Ontem, hoje e amanhã

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Seguindo exemplos de algumas reflexões anteriores, hoje começo meu texto trazendo um fragmento do universo literário para dar início a um tema interrogativo que considero de vital importância: para onde caminha a humanidade e de quebra o brasileiro? Como não tenho pretensão alguma de grafar aqui receituário para qualquer coisa que diz respeito ao ser que se pensa humano, já que cada um constrói a sua história, mesmo sabendo que essas enunciações têm muito a ver com o momento, o meio e enredo com o qual cada sujeito edifica a existência que se pretende levar num universo vindouro, carregando consigo um pretérito fantasmagórico, como é o caso do Brasil, de passado e fortes traças escravagistas. A lei 3.353, de 13 de maio de 1888 só concedeu, e muito timidamente, os direitos civis ao elemento africano e seus descendentes e, talvez por isso, o trecho que externo aqui possa ser significativo ao meu leitor que se quer consciente de sua condição de brasileiro.

“O pai vivera assim, o avô também. E para trás não existia família. Cortar mandacaru, ensebar látegos – aquilo estava no sangue. Conformava-se, não pretendia mais nada. Se lhe dessem o que era dele, estava certo. Não davam. Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos. Por que seria que os homens ricos ainda lhe tomavam uma parte dos ossos? Fazia até nojo pessoas importantes se ocuparem com semelhantes porcarias” [Graciliano Ramos. Vidas Secas. Posfácio Marilene Felinto. 100.ed. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 97]. Parece-me que esse olhar passado ao leitor por um narrador singular, ou melhor enunciadora, já que quem conta a história é a cachorra Baleia, personagem que se transita dum eu narrador para um eu narrado, é importantíssimo para o meu enredo de hoje. Quantos brasileiros não viveram e ainda permanecem nessa condição, isto é, reproduzindo as ações dos pais, seja em que condição social for, ou seja, desde o sopé da pirâmide social até cume da escada social onde se encontram os integrantes da chamada classe A?

Parece-me que não cabe a esse que vos escreve, meus caros leitores, ser o portador dessas respostas, tendo em vista que cada um deve ter as condições mais do que suficiente para analisar a própria vida a partir dos predicados que possui e os adjetivos sonhados por uma corte de seres que, quiçá os recursos econômicos dos quais são possuidores, não consegue enxergar o mundo para além das sombras que ela é numa repetição do que costumo chamar de eterno retorno, só para uma tentativa de diálogo com o pensamento de Friedrich Nietzsche (1844-1900). Se o sujeito não consegue deixar as masmorras em que está metido, como dizia Machado de Assis (1839-1908), nas primeiras páginas do clássico Dom Casmurro, como é possível pensar a democracia para além do desejo de revanchismo, ódio, reação que me leva a classificar tal comportamento como reacionário e vingativo? Claro que pensar a democracia requer uma série de elementos, incluindo aí a questão persuasiva e o porquê defende-la em detrimento do líder que lhe garanta pão e segurança. Portanto, creio que enveredar por esse caminho é assaz interessante porque, além de auxiliar o brasileiro a entender os motivos que levam muitos de seus pares a se comprazer com líderes que coadunam com torturadores, permite ao sujeito se tornar de fato e de direito um ente político, construindo uma democracia participativa e não delegativa como a que temos aqui.

Percorrendo as páginas de um dos livros do cientista político Adam Przewworski, me deparei com algumas assertivas que considero vitais para se pensar, não só o futuro da democracia, mas também porque ela corre perigo nesses momentos pandêmicos em que o brasileiro deverá escolher os seus representantes para governarem o Estado e o Brasil a partir de 2023. Segundo o autor de Crises da democracia [Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 61], “está claro que as democracias que ruíram tinham uma distribuição de renda mais desigual”. Aqui há um problema emblemático que, mesmo com o fim do escravismo, a situação não foi modificada justamente porque ao direito civil, concedido por determinação da regente Princesa Isabel, não se seguiu os direitos sociais e políticos, provocando, ao longo da história recente da república brasileira, uma brutal desigualdade social marcada, sobretudo, pela distribuição equivocada de renda e por conseguinte, o desejo atroz de muitos hoje manter os privilégios doados por uma Corte acéfala ainda na época colonial. Creio que aqui vale um apontamento de Przewworski, para quem “as democracias que sobreviveram foram aquelas que redistribuíram uma boa parte das rendas, enquanto as que ruíram não redistribuíram nada” [Adam Przeworski. Crises da democracia. Trad. Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 61].

Soma-se a esse breve olhar, a narrativa dos pesquisadores brasileiros do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, Sérgio Firpo, Michael França e Alysson Portella que no artigo “É tudo para ontem”, publicado pela Folha de S. Paulo em sua edição do último dia 21 de novembro. Segundo eles, “o Brasil está longe de ser um caso em que a raça é irrelevante para a distribuição de renda, como mostram os resultados do IER [Índice de Equilíbrio Racial]. Os números do desequilíbrio racial na renda não são apenas estáveis ao longo do tempo, como bastante expressivos”. Esse pequeno fragmento, inicialmente dá conta de um dos pontos mais nevrálgicos da democracia brasileira escudados na má distribuição de renda provocada pela falta de acesso à educação de qualidade, fenômeno que não é deste presente, mas uma consequência e herança escravagista ressaltada na enunciação da baleia no clássico de Graciliano Ramos (1892-1953), entre outros romances como Tocaia Grande, do escritor baiano Jorge Amado (1912-2001). Muitos podem dizer isso e aquilo, ressaltando o mérito e o esforço pessoal de cada sujeito. Louvável, mas é preciso cautela nesse tipo de abordagem porque não se trata de uma melhoria pessoal motivada pela batalha solo, mas de toda uma condição social, conforme externei logo no começo dessa reflexão, segundo a qual o homem faz a sua história, mas não como a deseja e sim pelas condições sociais determinadas pelo meio. Portanto, se os sujeitos sociais ainda convivem com situações, segundo as quais, os valores e as oportunidades não distribuídas adequadamente levando em conta o conhecimento, significa que sua luta pode ser vista como inglória.

Enfim, abordar a democracia num país sem cidadania, e com um passivo ditatorial como o nosso, requer olhares mais apurados objetivando compreender porque seus cidadãos se comprazem com líderes que propõem vingança, acabar com a corrupção quando há informações e provas cabais de que a situação é bem outra. Como diz um certo adágio popular: são fatos, contra os quais não se tem argumento, mesmo aqueles em que se dirigem a gestores anteriores para tentar encobrir os vícios do atual filhotismo pós-moderno. É sempre bom lembrar que se não houver cidadania de fato, a sociedade estará sempre sujeita a ser governada por aprendizes de ditadores, autocratas, como os apresentados pelo autor de Crises da democracia ao analisar, sucintamente, o que levou a Alemanha e a República de Weimar a abraçar o nazismo, deixando um saldo que todos sabem, mas muitos preferem não ver, pois estão de olho na manutenção de seus privilégios, enquanto a patuleia rói ossos, mesmo aqueles que pertenciam à preá que a cachorra Baleia matou para salvar a própria pele.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

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