Retrovisores e seus espelhos

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Num livro, cujo título é assaz instigante [Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. SP: Editora, 34, 2008, p. 7] a antropóloga francesa Michèle Petit afirma que “a leitura tem o poder de despertar em nós regiões que estavam até então adormecidas. Tal como o belo príncipe do conto de fadas, o autor inclina-se sobre nós, toca-nos de leve com suas palavras e, de quanto em quando, uma lembrança escondida se manifesta, uma sensação ou um sentimento que não saberíamos expressar revela-se com uma nitidez surpreendente”. Posto isto, meus caros leitores, como é possível que esse pequeno excerto possa ser útil em algum momento de vossas existências, dentro desse contexto pandêmico e político nos quais uma nova eleição presidencial se aproxima, sabendo-se que os dois últimos anos da atual gestão foi sob o julgo de um vírus letal que está se desdobrando em outras mutações?

Parece-me que, acrescentando um novo trecho de outro livro, a questão pode ficar um pouco mais objetiva e, desta forma, ser respondida. “Como devemos falar a respeito da maneira que preferimos conduzir nossas sociedades? Em primeiro lugar, não podemos continuar avaliando nosso mundo e as escolhas que fazemos num vácuo moral. Mesmo se pudéssemos ter certeza de que um indivíduo racional, suficientemente consciente e bem-informado sempre optaria por seus interesses, ainda precisaríamos saber quais são esses interesses. Eles não podem ser inferidos por seu comportamento econômico, pois nesse caso o argumento formaria um círculo vicioso. Precisamos descobrir o que homens e mulheres desejam para si, e sob que condições tais desejos podem ser satisfeitos” [Tony Judt. O mal ronda a terra: um tratado sobre as insatisfações do presente. Trad. Celso Nogueira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 46].

Será que já é possível fazer uma conexão de sentido entre o primeiro parágrafo e o segundo? Caso não seja, creio que posso te ajudar a entendê-los, meu caro leitor. Compreendo que, ao lermos uma obra de arte – e a escrita é sem dúvida uma forma expressiva de se comunicar com o mundo e o pensamento daquele que se propõe a dizer algo a quem deseja escutar, ler, ver – podemos, enfim, refletir sobre o ser em si e o ser que se é visando o vir a ser de si e de seus semelhantes. Portanto, compreendo que o primeiro parágrafo propõe que tu, oh meu caro leitor, leia o seguinte objetivando se interpelar levando em conta em qual mundo pretende existir no futuro: se idêntico ao pretérito do qual se está saindo ou algo diferente e se a opção for a segunda abordagem, como o amanhã pode ser edificado a partir das escolhas que fazes no momento em que esteja lendo essas linhas? Creio que posso lhe sugerir mais um pequeno excerto sobre o que acabo de grafar. “Um dos principais problemas com que somos confrontados é precisamente aquele que deriva do contraste entre a rapidez das mudanças sociais e a lentidão da política. Os Estados são lentos demais quando comparados com a velocidade das transações globais. A educação, a política e o direito não aguentam o ritmo do mundo globalizado. Suas instituições têm perdido progressivamente capacidade de configuração sobre os processos de aceleração técnica e social. Governar torna-se um problema. Por causa da complexidade das exigências na tomada de decisões e da pressão midiática pelo imediato, as instituições políticas veem reduzida sua esfera de influência, no melhor dos casos, à mera reparação dos danos causados pelo sistema econômico e tecnológico” [Daniel Innerarity. A política em tempos de indignação: a frustração popular e os riscos para a democracia. Trad. João Pedro George. Rio de Janeiro: LeYa, 2017, p. 85-86].

Acredito que agora seja possível alinhavar um raciocínio em que eu e tu possamos compreender melhor o mundo em que estamos e de como a leitura de obras como os romances confeccionados pelo escritor Victor Hugo (18020-1885) na Paris Oitocentista, ou A idade da razão [Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011], elaborado pelo filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) ou os textos que ilustram o livro A reconstrução do Brasil [SP: O Estado de S. Paulo, 2017], de autoria do jornalista José Fucs e prefaciado pelo ex-presidente e cientista social Fernando Henrique Cardoso. Feitas as devidas tentativas de explicações, me parece que é preciso seguir em frente, sempre tendo em mente o que o retrovisor está indicando aos ocupantes de um automóvel chamado Brasil e, lógico que o que está sendo exposto de forma a deixar o ontem com o pretérito, precisa ser analisado sob o prisma do espelho que bem pode ser o do conto da Branca de Neve que responde afirmativamente às perguntas formuladas pela madrasta: “Espelho, espelho meu, me diga quem é a mais bela deste reino”. Importante ressaltar que o pronome de ordem possessiva objetiva apenas indicar que não havia outra alternativa ao objeto do que devolver ao seu dono o que lhe era perguntado, portanto, a madrasta e o espelho eram a mesma coisa: uma só unidade, mesmo que o que se via na peça era o reflexo, portanto, a inversão do real que se confundia com o concreto. Desta forma, se o retrovisor do veículo indica o que se foi e, se passou, está se distanciando, o espelho demonstra o que muitas vezes o ser humano quer modificar, isto é, o seu externo. Eis o desafio, mas não o único.

“Por onde devemos começar para corrigir a criação de uma geração obcecada pela busca da riqueza material e indiferente ao resto? Talvez seja preciso começar lembrando a nós mesmos e nossos filhos de que nem sempre foi assim. Pensar ‘economisticamente’ como temos feito nos últimos trinta anos, não é intrínseco aos seres humanos. Houve um tempo em que organizávamos nossas vidas de maneira diferente” [Tony Judt. O mal ronda a terra: um tratado sobre as insatisfações do presente. Trad. Celso Nogueira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 48]. Interessante esse olhar que faz com que, eu e tu, meu caro leitor, tenhamos que analisar com mais acuidade o retrovisor, pois o que parece estar ficando para trás, acaba por permanecer dentro do automóvel, pois se os imóveis, carros e outros objetos inertes ou em movimentos, permanecem nas condições em que se apresentam aos transeuntes, os valores éticos e morais continuam com o condutor da carroça motorizada, ou se preferirem meus leitores, nas carruagens de outrora que tanto encantaram determinadas personagens machadianas, como o banqueiro Agostinho Santos, um dos principais atores do romance Esaú e Jacó [São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012]. Mas há ainda aqueles que sem perceber transformam seus possantes automóveis em barcos conduzidos por Caronte – aquele barqueiro que leva as almas para a porta do inferno, de acordo com determinada mitologia e outras escatologias.

Enfim, meus caros leitores, chegamos ao final de mais uma tentativa de refletir sobre o estar aqui do homem no mundo, sempre levando em conta o que o retrovisor reflete e também o espelho. Sabendo-se que, embora os objetos instalados no automóvel e nas paredes das alcovas e banheiros tenham objetivos diferentes, ambos proporcionam àqueles que tenham sensibilidade para encarar o que vai ficando para trás com o movimento dos veículos e o que está sendo refletido pelo espelho de cabeceira, saberá que ambos podem estar indicando coisas que o ser humano deverá enfrentar para construir um futuro diferente, sem no entanto culpar os políticos, pois eles são os reflexos de sujeitos que desconhecem a política ou desejam ter tudo para si mesmos.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *