Sobras de um amor…

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“- Achei que o senhor não vinha mais! Estava para ir embora. Minha esposa está me esperando!”, disparou Angélica, antes mesmo de Márcio dizer boa noite e se sentar.

– Boa noite! O que a senhora deseja? Para quem afirmou de pé junto que jamais voltaria a me ver, ou falar comigo pessoalmente, a madame mudou de opinião rapidinho. Posso saber o motivo dessa alteração repentina?

– Bom! Para não perder meu tempo, vou direto ao assunto. O senhor deixou ou esqueceu esse livro dentro do meu carro. Se a minha esposa achar, teria que explicar o inexplicável, porque não consumo esse tipo de literatura. Não me diz nada, portanto, ela jamais me veria lendo coisas desse tipo.

– Pronto! Está entregue. Agora a senhorita pode voltar para os braços de sua amada esposa!. Como já lhe disse, sua vida não me interessa e estou me lixando se é casada com homem, com mulher ou quem quer que seja. Boa noite!

Quando Márcio pegou o livro, fazendo menção de se levantar, Angélica pediu para que ficasse, lhe tocando o braço. O repórter lançou um olhar para a mão da arquiteta e de lá direto para os olhos dela. Angélica pode ver o mesmo brilho daquela noite no apartamento dele. Foi como se ela ficasse completamente nua diante dele. A irmã de Amadeu retirou sua mão rapidamente, mas dando tempo de o jornalista prestar atenção no contraste de cores entre as duas dermes.

– Tudo bem! Diga o que deseja! Preciso voltar para casa. Tenho que trabalhar. Afinal alguém me pagou o aluguel e se eu não cumprir com o acordado, é capaz deu acordar amanhã no meio da rua, tendo uma ponte como teto.

– Nossa senhora! O senhor faz uma péssima ideia de quem eu realmente sou.

– Eu não faço juízo algum sobre quem eu não conheço. Apenas avalio o que elas me passam durante o convívio. E o que tive com a senhora nas últimas 72h me deixa sempre entrincheirado. Portanto, não sei se vem uma bala de canhão, de metralhadora. Rosas com certeza não são o seu forte e se vierem, é capaz de a senhora me dar a parte com os espinhos.

– O senhor deve ser bem amargo e acho que é por isso que toma porres homéricos e vive de ressaca.

– Engano da senhora! Quem faz minha vida ser um verdadeiro tormento são pessoas de sua laia. Acham que podem comprar tudo: indivíduos, corações, amores, enfim, querem dominar o mundo, enchê-lo de asfalto e concreto sufocando as florestas, os jardins, os poetas, os pássaros. Pensam que podem comprar as estrelas para os filhos quando estes querem apenas um pedaço do coração familiar. Gente como vocês, não têm a menor condição de dizer quem é amargo ou não e se a vida dos outros é bela ou trágica!

Quando Angélica ia responder às observações de seu interlocutor, o garçom apareceu perguntando o que ele desejava. Márcio tirou o olho dela e passando pelo garçom, mas estendendo-o para outro ponto do local, onde estava uma mulher. O movimento foi bem sútil, pois não houve movimento algum do pescoço, entretanto, a arquiteta viu, sentindo que esse olhar não era o mesmo que o repórter lhe lançara ainda a pouco e nem aquele de sua casa no dia anterior.

Márcio pensou por um instante. Estaria propenso a não beber nada que contivesse álcool, mas aquela mulher o deixara fora do ar. E ele precisava voltar a terra. Então pediu uma cerveja fermentada no arroz, um uísque com água de coco. Angélica pediu suco de laranja apenas com gelo e sem açúcar. Assim que o garçom se afastou, a arquiteta lançou um olhar fulminante para o repórter e sentenciou:

– O senhor fica enchendo a cara. Escreve umas porcarias de reportagens. Se ficar bêbado aqui, não vou te dar carona. Terá que se virar sozinho.

– Agora eu sei porque o Amadeu fugiu de casa. Com uma general mil estrelas por perto, somente a garrafa para salvar-lhe alma. Acho que falta poesia em sua vida. Trabalha com arte, mas está sempre armada até os dentes. Confesso-te que acho que a senhora é um embuste de si mesmo. Tô começando a me arrepender de ter topado o trabalho e resgatar Amadeu do mundo em que está. Pelo menos lá ele tem amor, tem verbos tornados versos e as paredes da casa dele são repletas de estrelas coloridas. Pelo que vejo, a senhora pintou o inferno com cores do paraíso, mas na verdade vive num tonel repleto de bosta e excrementos que sua consciência libera todas as manhãs quando acorda num mundo de princesa, mas repleto de ferrugens. Tenho até pena da senhora.

– Como já lhe disse outras vezes, sua opinião sobre a minha pessoa não tem a menor importância, principalmente vinda de um homem que não domina o próprio vício. Veja o que pediu? Eu não o chamei aqui para festejar, mas para saber como andam as coisas com o meu irmão. O senhor havia me dito que iria ter como ele no começo da noite hoje?

– Onde fica o banheiro dessa joça de frescos que vocês riquinhos frequentam?

– Fica à sua direita!

– Obrigado. Quando eu voltar, se a senhora não rosnar muito, eu digo alguma coisa e o que pretendo fazer.

Ao voltar à mesa, Márcio encontrou o que havia pedido. Encheu o copo com a cerveja e deu uma grande golada, enquanto Angélica o observava. Parecia que ele fazia de propósito para chocar a arquiteta que se remoía por dentro, principalmente por ter se deixado levar por um homem que não sabe se comportar em companhia de mulher.

Assim que colocou o copo sobre a mesa, Márcio começou a falar totalmente diferente com Angélica. Disse pausadamente que desconfiava que a pessoa que havia deixado Amadeu desparafusado vinha tentando conversar com ele, mas que de alguma forma, não estaria conseguindo. Falou também que havia acessado um carta-bilhete que encontrou no bolso do Amadeu quando este dormia num banco da praça. Márcio acreditava que seria o mesmo local em que ele ficava esperando a pessoa passar. Informou que procurou a tal livraria, mas não a encontrou. Foi ao supermercado e informaram que Amadeu nunca apareceu por lá. Aliás, ninguém nem sabia quem era.

– A livraria existiu sim! Só que meu pai comprou e a fechou.

– Por que ele fez isso?

– Porque achou que foi lá que Márcio começou a se perder.

– Cruzes! Quero distante do seu pessoal. É capaz de comprar a funerária e mandar me enterrar vivo e depois falar que eu era portador de catalepsia.

– Minha família não é esse monstro que o senhor diz que é!

– Não! Para serem monstros, seus familiares precisariam ler muita poesia e amar outras pessoas além do dinheiro e os seus próprios membros. Vocês são como baratas: adoram se lamber!

– Não vou entrar no mérito de minha família, pois garanto que a sua deve ser bem pior. Onde estão os seus? Eu pelo menos sei quem são os membros de minha família, temos nome, sobrenome, dinheiro e o que mais o senhor quiser.

– Pode ter tudo isso, mas não conhecem o amor. Olha o seu irmão. Você sabia que um dia eu o flagrei fazendo sexo com um copo?

– Como assim? Meu irmão!?

– É! Ele estava fazendo sexo oral num copo. Coisa de gente demente de sua família que o dinheiro não consegue trazer de volta. Aí contrata um babaca como eu para recuperá-lo ou desentocar a mulher ou homem que fritou os miolos dele. Eu não tenho o seu sobrenome e nem o seu dinheiro, mas pelo menos não sou desajustado!

Quando parou de falar, Márcio também terminou de beber a cerveja e estava virando a dose de uísque, quando Angélica lhe cravou o punhal nas costas e este quase engasgou com o líquido. “- Pelo que sei, o senhor começou a beber quando foi arrumar umas coisas no apartamento que ia morar com a sua futura esposa e a surpreendeu transando com um homem e outra mulher! Estou errado? E ainda por cima, quando foi falar alguma coisa: apanhou do homem e da mulher que estava com ela”.

– Quem lhe disse essas atrocidades?

– E tem mais! Foi enxotado de sua cidade e veio se esconder aqui, ajudado por um ex-c0lega de universidade. Até sua família não quer saber de você por conta do escândalo e da sua falta de postura que não soube resolver tudo de maneira silenciosa. E agora fica aí cheio de ganzé. Acho melhor o senhor rever sua forma de se dirigir a outras pessoas, principalmente aquelas para quem trabalha.

Enquanto Angélica falava, Márcio olhou bem dentro dos olhos dela, mas não conseguia emitir ódio, raiva, desprezo, nada que pudesse indicar o que ela lhe ferira a alma com aquela história. Tomou de uma única vez o restante do uísque e batendo com o copo sobre a mesa. A força foi tanta que o copo despedaçou, lhe cortando a mão, mas o repórter nem reparou no rasgo e saiu furioso do bar.

No caminho de volta para casa, xingava tudo e todos, praguejava o dia em que nasceu e quem havia dado essas informações a Angélica. Parando em baixo de um poste e usando a luz do mesmo, Márcio pode ver a extensão do ferimento. Nada que um lenço não contivesse o sangramento. Retirou a peça do bolso e o colocou sobre o ferimento. “Dá para chegar até em casa e lá eu vejo o que faço”, pensou.

Ao andar mais dois quarteirões teve a sensação de estar sendo seguido. E de fato estava. Ao olhar para o lado da rua, viu o carro de Angélica andando lentamente. Ao ser notada. Ela parou o veículo. Baixando o vidro, ordenando disse-lhe:

– Márcio! Deixe de ser criança e entra aqui para eu te levar ao hospital e tratar esse corte!

O jornalista se fez de surdo e continuo a andar, aumentando as passadas. Angélica acelerou e continuou chamando-o e, como ele nem dava ouvidos para as suas chamadas, a arquiteta jogou o carro para cima de Márcio que se assustou.

– Sua doída! Quer me matar? Já sei de onde Amadeu tirou a loucura. Essa família é toda paranoica. Você! Quando não fazem o que você quer, parte para cima. Tô fora!

Angélica desceu do carro e o puxou pela mão, dizendo: “-Agora entrai e deixe de infantilidade!”

Ao sentir o toque dela em sua mão, Márcio bem que tentou, mas não resistiu. Aqueles olhos convidativos, destruíram qualquer resistência sua. Mas ele não aceitou ir ao hospital. “-Pode me deixar em casa. Eu tenho produtos lá para arrumar isso aqui. O corte foi superficial!”.

O casal fez o trajeto em silêncio, enquanto no rádio do carro tocava a música Aquelas canções em mim, da cantora Joyce Moreno, com Márcio segurando o ferimento e tomando todo o cuidado para não pingar sangue no carro da irmã de Amadeu. Quando chegou em frente ao prédio, a arquiteta desceu do veículo, deu a volta e abriu a porta para Márcio.

– Pronto! O patinho feio da mamãe está entregue. Quero os relatórios por escrito amanhã cedo. Sem falta!

– Vou pensar. Boa noite!

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