Para além do escravismo

Para além do escravismo

 

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos

 

No texto de hoje proponho aos meus leitores, se eu ainda os tiver, uma reflexão, na qual seja possível pensar a sociedade brasileira para além do escravismo, seja aquele que perdurou em nossas paragens por mais de trezentos anos ou, o que persiste até o presente, após o fim do cativeiro em 1888, entretanto, sem alforriar as condições sociais que produziram o escravo gerador de riquezas, contudo, este foi alijado do circuito de distribuição desses valores materiais, mesmo sendo a principal ferramenta dessa cadeia produtiva. As consequências de tais comportamentos sociais e econômicos todos já sabem: finda o sistema econômico, respaldado no não pagamento do trabalho do africano – ser enquanto mercadoria geradora de valores -, o preto é descartado, estando vivo, no novo modelo de assalariamento da mão de obra. Em seu lugar, com toda ajuda financeira e logística do governo central, chega o imigrante europeu. Ao ex-escravo restou a rua, a miséria, a marginalização, a prostituição e toda a sorte de subempregos, conforme o escritor Aluísio Azevedo (1857-1913) apresenta em seu romance O cortiço e, décadas depois pela escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) em seu Quarto de despejo.

O que se pode aferir de tal quadro socioeconômico construído a partir daquele sábado, 13 de maio de 1888? Os dois romances, cujas leituras são primordiais para se entender o Brasil em que o descendente de africano existe nestas duas primeiras décadas do século XXI, acrescidas do romance Bandeira negra, amor, publicado pelo jornalista carioca Fernando Molina em 2005, podem auxiliar na construção de uma interpretação plausível desse teatro dantesco em que jovens negros [não concordo com essa adjetivação, pois ela diz respeito à condição e não ao pertencimento étnico, cultural ou tonalidade da pele, mas para fins ilustrativos aqui nesta reflexão usarei esse termo como categoria social e de distinção, como diria o pensador Pierre Bourdieu (1930-2002)] e pobres da periferia das grandes, médias e pequenas cidades são alvos preferidos da violência policial. É bom recordar aqui que o Policial Militar faz parte dos Aparelhos Repressivos de Estado e de acordo com a socióloga Heloisa Rodrigues Fernandes em seu livro Os militares como categoria social, age de acordo com as determinações da corporação a partir do alto comando. É interessante recuperar uma ordem dada por um capitão da PM de Campinas, que numa determinação interna disse aos seus comandados que os “negros” deveriam ser averiguados sempre. Por que tanta arbitrariedade com os descendentes de escravos? A resposta pode começar a ser encontrada ainda nos tempos dos açoites e violências praticadas contra os africanos e seus descendentes, principalmente aos cativos urbanos, sobretudo quando estes circulavam pelas ruas da cidade deveriam portar autorização de seus senhores e, caso não as possuísse eram enquadrados como fujões, logo, agredidos violentamente. Um exemplo dessas consequências, os meus leitores podem encontrar nas últimas páginas do romance de Aluísio Azevedo.

Diante dos açoites, das constantes agressões, será que essa mercadoria desprovida de sua humanidade, contudo, com vida biológica, não deveria revidar? Conforme o pensador inglês Thomas Hobbes (1588-1679) nos apresenta em seu livro Leviatã, é dado ao homem, quando estiver nessas condições, o direito de revidar, ou melhor se defender com os recursos que tem e estes, com certeza, seriam o mesmo tipo de aviltamento sofrido, portanto, não se podia, a exemplo do que desejava o escritor José de Alencar (1829-1877), esperar docilidade de homens e mulheres, crianças e adolescentes desprovidos de sua liberdade por determinação de outrem que o viam apenas como mercadorias que deveriam ser exploradas até a exaustão física. Neste sentido, para tentar equacionar a reflexão, uso dois fragmentos sobre a história do negro no Brasil, durante o cativeiro e depois de sua alforria. O primeiro é copilado pela historiadora Mary Del Piore: “[…] sem condições de oferecer nenhuma reação, Gabriel Francisco foi surpreendido pelo escravo Ventura Mina, que o retirou à força de cima do cavalo e o cobriu de porretadas na cabeça até a morte. Alguns dos escravos que estavam trabalhando naquele momento engrossaram o grupo e seguiram em direção à sede da Fazenda Campo Alegre, todos liderados por Ventura Mina. Só não atacaram a sede da fazenda porque um escravo havia saído às pressas e avisado aos outros familiares do deputado o que havia acontecido. Os rebeldes chegaram até ao terreiro da fazenda e perceberam que ela estava guarnecida por dois capitães do mato. Foram, então, em direção à Fazenda Bela Cruz. O momento mais dramático da revolta teve como cenário essa fazenda, onde os cativos assassinaram todos os brancos que lá estavam. Depois de invadir a casa-grande de seus senhores, arrombando as portas a machadadas, atacaram José Francisco Junqueira e sua mulher, que, para se protegerem, tinham se trancado num quarto. De nada adiantou. Foram massacrados. Nove integrantes da família Junqueira foram assassinados. Há indícios de que as mulheres sofreram violência sexual. Os escravos utilizaram instrumentos de trabalho – paus, foices e machados – e armas de fogo para cometer os crimes. Os rebeldes estavam determinados a exterminar todos os brancos daquela propriedade, tanto que parte dos escravos permaneceu na Bela Cruz e preparou uma emboscada para também assassinar o genro de José Francisco, Manoel José da Costa. Depois de mandar avisá-lo de que os assassinos tinham fugido, o que era mentira, esconderam-se e, assim que Manoel José da Costa atravessou a porteira o mataram a ‘bordoadas’ e depois lhe deram um tiro” (DEL PIORE, Mary. História da gente brasileira: volume 2: Império. São Paulo: LeYa, 2016, p. 84-85).

O segundo fragmento é da brasilianista grega, Kátia de Queirós Mattoso (1931-2011) que residiu muito tempo no Brasil.  “Bem diferente é a situação do escravo alforriado num meio onde a imigração branca é realmente importante. A maldição da escravatura pesará sobre ele durante muito tempo. A sociedade branca o repele como um ser inferior. Os escravos só muito tardiamente foram introduzidos em grande número nas regiões sul do Brasil. Além disso, chegaram ali ao mesmo tempo que os imigrantes brancos. O sul guardou também uma população indígena, de importante influência no processo de mestiçagem, o que somente ocorreu no nordeste em zonas do sertão ou nas capitanias do extremo norte onde chegaram muito poucos africanos. Nas zonas de forte presença branca e indígena, os negros forros têm de lutar muito mais duramente que seu camarada do nordeste, de Minas ou mesmo do Rio de Janeiro. No sul, o processo de embranquecimento e de aculturação é imperativo. Mas ali a sociedade, dominada pelo modelo branco, é um corpo bloqueado. Defende-se veementemente da mestiçagem negra – o índio era considerado mais nobre. O liberto é repelido, marginalizado social e economicamente. Passa então a adotar atitudes ambivalentes. É forçado a concessões bem maiores. Os antigos escravos, e mesmo seus filhos, terminam por constituir uma categoria social claramente diferenciada por sua cor e suas tarefas econômicas. Não encontram ali as solidariedades necessárias a um verdadeiro progresso econômico e social. Se tal ocorre, seu ritmo é extremamente lento. Ali o mulato é, para os brancos, igual a um negro, enquanto os africanos não veem assim. Ele se torna hostil aos brancos e aos negros e a ambivalência desta situação se prolonga por várias gerações, o que não parece ser o caso dos alforriados na Bahia. Esses problemas podem ser melhor sentidos, se tentarmos precisar como se formam e se desenvolvem as relações sociais na sociedade escravista brasileira” (MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. Trad. James Amado. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 2003, p. 281).

Parece-me que na obra machadiana há vários momentos que podem oferecer subsídios para se pensar a perversidade da escravidão, até mesmo entre os africanos. Um deles é o capítulo A joia, presente no penúltimo romance Esaú e Jacó. Nele o leitor encontrará a passagem, segundo a qual a esposa do banqueiro Agostinho Santos, tornado Barão do Império por ato monárquico, Natividade recebe a informação de sua nobiliarquia e a escravaria da casa se locupleta com a outorga achando-se mais importante que os demais cativos, justamente por ser propriedade de uma baronesa. Em outro episódio, que recuperei outras vezes em minhas reflexões, enunciado no romance Memórias póstumas de Brás Cubas, o preto forro Prudêncio compra outro negro escravizado e o espanca por qualquer falta. De acordo com o narrador do enredo, essa foi a forma que o ex-cativo encontrou para desforrar toda as surras e açoites que levou nos tempos em que era escravo da família de Brás Cubas. Todos esses processos fazem com que eu fique cá refletindo, como e quando será possível extinguir todos os resquícios deixados por mais de três séculos de violência contra o homem trasladado da África para a América contra a sua vontade? Será que decretos e leis mudam a conduta humana? Recorro novamente a Machado de Assis (1839-1908) quando este diz no conto Teoria do Medalhão que “antes das leis, reformemos os costumes!” Ou seja, muda-se primeiro os hábitos e, ao que tudo indica, essa alteração é mais nevrálgica.

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quartas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.comwww.criticapontual.com.br.

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