Melhor nem seguir com esse pensamento. Vai que a coisa desce para o coração e aí ninguém mais segura esse trem chamado amor que costuma descarrilhar muitas locomotivas apinhadas de vidas e pessoas”.

Enquanto abria a última lata de cerveja, Márcio escutou o barulho de mensagem chegando em seu celular. Como não tinha vínculo com a redação do jornal, pelo menos até aquela reportagem maluca terminar, não imaginou quem poderia ser. Exceto Amadeu, contudo, o amalucado ermitão não tinha por hábito entrar em contato com ele àquela hora da noite. “Aliás, desde quando o irmão de Angélica tinha rotina coerente?”, se perguntou o jornalista.  Ao verificar de quem era o remetente, o repórter levou um susto: “Angélica! O que essa mulher quer? Acabou de sair daqui, já mandei o material que me pediu!”, Márcio disse para si mesmo.

Como sempre, textos na ordem imperativa: faça isso, faça aquilo! “Venha tomar café conosco amanhã. Às 8h em ponto e não aceito desculpas. Quero conversar com o senhor sobre trechos do que me enviara. Abraços! Angélica. PS: Estou aguardando o seu SIM”. Márcio pensou em declinar do convite, mas como fazer isso, depois dela ter praticamente cuidado do ferimento dele. Respondeu a mensagem confirmando a presença. Assim que enviou o conteúdo para Angélica, o repórter recebeu outra mensagem. Pensou que você a arquiteta, porém, era de um número desconhecido: “Senhor Márcio preciso lhe falar com urgência. Coisas do Amadeu. Estou lhe esperando amanhã às 19h na praça do bilhete. Venha só”. Onde deveria vir o nome da pessoa, havia apenas um T.

            Ao contrário de Angélica, esse remetente não queria um retorno, pois não permitiu que Márcio enviasse a resposta. Márcio bem que tentou, mas a informação era de que o número não existia e caso desejasse alguma coisa ou informação deveria entrar em contato com a empresa de telefonia móvel. Rapidamente, o repórter compreendeu de quem se tratava. Melhor não falar nada com ninguém, principalmente com a irmã de Amadeu. Era capaz dela colocar alguém para segui-lo e pegar a pessoa a força.

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